28 fevereiro, 2019
Adalmir, Cidadão Exemplar
Querido diário:
Tá lá no Facebook, em postagem festiva de há poucos momentos:
Todas/os que me leem sistematicamente só de vez em quando percebem que nutro enorme carinho pelo jornal Zero Hora. Também perceberam que, por pressa de minha parte, às vezes digito "Zerro Herra". Mas hoje, mais uma vez, torna-se claro tratar-se do melhor jornal já criado pela humanidade desde a descoberta da agricultura pelas mulheres maias. É a sra. Diva Marquetti ladeada por nosso amado professor Adalmir Marquetti, ela sendo mãe do sr. Ronaldo Marquetti.
O professor Adalmir, como sabemos, é talvez o mais brilhante economista marxiano desde 1847, ou seja, quando este ramo do conhecimento humano foi consagrado com a publicação d'O Capital. Acho super bacana um economista ter "vida privada", como há anos percebi de seu -lá dele, Adalmir- antípoda doutrinário, o prof. Ronald Hillbrecht, enxadrista consagrado.
Olha só o que tá lá na foto que nos encima.
DdAb
Marcadores:
Vida Pessoal
25 fevereiro, 2019
Um Besteirol sobre a Cíntia e a Unisinos
Querido diário:
Sabemos que, com afeto, costumo designar o jornal nanico porto-alegrense Zero Hora como Zerro Herra. E não é em resposta a sua taluda qualidade... Em compensação, hoje temos aquela coisa de novilíngua protagonizada pela Unisinos, a vetusta universidade dos jesuítas, hoje em dia, aparentemente mais apaziguados, menos letais.
Mas beiram a pasmaceira, pois acabam de anunciar o fechamento de sua orquestra e seu coral, uma de 23 anos de idade e o outro com 53 anos cantando e encantando (lugar comum infame criado intencionalmente). E por falar em pasmaceira e sua quebra, lemos também no exemplar de hoje do segundo caderno uma crônica assinada por Cíntia Moscovich, já a meio do caminho entre o ingresso no jornal e a demissão por justa causa.
É que a coroa escreve uma espécie de "Crônica da Sagrada Terra de Israel". Hoje ela faz o elogio da obra "Judas", de Amós Oz, falecido -segundo ela- em dezembro do ano passado e que, apenas agora, coube-lhe homenagear sua memória. No outro dia, ela reclamou de um artigo de terceiros que regretava (anglicismo proposto) a posição racista de Monteiro Lobato (mas juro que nunca o discurso direto). E, emocionada com sua própria argumentação, alinhou razões em favor da mudança da data convencional brasileira da abolição da escravatura, antecipando-a para 1882, seis aninhos que poderiam ter salvo muita gente da tortura e da morte. Talvez a macróbia estivesse confundindo esse 1882 com 1982, ano em que, depois de passar pela Unisinos e UFSC, voltei à UFRGS como professor do departamento de economia. Vai saber...
E por falar em jesuítas, vejamos a nota vazada em novilíngua da Unisinos informando que, mantendo o foco na exuberância acadêmica que caracterizou minhas aulas, fecha a orquestra, mas mantém aberta (pena que agora não conte com minha magistral presença) um projeto -que não tinha entrado na história- de atendimento a 120 pimpolhos na busca de Euterpe. Sejamos literais:
Mas beiram a pasmaceira, pois acabam de anunciar o fechamento de sua orquestra e seu coral, uma de 23 anos de idade e o outro com 53 anos cantando e encantando (lugar comum infame criado intencionalmente). E por falar em pasmaceira e sua quebra, lemos também no exemplar de hoje do segundo caderno uma crônica assinada por Cíntia Moscovich, já a meio do caminho entre o ingresso no jornal e a demissão por justa causa.
É que a coroa escreve uma espécie de "Crônica da Sagrada Terra de Israel". Hoje ela faz o elogio da obra "Judas", de Amós Oz, falecido -segundo ela- em dezembro do ano passado e que, apenas agora, coube-lhe homenagear sua memória. No outro dia, ela reclamou de um artigo de terceiros que regretava (anglicismo proposto) a posição racista de Monteiro Lobato (mas juro que nunca o discurso direto). E, emocionada com sua própria argumentação, alinhou razões em favor da mudança da data convencional brasileira da abolição da escravatura, antecipando-a para 1882, seis aninhos que poderiam ter salvo muita gente da tortura e da morte. Talvez a macróbia estivesse confundindo esse 1882 com 1982, ano em que, depois de passar pela Unisinos e UFSC, voltei à UFRGS como professor do departamento de economia. Vai saber...
E por falar em jesuítas, vejamos a nota vazada em novilíngua da Unisinos informando que, mantendo o foco na exuberância acadêmica que caracterizou minhas aulas, fecha a orquestra, mas mantém aberta (pena que agora não conte com minha magistral presença) um projeto -que não tinha entrado na história- de atendimento a 120 pimpolhos na busca de Euterpe. Sejamos literais:
"Reafirmando seu foco na excelência acadêmica, a Unisinos informa que está descontinuando as atividades da Orquestra Unisinos Anchieta e do grupo de coros. No entanto, mantém seu compromisso com o incentivo à cultura através do Projeto Vida com Arte, que atualmente atende 120 crianças e adolescentes da rede pública de ensino, uma iniciativa que tem promovido a inclusão social e cultural através da música."
Aqueles dois "através" ali não são novilíngua, mas português brasileiro, pelo menos é o que me pareceu quando fiz com que a manteiga que passava em meu pão-com-manteiga derrapasse e enodoasse a própria meia-taça que levava aos lábios. You know, you never know (isto não é um cachimbo e, menos ainda, um anglicismo)...
DdAB
Texto originário do Facebook. A imagem é uma pacífica fogueira de São João que -salvo melhor juízo- não queimou ninguém.
15 fevereiro, 2019
Comunismo e Bolsonarismo: corrupção e alienação
Olha, espero que os economistas consideram esta postagem pura e finíssima literatura e que os demais leitores, especialmente, o Nytha, a quem dedico as reflexões, considerem um inteligentíssimo ensaio sobre sistemas econômicos comparados. E que ninguém ache que exagerei na citação que farei ao livro de Leonardo Padura.
Pois então. O assunto começa em duas pontas. A primeira foi o convite que Nithamar de Oliveira fez em seu mural do Facebook para que eu me pronunciasse sobre um comentário que ele próprio fez a uma entrevista que Jessé Souza deu para o jornal eletrônico (americano) The Intercept. Jessé, como sabemos de suas últimas entrevistas e até livros, tem participado ativamente do debate sobre o que a esquerda tem negligenciado no Brasil.
Nithamar disse:
Por não compreender a lógica do capitalismo financeiro e erroneamente se imaginar como parte integrante da elite, a classe média abriu mão do pacto democrático para abraçar a ideia de que a corrupção do estado é a fonte de todos os males no Brasil – e não o assalto “legalizado” promovido por bancos e grandes corporações.
Eu comentei [agora com ligeiras editoriações]:
Estou preparando uma resposta estratosférica em meu blog. Quando terminar (uma enorme transcrição do livro "Hereges", de Leonardo Padura), aviso aqui. Por enquanto, respondo indiretamente o comentário inicial do Nythamar de Oliveira. Também evoco Jessé Souza, no livro "A tolice da inteligência brasileira", em que ele denuncia a incapacidade que ela tem de entender que o verdadeiro problema do Brasil não é a cordialidade, nem a divisão entre casa grande e senzala, nem aquela encrenca de vida caseira e vida na rua, mas essencialmente o problema negligenciado pelos pensadores do Brasil é a desigualdade. Nesta linha, obviamente faltam políticas públicas (gasto regressivo, impostos progressivos e crédito para o auto-emprego). De qualquer modo, entendo que o verdadeiro problema não é exclusivamente causado pelo poder dos bancos, pois este apenas tem tanto poder no Brasil por causa da desigualdade, que não tem sindicatos fortes e outras organizações extra-mercado e extra-estado que poderiam exercer aquele "coutervailing power" de J.K. Galbraith. Também quero ver o que Adalmir Marquetti pensa sobre o artigo original.
E aí encerro a primeira ponta. Vamos à segunda que começa com minhas reflexões sobre as diferentes opiniões externadas lá no mural do Nytha, como acabo de iniciar... Não tenho medo de dar opiniões sobre temas relativamente aos quais tenho alguma leitura. Para exemplificar, refiro meu ódio ao prestígio que os esforços de reindustrialização têm juntamente a certos segmentos de economistas da esquerda. Primeiro, abomino as políticas industrializantes que, a meu ver, apenas contribuíram para acentuar a desigualdade. Segundo, sugiro que, se é para começar com indústria, tomemos os serviços industriais de utilidade pública (parte dos quais é o saneamento e que eu refiro, para mostrar meu radicalismo, como "esgotos"). De fato, a falta de esgotos -cloacais e seu tratamento- é uma praga, só ela já servindo de indicador de desigualdade: há muito mais ricos sendo servidos por esgotos no Brasil do que pobres. Bem, no caso, estou dizendo que o verdadeiro problema, sendo a desigualdade, deve obviamente levar ao controle fácil da sociedade por grupos predadores, como é o caso do poder judiciário, do legislativo e da tecnoestrutura, com gente como o próprio Paulo Guedes e, antes dele, Pedro Malan, Pérsio Arida, André Lara Rezende, Edmar Bacha e essa turma que encontra acolhida na Casa das Garças, além de meia-dúzia de economistas da USP, como é o caso de João Sayad. Então entendo que a manutenção e expansão dos níveis da dívida pública nada mais é que a apropriação do excedente social por essa turma, aplicadores, acionistas e até outros rentistas urbanos e rurais. E que, se houvesse mais educação, seria mais fácil transformar as instituições que contribuem para a predação dos menos favorecidos. Além disso, mais educação levaria à criação de outras instituições também voltadas a reduzir a desigualdade.
Eu comentei [agora com ligeiras editoriações]:
Estou preparando uma resposta estratosférica em meu blog. Quando terminar (uma enorme transcrição do livro "Hereges", de Leonardo Padura), aviso aqui. Por enquanto, respondo indiretamente o comentário inicial do Nythamar de Oliveira. Também evoco Jessé Souza, no livro "A tolice da inteligência brasileira", em que ele denuncia a incapacidade que ela tem de entender que o verdadeiro problema do Brasil não é a cordialidade, nem a divisão entre casa grande e senzala, nem aquela encrenca de vida caseira e vida na rua, mas essencialmente o problema negligenciado pelos pensadores do Brasil é a desigualdade. Nesta linha, obviamente faltam políticas públicas (gasto regressivo, impostos progressivos e crédito para o auto-emprego). De qualquer modo, entendo que o verdadeiro problema não é exclusivamente causado pelo poder dos bancos, pois este apenas tem tanto poder no Brasil por causa da desigualdade, que não tem sindicatos fortes e outras organizações extra-mercado e extra-estado que poderiam exercer aquele "coutervailing power" de J.K. Galbraith. Também quero ver o que Adalmir Marquetti pensa sobre o artigo original.
E aí encerro a primeira ponta. Vamos à segunda que começa com minhas reflexões sobre as diferentes opiniões externadas lá no mural do Nytha, como acabo de iniciar... Não tenho medo de dar opiniões sobre temas relativamente aos quais tenho alguma leitura. Para exemplificar, refiro meu ódio ao prestígio que os esforços de reindustrialização têm juntamente a certos segmentos de economistas da esquerda. Primeiro, abomino as políticas industrializantes que, a meu ver, apenas contribuíram para acentuar a desigualdade. Segundo, sugiro que, se é para começar com indústria, tomemos os serviços industriais de utilidade pública (parte dos quais é o saneamento e que eu refiro, para mostrar meu radicalismo, como "esgotos"). De fato, a falta de esgotos -cloacais e seu tratamento- é uma praga, só ela já servindo de indicador de desigualdade: há muito mais ricos sendo servidos por esgotos no Brasil do que pobres. Bem, no caso, estou dizendo que o verdadeiro problema, sendo a desigualdade, deve obviamente levar ao controle fácil da sociedade por grupos predadores, como é o caso do poder judiciário, do legislativo e da tecnoestrutura, com gente como o próprio Paulo Guedes e, antes dele, Pedro Malan, Pérsio Arida, André Lara Rezende, Edmar Bacha e essa turma que encontra acolhida na Casa das Garças, além de meia-dúzia de economistas da USP, como é o caso de João Sayad. Então entendo que a manutenção e expansão dos níveis da dívida pública nada mais é que a apropriação do excedente social por essa turma, aplicadores, acionistas e até outros rentistas urbanos e rurais. E que, se houvesse mais educação, seria mais fácil transformar as instituições que contribuem para a predação dos menos favorecidos. Além disso, mais educação levaria à criação de outras instituições também voltadas a reduzir a desigualdade.
Essa macacada que chegou ao poder com Jair Bolsonaro foi ungida pela mais espantosa frente única de interesses, inclusive as antigas e futuras vítimas desse mundo regido pela desigualdade. Mas falei lá no mural do Nytha em Leonardo Padura, um cara que nasceu já durante o período em que o comunismo regia a vida de Cuba. Li seu outro livro "O homem que amava os cachorros", e, na verdade, contei três homens: o narrador da história (cujo irmão foi proibido de estudar medicina em Cuba por ser viado), segundo, Trotsky e, terceiro, seu assassino o espanhol Ramón Mercader. O livro do qual vou citar partes é, como já referi na postagem de 7/fev/2019:
PADURA, Leonardo (2017) Hereges. São Paulo: Boitempo. (Romance. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacth).
Então fiquei associando coisas que Padura fala sobre judeus, sua condição de "errantes" na Europa e a tragédia que também presidiu sua relação com a Cuba pré-revolucionária. Na Cuba revolucionária, temos um balanço triste. Mas comecemos com uma citação mais relacionada com a cultura judaica, o que me lembrou em algumas medidas aquele messianismos/pentecostalismo brasileiro com o qual tenho contato há mais de 60 anos, ainda menino morador de Campo Grande, Matto Grosso e, ao que me consta, a adoção do antigo testamento. Entendo que esse ambiante de -como dizem- liberalismo econômico e conservadorismo político tem muito a ver com essa evolução. Mas tudo isso precisa de uma variável de controle que os estudiosos da economia europeia devem considerar. O próprio neo-liberalismo é terrível para os desvalidos da Europa, mas nem se compara com o que acontece no mundo subdesenvolvido, destacando-se o Brasil. Falando em Europa e Cuba, não podemos esquecer que o fim do comunismo se deve muito menos àquelas conexões financeiras, e muito mais à própria via autoritária dos governantes e dos grupos de interesse a eles associados, praticamente sempre envolvidos com a corrupção. Agora começo uma citação grande (na página 267 do livro recém mencionado) e outra enorme das páginas 420 a 423 e ainda outra da página 432. E vou marcar com [[número]] comentários que endereçarei a certas passagens, lá como pós-escritos e vou usar [...] para os comentários de esclarecimento que inseri ao texto original.
Comecemos. Página 267,
'[...] Pouco depois da destruição do Templo [de Israel, de Salomão], em meio às perseguições de Adriano, foi realizada uma grande assembleia de rabinos e doutores e se estabeleceram as duas regras fundamentais para a sobrevivência da fé dos hebreus, duas regras válidas até hoje. A primeira é que o estudo é mais importante que a observância das proibições e das leis, pois o conhecimento da Torá leva à obediência de suas sábias prescrições, enquanto a observância pura sem a compreensão racional da origem das leis, não garante uma fé verdadeira nascida da razão. A segunda regra, você vai lembrar pela história de Judá Abravanel que tantas vezes [Ben Israel, o chacham, o professor, contou], tem a ver com a vida e a morte. Quando é preciso morrer antes de ceder?, perguntaram esses sábios há mais de 1.500 anos, e responderam para todos nós que somente em três situações: se o judeu for obrigado a adorar falsos ídolos, a cometer adultério ou a derramar sangue inocente. Mas todas as outras leis podem ser transgredidas em caso de perigo de morte, pois a vida é o mais sagrado', disse o professor, e esticou o braço como se fosse pegar de volta o cachimbo, mas desistiu. 'Com isso quero dizer apenas duas coisas, Elias Ambrosius Montalbo de Ávila: uma, que as leis devem ser pensadas pelo homem, pois é para isso que ele tem inteligência, e a fé deve ser raciocínio antes da aceitação. A segunda é que, se você não violar nenhuma das grandes leis, não estará ofendendo a Deus de forma irreversível. E, se não ofender o Bendito, pode esquecer seus vizinhos. Claro, se estiver decidido de enfrentar a ira dos homens, que às vezes pode ser mais terrível que a dos deuses.' [[1]]
Sigamos nas páginas 420 a 423, fazendo antes uma ligeira observação. A chamada feita pelo Nytha sobre a visão de Jessé Souza coincidiu com minha leitura das páginas que acabo de referir de "Hereges". Então estou numa parte em que uma guria sumida teve a atenção do detetive Mário Conde despertada, a pedido de uma amiga dela. Ambas são emo (Google: Emo é também como uma cultura alternativa, um estilo de vida, que se propagou pelo Brasil e pelo mundo. Muitos jovens se identificam com a ideologia emo, mas o que mais chama atenção é a maneira que os adeptos desse estilo de vida se vestem.) Ao lado de outras "culturas" punk, rasta freaky e miti (???, fora os beatniks e góticos), essa turma emo, segundo a interpretação corrente no livro, expressavam basicamente ódio ao sistema que os jovens cubanos sentiam em 2008.
Quase uma década do fim do comunismo soviético e, pelo que entendo, até a fome fustigou a população cubana. As promessas, o "homem novo", os "pioneiros", tudo virou balela, uma enorme desilusão. A leitura dessas páginas retratando a desilusão dos jovens cubanos comoveu-me, pois entendo que o problema devastou o mundo inteiro, ocidente e oriente, pobres e ricos, nortistas e sulistas. Nesse clima de generalizado descontentamento é que sou capaz de explicar os próprios rumos de destruição da social-democracia europeia, da eleição de Trump nos Estados Unidos, da eleição dessa macacada de direita pela América do Sul, culminando com a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil. (Sem falar no italiano Berlusconi e no britânico Tony Blair). Então, ao ver Padura falando em Cuba, fiquei imaginando que muito daquilo que desnorteia os jovens de lá também serve para explicar muita coisa deste país relativamente pobre (andei ouvindo que o PIB per capita cubano é assemelhado ao brasileiro), deseducado e desabotinadamente desigual.
Aqui o que vemos é uma entrevista que o detetive entretém com uma professora especialista no comportamento desses jovens (a Rosana Pinheiro-Machado de lá...). Vão falar o narrador da história, o detetive e a doutora.
Vai lá, Padura, páginas 420 a 423,
A doutora Eugenia Cañazires era considerada a máxima autoridade local na questão da relação com o corpo dos jovens adeptos das filosofias punk, emo, rasta e freaky. Passara anos convivendo com as ânsias e angústias daqueles garotos e trocando reflexões com especialistas, como o francês David Le Breton, segundo ela um sujeito encantador e o mais coerente dos estudiosos do assunto. O livro de Cañazires sobre a história e o presente da prática da tatuagem em Cuba era um dos resultados dessa aproximação.
A mulher, navegando por seus sessenta e poucos anos, mostrava os sinais da influência exercida sobre si por seus objetos de estudo. Em cada orelha usava quatro brincos, na mão uma pequena borboleta tatuada, e uma carga de pulseiras e colares de todas as cores e materiais que se possam imaginar, mais cores e materiais do que sua idade podia suportar sem beirar o ridículo. De algum modo, com aquela carga de penduricalhos e os olhos de um verde agressivo, mais do que socióloga, parecia uma das bruxas de Macbeth, segundo os esquemáticos critérios de Conde.
-No fundo desses comportamentos sempre há uma grande insatisfação, muitas vezes com a família. Mas desse círculo se projeta a sociedade, também opressiva, com a qual querem romper, no mínimo tomar distância para buscar alternativas familiares e sociais: daí o pertencimento à tribo. A tribo costuma ser democrática, ninguém obriga ninguém a pertencer nem a permanecer, mas como conjunto potencializa o sentimento de escolha voluntária e, com ela, o de liberdade que é o que está no destino dessas buscas. Liberdade a qualquer preço, e zero pressão familiar ou social ou religiosa. E nem ouvir falar de política. Mas não se trata só da libertação da mente das ideias impostas por um sistema de relações caduco, com também da libertação da mente do corpo onde habita. Você pode imaginar que pretender tudo isso num país socialista, planejado e vertical... é botar lenha na fogueira! Veja, desde o tempo dos gnósticos, e como retomou Nietzsche e agora os pós-evolucionistas, o corpo é considerado um recipiente inadequado para a alma. Por isso, um fundamento importante das elucubrações dessas filosofias assimiladas por esses jovens é que o homem não será totalmente livre enquanto não perder toda e qualquer preocupação com o corpo. E, para começar a se distanciar do corpo, acentuam sua feiura, sua escuridão, ferem-no, marcam-no, mancham-no, mas muitas vezes também o drogam para sair dele sem sair. [[2]]
Conde escutava e tentava segui-la por aquele fluxo de revelações capaz de apresentá-lo a um conceito de busca da liberdade que, afinal, levava apenas à sua negação, pois abria as grades de outros cárceres, como entendia ele, militante agnóstico e, com toda certeza, pré-evolucionista. O mais corrosivo era que, nos últimos anos, ele convivera na mesma cidade com aqueles jovens e quase não parara de observá-los, considerando-os uma espécie de palhaços da pós-modernidade obcecados por sair dos códigos sociais com o recurso de tornar-se notavelmente [sic] diferentes, jamais lhes atribuindo a profundidade de um pensamento e de objetivos libertários (libertários mais que libertadores, reafirmou-se na ideia, apoiado na anarquia de suas buscas). Apesar dos grilhões que usavam. Mas eram seu próprios grilhões, e essa propriedade indicava a diferença. A diferença num país que pretendia ter apagado as diferenças e que, na realidade de todos os dias, ia se enchendo de camadas, grupos, clãs, dinastias que destroçavam a suposta homogeneidade concebida por decreto político e por mandato filosófico.
-Os gnósticos, que misturavam cristianismo e judaísmo [[3]] para tentar chegar a um conhecimento do intangível, estão na origem de todas essas filosofias juvenis, embora seus praticantes quase nunca tenham a menor ideia disso. Os que pensam um pouco consideram que a alma é prisioneira de um corpo submetido à duração, à morte, a um universo material e, portanto, obscuro. Por isso levaram o ódio ao corpo ao extremo de considerá-lo uma indignidade irremediável. Esse processo é chamado de ensomatose: porque a alma caiu no corpo insatisfatório e perecível no qual se perde. A carne do homem é a parte maldita, condenada à morte, ao envelhecimento, à doença. Para chegar ao intangível é preciso libertar a alma: sempre a libertação, sempre a liberdade, como se vê. Mas todo esse pensamento, mal cortado e mal ajambrado, funciona de maneiras muito diferentes na mente desses garotos. Porque desprezam o corpo, mas muitas vezes também temem a morte. E se empenham em corrigir o corpo, em superar o que Kundera (por que você acha que Judy o lê? chamou de insustentável leveza do ser. Lembra-se de Blade Runner e suas criaturas de físico perfeito, mas também condenadas à morte? Esses jovens se congratulam por estar vivendo no que Marabe chama de tempo pós-biológico, e Stelare, de pós-evolucionista. Mas a verdade é que a maioria deles não tem ideia dessas sínteses, só de suas consequências, às vezes só de suas bravatas. Mesmo assim, porém, participam da certeza de estar vivendo no tempo do fim do corpo, esse lamentável artefato da história humana que agora a genética, a robótica ou a informática podem e devem reformar ou eliminar.
-E vamos acabar com uma cabeça enorme e braços magrinhos, ou com braços fortes e cabeça oca? Porque os replicantes de Blade Runner são grandes e atléticos - e interrompeu sua saraivada de bobagens quando ia expor sua avaliação machista das mulheres replicantes, que, com bem lembrava, eram muito gostosas.
-O que quero dizer é que tomar um porre de todos esses conceitos pode ter resultados muito desagradáveis. A busca da depressão abre as portas para a verdadeira depressão, o anseio de liberdade pode levar à libertação, mas também à libertinagem, que é o mau uso da liberdade, e a recusa do corpo muitas vezes leva a profundezas mais tenebrosas do que buracos na orelha, no clitóris ou na glande , ou cortes nos braços. A inexistência de Deus pode levar à perda do temor do temor a Deus. Vocês têm de encontrar essa moça, porque alguém assim é capaz de fazer qualquer coisa. Inclusive contra si mesma.
"Porra!", pensou Conde já se sentindo cansado pelas novas cargas recebidas.
-O pior -continuou a doutora Cañizares, já sem freios naquele declive de seu pensamento e suas obsessões-, o terrível é que, embora pareçam um grupo reduzido, esses jovens estão expressando um sentimento geracional bastante difundido [[4]]. São resultado de uma perda de valores e categorias, do esgotamento de paradigmas verossímeis e de expectativas de futuro que percorre toda a sociedade, ou quase toda... ou toda a parte dela que diz ou faz mais ou menos o que realmente pensa. A distância entre o discurso político e a realidade se abriu demais, cada um vai para um lado, sem se olharem, quando deveria haver um discurso que observasse a realidade e se redefinisse. [[5]]
-Pode me dizer isso de outra forma, doutora? É que estou ficando velho e burro.
A mulher balançou as pulseiras nos punhos e sorriu:
-Meu rapaz, o caso é que esses garotos não acreditam em nada porque não encontram nada para acreditar. A história de trabalhar por um futuro que nunca chegou não lhes diz coisa alguma, porque para elas já não é nenhuma história, é mentira. Aqui, quem não trabalha vive melhor do que quem trabalha e estuda, quem se forma na universidade depois passa o diabo para poder sair do país se quiser ir embora, quem se sacrificou durante anos está passando fome com uma aposentadoria que não dá nem par abacates. E então nem fazem as contas: alguns vão para onde podem, outros querem ir, outros vivem de bicos, outros fazem o que dá dinheiro: putas, taxistas, cafetões... E outros ainda viram freakies, roqueiros e emos. Se somar todos esses outros, você vai ver que a conta é pesada, são muitos. A coisa é assim. Sem rodeios. Chegamos a isso depois de tanta ladainha sobre a disputa fraternal para ganhar a bandeira de coletivo de vanguarda nacional e a condição de operário exemplar na emulação socialista. [[6]]
E concluamos com a terceira citação, agora da página 432,
O que Mario Conde podia dizer que sabia, uma coisa que antes só intuía e agora havia comprovado de forma convincente, era que Judy [a garota emo que levou o detetive a sua segunda investigação nas entranhas da vida cubana] e seus amigos constituíam a ponta visível e mais chamativa do iceberg de uma geração de hereges com causa. Aqueles jovens haviam nascido justamente nos dias mais duros da crise, quando mais se falava da Opção Zero, que no auge do desastre poderia levar os cubanos a viver nos campos e montanhas, como indígenas caçadores-coletores do neolítico insular da era digital e das viagens espaciais [[7]] Esses garotos haviam nascido e crescido sem nada num país que começava a se afastar de si mesmo para se transformar em outro, no qual as velhas palavras de ordem soavam cada vez mais ocas e sem sentido, enquanto a vida cotidiana se esvaziava de promessas e se enchia de novas exigências: ter dólares (independentemente da forma de obtenção), ganhar a vida com os próprios meios, não pretender participar da coisa pública, olhar o mundo que estava além das bardas insulares como uma criança observando um saco de balas e aspirar a pular nesse mundo. E pulavam, sem romantismos nem mentiras. Como disse à sua maneira a doutora Cañazires, a falta de fé e de confiança nos projetos coletivos [[8]] havia gerado a necessidade de criar intenções próprias, e o único caminho vislumbrado por aqueles jovens para atingir essas intenções era a libertação de todos os lastros. Não acreditar em nada a não ser em si mesmos e nas exigências da própria vida pessoal, única e volátil: afinal, Deus havia morrido [estamos falando de Nietzsche] -mas não só o deus do céu -, as ideologias não enchem a barriga de ninguém, os compromissos amarram. A profundidade e a extensão dessa filosofia conseguiram mostrar a Conde a urdidura mais dolorosa daquele mundo que, assim intuía, seu olhar mal pudera esquadrinhar. É verdade que Yoyi Pombo [um self-made man milionário desenvolvendo atividades legais e ilegais] tentara lhe mostra muitas vezes aquela realidade, à base de cinismo pragmático e ausência de fé. E que alguém como a mother de Yovany [amigo também emo de Judith] e da mãe do emo pálido e a dos jovens como Judy pareciam séculos, talvez até milênios. Os desastres que esses garotos haviam sido testemunhas e vítimas geraram indivíduos decididos a se afastar de todo e qualquer compromisso e criar suas próprias comunidades, espaços reduzidos onde encontravam a si mesmos, longe, muito longe, das retóricas de triunfos, sacrifícios, recomeços programados (sempre apontando para o triunfo, sempre exigindo sacrifícios), naturalmente sem contar com eles [[9]]. O mais terrível era que essas trilhas estreitas pareciam beirar precipícios sem fundo, letais em muitos casos. Havia até um componente antinatural iluminando as buscas de alguns desses jovens: a autoagressão pela via das drogas, as marcas corporais, a pretensa depressão e a negação; a ruptura dos tradicionais limites éticos com prática de um sexo promíscuo, diferente, vazio e perigoso, muitas vezes isento de emoção e sentimentalismo. E até de camisinha, em tempos imunodeprimidos.
Se aquele era o caminho, da liberdade, sem dúvida era uma via dolorosa, como muitas das autoestradas que pretenderam levar à redenção, terrestre ou transcendente. Mas, apesar de seus muitos preconceitos e sua moral pré-evolucionista, agora que conhecia um pouco mais daquele afã emancipador, Conde não podia deixar de sentir uma calorosa admiração por jovens que, como Judy, a filósofa e líder, sentiam-se capazes de jogar tudo no fogo -'É melhor se queimar do que se apagar lentamente', Cobain dixit-, inclusive o próprio corpo. Porque sua alma já era incombustível, mais ainda, inapreensível. Ao menos por enquanto. [[10]]
DdAB
[[1]] Separei esta primeira citação, pois ela deixa claro o papel da educação como prática da liberdade, se bem refiro o título de um livro de Paulo Freire. E fica demarcado um enorme contraste com aquela macacada que tanto cita a bíblia, mas tem uma fé que não é verdadeira, por não ser filha da razão. Em outras palavras, o Brasil contemporâneo foi tomado por um messianismo em que a turma, precisamente pela falta de educação formal, mas sabendo ler, balbuciando frases, não pode ser chamada de tendo feito uma escolha racional. Segue-se que os economistas que se obrigam a adorar falsos ídolos, como é o caso da heterodoxia radical, estão simplesmente falando de sua deficiente capacidade de raciocinar do que negando a importância do postulado da racionalidade para construir qualquer modelagem do mundo, seja religiosa, seja econômica. O mais grave tropeço consiste em -quem sabe?- desprezar o uso da razão como principal instrumento para combater a violência!
[[2]] Coisas em que eu nunca havia pensado vão emergindo da leitura, mas minha ideia fixa no Brasil e na tragédia que levou Lula a adotar a postura que vimos, a própria tragédia exibida pelo PT e sua predação por bandidos instalados no establisment brasileiro, e a tragédia que representou para o Brasil a eleição de Jair Bolsonaro, com a tal pauta "liberal na economia" e "conservadora nos costumes": o fim e mais além dele. Tatuagens, mutilações, alienação mental? É aqui conosco mesmo.
[[3]] Estamos falando também nas igrejas pentecostais brasileiras, cujo rebanho é constituído pela turma de baixo nível educacional, trabalhadores investidos de ralo conteúdo de capital humano.
[[4]] Ao ler este trecho da entrevista que a dra. Cañazares deu ao detetive, fiquei pensando que esta questão vai muito além do triste legado que o comunismo cubano deixou. Quero dizer, vale também para a União Soviética, para os Estados Unidos, para o Japão, para todo mundo! Naturalmente também penso naquela turma do voto em Bolsonaro e a fração de eleitores que compartilham esse sentimento de ruína.
[[5]] Insisto no ponto: estamos longe de tomar conhecimento apenas de um fenômeno característico da juventude cubana. A opressão foi a mesma na URSS e em todo mundo social-democrata, para não falar no terceiro-mundismo. Tantos sistemas econômicos e sociais estão encalacrados nessa situação que parece não haver alternativa, especialmente a partir da dupla Tatcher-Reagan que começaram a minar mortalmente a social-democracia. Há tempos aprendi o conceito de fake jobs (ver aqui, onde pendurei num rodapé o primeiro artigo de jornal que li a respeito), que vêm a ser basicamente escritórios artificiais em que desempregados se submetem à disciplina do mercado de trabalho, mas vivem num mundo em que o objetivo central é ocupá-los e, a lo mejor, treiná-los para voltarem ao (ou ingressarem no) mercado de trabalho.
[[6]] Parece que nem no comunismo houve verdadeira igualdade ou liberdade. Parece que, como aqui entre nós, na Europa, em todo lugar, um grande mal-estar cerca enormes grupos humanos. Parece que, mesmo nos países de maior igualitarismo os pobres têm performance inferior à dos ricos: menos educação, mais doenças, menos patrimônio, mais criminalidade, e por aí vai. E o comunismo cubano ainda deixou aquele grande legado de fome, quando caiu o da União Soviética. Fome também foi o preço pago na China pelos atropelos do "grande salto para frente" e da "revolução cultural. Parece que se deseja no Brasil uma "reforma da previdência" que sirva para aprofundar o abismo existente entre pobres e ricos.
[[7]] Uma sociedade que oferece este tipo de perspectiva como um futuro realmente possível foi levada ao desânimo por dilatados tempos de desacertos e tropelias.
[[8]] O interessante é que essa falta de fé nos projetos coletivos também invade a sociedade brasileira e provavelmente o restante da sociedade mundial. Já falei em Tony Blair, Silvio Berlusconi, Donald Trump e mais uma pilha de imitadores, inclusive o rapaz da Coreia do Norte, uma sociedade fechada como nos velhos tempos soviéticos. Acredito que este tipo de consideração trazido à realidade brasileira ajuda a darmos a devida dimensão para o bandwagon effect criado em torno da candidatura de Jair Bolsonaro. No país da democracia de voto obrigatório e de analfabetismo agudo, não seria de esperar outra saída que não a descrença nos projetos coletivos. A privatização no país de 90% de desvalidos quer dizer mesmo é que o patrimônio público será transferido aos ricos e, ainda mais vergonhoso, que é muito provável que boa parte dessa transferência patrimonial seja financiada pelo próprio governo. Além disso, vemos o desmonte das modestas ações do governo na provisão de bens públicos e bens de mérito.
[[9]] Mas o Brasil tem uma juventude, parte dela, engajada, por exemplo, na UNE. E também, dói-me reconhecer, inscrita em partidos de direita.
[[10]] Parece que a palavra "liberdade" é que se torna crítica nesse contexto e me faz lembrar, novamente, a tragédia ocorrida em Kronstadt em 1921. Ou seja, a revolução ainda era não mais que uma toddler e já provocou tanta desilusão naqueles segmentos da população dessa cidade/vila. Por todos esses desvios da rota que associava revolução e liberdade é que, com o tempo, vim a abjurar o socialismo (ou seja, proibição da propriedade privada dos meios de produção) e tempos depois entender que a humanidade ainda não criou instituições adequadas a fim de ampará-lo. E talvez nunca crie, embora eu ache que, sim, criará.
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09 fevereiro, 2019
Ulysses: do 'Stately' ao 'Yes'
Querido diário:
Lendo o intrigante livro:
SCHÜLLER, Donaldo (2017) Joyce era louco? Cotia: Atelier,
vim a pensar - talvez já tenha lido algo assemelhado antes, em algum comentador, não lembro - não apenas no título, sendo conduzido pelo autor sul-riograndense, mas também aceitei com certa relutância a hipótese levantada há mais de meio século que o autor dublinense era mesmo louco, uma loucura povoada, se não por outras causas, pela sífilis (Donaldo, página 32). Sífilis, minha gente, sífilis. Joyce. O festejado residente de Trieste parece ter dado inúmeras provas de sofrer dessa doença.
Schüller, exibindo uma erudição realmente enciclopédica em matéria de literatura e psicanálise, não vacila em aceitar a hipótese da sífilis joyceana, como também vai adiante e dá como evidência da loucura a interpretação que faz no último livro (ele próprio tradutor, obra em seis volumes, edições brasileiras esgotadas), intitulado Finnegans Wake, à desagregação insana de boa parte do escrito.
A interpretação corrente é que o Ulysses tem como primeira palavra o adjetivo ou advérbio (como já vi interpretação) stately, ou seja, aquele "s", é a inicial da palavra sífilis. E tem como última palavra o advérbio Yes, finalizando o famoso monólogo de Molly Bloom, cuja primeira récita vi/ouvi em Porto Alegre mesmo, há milhares de anos. Declamou o monólogo a jovem atriz Fernanda Montenegro, numa peça que teve envolvimento de Millôr Fernandes. Ou seja, a última letra do livro é a mesma da triste palavra. De modo paralelo àqueles dois "s", o segundo deles sinalizando o início e o fim, a última palavra do monólogo da cantora Molly não carrega ponto, mas tem inicial (Y daquele yes) em maiúscula, apenas sucedida pelo ponto final, o único sinal de pontuação em todo monólogo (na edição Penguin em inglês). Sustenta a hipótese o talvez fato que passo a investigar sobre a existência de uma profusão de "s" em todo livro.
Fiz um experimento sobre esses esses (faltou acento circunflexo no primeiro "esses", a fim de fechar a pronúncia do "e" inicial, né?), sabendo não ser fácil compará-lo com outros livros. O plano foi ver se os "s" de algum outro livro com um número aproximado de palavras também ocorrem em profusão, montes de "s".
Meu experimento consistiu em pegar uma edição Gabler que tenho em docx do Projeto Gutemberg e substituir todos os "s" por, digamos, 3,1416. Com isto, o contador de palavras diz quantas substituições foram feitas. Ah. O Libre Office rodando no Ubuntu, depois de alguns desafios a minha persistência, contou 76.884 vezes a letra "s". O texto txt limpo tem 584 páginas. Variável de controle: Don Quijote, em espanhol, também do Projeto Gutemberg tem 125.728 vezes a letra "s" em 810 páginas. Normalizando os resultados, observamos:
Don Quijote 155 "s" por página
Ulysses 131 "s" por página
Infelizmente daí nada pode ser concluído sobre a loucura de James Joyce ou do próprio Dom Quixote, pois a diferença entre essas duas línguas faz variar um elemento que deveria ser mantido constante, obviamente a língua da redação. Mas nesse ponto ocorreu-me a solução: contar os "s" e as palavras de um documento que tem fé pública e autor consagrado. Pois então. Pois é, pois sim, pois não. Minha escolha recaiu sobre minha tese de doutorado! Lá encontramos 413 páginas (Joyce não tinha os requisitos que me foram apresentados pela Oxford University, que recomendava uma tese tão curta quanto possível, o que, em boa medida, infringi...). Então com essas 413 páginas até que não foi tão curta assim... E quantas letras "s"? Fazendo a substituição pelo já afamado 3,1416 (não fui mais casas adiante do "pi", de sorte a não enviesar os resultados, pois poderia ter escrito, digamos, ). Então, e apenas então, contei o aparecimento da letra "s" precisamente 29.663 vezes, ou seja, 72 vezes por página.
E a que ponto cheguei? Ampliei a listagem dali de cima mantendo a ordem alfabética:
Don Quijote 155 "s" por página
Duilio 72 "s" por página
Ulysses 131 "s" por página
Conclusão: parece que o Donaldo Schüller tem mesmo razão com aquela encrenca da sífilis e a profusão de "s" na opus magnum de James Joyce -então, à época da redação- britânico. Eu, por não ser lá muito dado a sorrisos, fui o que menos encaçapou "s" no trabalho, tendo a metade da língua que consta da irmã, o espanhol, e Dom Quixote!
Hipótese a investigar: se, em castelhano, a turma chia mesmo mais que português de Portugal e carioca do Rio de Janeiro!
DdAB
P.S. Tirei a imagem da Wikipedia em inglês, ao buscar o verbete "Ireland", queria saber se minha memória não me traía ao dizer que a conclusão do livro foi anterior ao nascimento da república da Irlanda. E confirmei que foi mesmo. E a escolhi em especial homenagem à reduzida fração de esquerdistas brasileiros que consideram que tudo o que acontece de errado no Brasil deve-se ao generalizado controle de tudo pelo capital financeiro. Obviamente considero esta visão um atestado de preguiça intelectual, mas especialmente horripilante, pois mostra que a macacada que agora critico não lei aquele artigo de James Clifton que vivo elogiando.
CLIFTON, James A. Competition and the evolution of the capitalist mode of production. Cambridge Journal of Economics. Vol. 1, No. 2 (June 1977), pp. 137-151.
E que tem uma tradução ao português brasileiro feita, se bem lembro, por meu querido amigo Achyles Barcellos da Costa. E que talvez ainda tenha o link dela em meus Google Documents.
abcz
08 fevereiro, 2019
Minha Correspondência com Francisco Marshall...
Querido diário:
Como sabemos, as correspondências (especialmente epistolares) se dividem em ativas e passivas. Pois minhas comunicações com Francisco Marshall ocorrem apenas de modo ativo, ou seja, enviei-lhe dois e-mails e não recebi nenhuma resposta. Por considerar que terei dito algo interessante, decidi trazer o que escrevi a público, editando ligeiramente. Seria mais profícuo se eu dissesse exatamente o que ele disse, um diz-que-diz relevante em muitos casos, mas nas presentes circunstâncias, impossível.
Em 4 de março de 2018, escrevi:
Gostei de tua coluna de hoje no jornal ZH, Caderno Doc, pois vejo o trio cérebro-mente-sociedade interligado, com determinações mútuas. Sempre foi assim, mas hoje sabe-se mais. Para economistas de minha simpatia, falou-se ou se fala em binômio cérebro-mão. Claro que o cérebro está moldado pela sociedade, da mesma forma que a mão. E a mão molda o cérebro e tudo ao revés. Ovo e galinha.
Porém. No final do artigo falas "Esqueça esquerda e direita". Eu, com traços inesquecíveis de esquerda em meu pensamento, ponderarei que, em geral, empatia (altruísmo) é de esquerda e egoísmo é de direita. Prudência é de esquerda e irracionalidade está mais para a direita (que não entende que precisa cultivar a sociedade, a fim de contar com indivíduos mais livres, se é que o objetivo dela é este). Humanidade é de esquerda e meus predadores são de direita. É o que me parece.
Li com atenção a coluna "Pusilânimes" do Caderno Doc do jornal Zero Hora deste fim de semana. E achei que poderia contribuir para a compreensão dos limites do mercado, do estado e da comunidade em sua capacidade de agregarem preferências coletivas. Cito um trecho de um livro que editei em co-autoria com Vladimir Lautert, de uma passagem (longa, temo dizê-lo) inserido no capítulo final:
"[...] nem todas as nossas dificuldades resolvem‐se simplesmente com o apelo ao conceito de média. Em muitos casos, nosso interesse reside precisamente no valor total da distribuição e não apenas de sua tendência central. Faláramos antes em número médio de ovelhas por cão ou por lobo, mas, naturalmente, o que mais interessa no processo de criação de ovinos é o total do rebanho. E nosso interesse na própria ovinocultura é mais centrado na deliberação com que nos dedicamos a produzir bens e serviços, a fim de atendermos a nossas próprias necessidades materiais e mesmo espirituais. Ainda assim, pensarmos em bem‐estar espiritual leva‐nos para fora do escopo da ciência econômica, mais voltada ao estudo das condições de geração, apropriação e absorção do valor adicionado que associamos à produção de bens e serviços que propiciam o bem‐estar material. Deste modo, ao aprofundarmos a tentativa de mensurar o nível de bem‐estar material alcançado por determinada comunidade, precisamos fazer a associação entre fins (usos) e meios (fontes), na busca de traços de racionalidade da ação humana voltada a produzir bens e serviços. Desde o Capítulo 1 (Divisão), ressaltamos duas categorizações essenciais para dar conta das dimensões produtiva, alocativa e distributiva contidas na ação societária devotada à geração, apropriação e absorção do valor que a sociedade adiciona ao envolver‐se na produção de bens e serviços.
"Primeiramente, falamos na tríade mercado‐estado‐comunidade, deixando clara nossa visão da evolução do bando à comunidade, da complementaridade desta com a criação de direitos de propriedade e sua garantia pelo que hoje entendemos por estado. Seguimos sinalizando a importância que, como tal, este assume para viabilizar o aparecimento e a expansão da troca, da divisão do trabalho e, ao final, das economias monetárias. Também mencionamos que a forma como o poder é
distribuído entre os integrantes dessa tríade favorece em maior ou menor grau a geração de excedente econômico. Se uma comunidade fraca se deixa equilibrar por um estado forte, veremos o comprometimento da eficiência distributiva. Uma comunidade forte e espiritualizada poderá comprometer o desenvolvimento das forças produtivas, a divisão do trabalho e, como tal, o desenvolvimento do mercado. Um mercado forte pode desequilibrar a ação do estado fraco, enviesando o uso do poder político, em possível prejuízo da comunidade, para não falar no prejuízo direto, por exemplo, com a cobrança de preços monopolísticos pelos produtos que vemos transacionados."
[E aí começa a segunda categorização, que acrescento aqui no blog]
"De acordo com a segunda categorização, afirmamos que a vida social tem muitas instâncias organizativas, como é o caso da econômica, da artística, da jurídica, e por aí vai. Centrarmo‐nos na econômica não significa negar as demais, mas apenas destacar a esfera cujo estudo nos faz economistas. Neste caso, reunimos as organizações econômicas em três classes: produtores, fatores e instituições. Ao fazê‐lo, admitimos que nossos problemas com a mensuração já começaram com a definição de termos, pois o que chamamos de organização é designado em parte da literatura como instituição. Somos da turma que fala em instituição precisamente como o polo da ação econômica que envolve as famílias, o governo e as empresas que absorvem parte da produção e a relançam no processo produtivo na forma de investimento, a fim de produzir mais ou melhor no futuro. Da mesma forma, ao inserirmos o termo fatores na tríade, o usamos como abreviação para “locatários dos serviços dos fatores”, por entendermos que seus proprietários são precisamente as instituições, o que destaca uma relação entre a origem (a partir dos fatores) e o uso (pelas instituições) dos recursos disponíveis na sociedade a cada instante de tempo. Locatários tomam algo em aluguel e pagam por isso, mas esta formulação aumenta a ambiguidade. Com efeito, também afirmamos que os (locatários dos serviços dos) fatores realugam serviços dos fatores de trabalho e capital aos produtores que, naturalmente, lhes dão – aos serviços dos fatores – encaminhamento produtivo. Frases complicadas: é esse o preço que precisamos pagar para evitar a ambiguidade. Com a finalidade de simples registro, relembramos que falta um ponto para determinarmos inequivocamente o plano sobre o qual o fluxo circular da renda é desenhado. Trata‐se da relação encetada entre produtores e instituições, respectivamente origem e destinatárias da produção de bens e serviços, que será detalhada adiante."
"Primeiramente, falamos na tríade mercado‐estado‐comunidade, deixando clara nossa visão da evolução do bando à comunidade, da complementaridade desta com a criação de direitos de propriedade e sua garantia pelo que hoje entendemos por estado. Seguimos sinalizando a importância que, como tal, este assume para viabilizar o aparecimento e a expansão da troca, da divisão do trabalho e, ao final, das economias monetárias. Também mencionamos que a forma como o poder é
distribuído entre os integrantes dessa tríade favorece em maior ou menor grau a geração de excedente econômico. Se uma comunidade fraca se deixa equilibrar por um estado forte, veremos o comprometimento da eficiência distributiva. Uma comunidade forte e espiritualizada poderá comprometer o desenvolvimento das forças produtivas, a divisão do trabalho e, como tal, o desenvolvimento do mercado. Um mercado forte pode desequilibrar a ação do estado fraco, enviesando o uso do poder político, em possível prejuízo da comunidade, para não falar no prejuízo direto, por exemplo, com a cobrança de preços monopolísticos pelos produtos que vemos transacionados."
[E aí começa a segunda categorização, que acrescento aqui no blog]
"De acordo com a segunda categorização, afirmamos que a vida social tem muitas instâncias organizativas, como é o caso da econômica, da artística, da jurídica, e por aí vai. Centrarmo‐nos na econômica não significa negar as demais, mas apenas destacar a esfera cujo estudo nos faz economistas. Neste caso, reunimos as organizações econômicas em três classes: produtores, fatores e instituições. Ao fazê‐lo, admitimos que nossos problemas com a mensuração já começaram com a definição de termos, pois o que chamamos de organização é designado em parte da literatura como instituição. Somos da turma que fala em instituição precisamente como o polo da ação econômica que envolve as famílias, o governo e as empresas que absorvem parte da produção e a relançam no processo produtivo na forma de investimento, a fim de produzir mais ou melhor no futuro. Da mesma forma, ao inserirmos o termo fatores na tríade, o usamos como abreviação para “locatários dos serviços dos fatores”, por entendermos que seus proprietários são precisamente as instituições, o que destaca uma relação entre a origem (a partir dos fatores) e o uso (pelas instituições) dos recursos disponíveis na sociedade a cada instante de tempo. Locatários tomam algo em aluguel e pagam por isso, mas esta formulação aumenta a ambiguidade. Com efeito, também afirmamos que os (locatários dos serviços dos) fatores realugam serviços dos fatores de trabalho e capital aos produtores que, naturalmente, lhes dão – aos serviços dos fatores – encaminhamento produtivo. Frases complicadas: é esse o preço que precisamos pagar para evitar a ambiguidade. Com a finalidade de simples registro, relembramos que falta um ponto para determinarmos inequivocamente o plano sobre o qual o fluxo circular da renda é desenhado. Trata‐se da relação encetada entre produtores e instituições, respectivamente origem e destinatárias da produção de bens e serviços, que será detalhada adiante."
DdAB
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07 fevereiro, 2019
O Ex-juiz Moro e o Oximoro da Baixaria
Todos sabemos que Jean Paul Belomondo era o feio-bonito do cinema do mundo originário da França. E feio-bonito é um oximoro (ou oxímoro, que diz no Dicio: Figura de linguagem em que palavras de sentidos opostos são combinadas de modo a parecerem contraditórias, mas que reforçam a expressão: gentileza cruel; belo horroroso; música silenciosa.). Da mesma forma, como falei há anos, "Juiz Moro" é um oximoro, pois -a rigor- o garoto nunca foi "juiz", mas "inquisidor" muito do malvado, ou assim penso. Direito de opinião, claro, interpretação, como a que, no outro dia, narrei ter Sigmund Freud feito sobre o "Moisés", de Michelangelo. E, segundo fontes insuspeitas, Moro tem um cachorro de estimação filiado ao PSDB.
E de onde tirei este assunto que marquei no blog como "Economia Política"? Tirei da leitura que fiz ontem da proposta que o agora ministro da justiça do governo Bolsonaro-Mourão, senhor Sérgio Moro, apresentou a proposta de sua primeiras providências no assim chamado (por mim) de sistema judiciário nacional. Nela, parece óbvio, depois de citado, ele -Moro- recomenda mudar a lei, a constituição, o curso dos rios, sei lá, a fim de se admitir a prisão em segunda instância. E também tirei da leitura que fiz horas depois de ler o jornal (ainda ontem), que vou citar em seguida. Mas também tirei de um -talvez- editorial que li assinado por Mino Carta nos tempos (não tão distantes) em que lia regularmente a revista Carta Capital. Então tirei o assunto de três lugares.
E o que disse Mino Carta, se bem lembro? Que este negócio de quatro níveis de recursos que o sistema judiciário brasileiro permite é uma embromação dos diabos. E -se não minto- os países decentes têm apenas uma ou duas instâncias da administração da justiça. Só que, diferentemente do ex-juiz Moro, do Brasil e de outra turma, o julgamento de primeira instância não é feito por um juiz (monocrático, diz o vocabulário que nos chegou modernamente), mas por um colegiado de, imagino, três juízes. Então: parece-me que a teoria da grande conspiração, ao acusar a prisão de Lula como voltada precipuamente a impedi-lo de ganhar as eleições do finado ano de 2018, quando foi eleito o sr. Jair Bolsonaro, não era "teoria" nenhuma e sim a rudeza dos fatos. E juro que, se Lula tivesse sido candidato ou se tivesse feito campanha para Fernando Haddad no palanque, ele ou Haddad teria sido eleito.
Pois então: pago a promessa da citação que fiz anteriormente. Estou citando o final do parágrafo central da página 235:
PADURA, Leonardo (2017) Hereges. São Paulo: Boitempo. (Romance. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacth).
'Com o juízo dos anjos e a sentença dos santos, anatematizamos, execramos, amaldiçoamos Uriel da Costa, pronunciando contra ele o anátema com que Josué condenou Jericó, a maldição de Elias e todas as maldições escritas no livro da Lei. Seja maldito de dia e maldito de noite; maldito ao deitar-se, ao levantar-se, ao sair e ao entrar. Que o Senhor jamais o perdoe ou reconheça! Que a cólera e o desgosto do Senhor ardam contra este homem daqui por diante e descarreguem sobre ele todas as maldições escritas no livro da Lei e apaguem seu nome debaixo do céu. Portanto, adverte-se a todos que ninguém deve dirigir-lhe a palavra ou comunicar-se com ele por escrito, ninguém deve prestar-lhe nenhum serviço, morar sob o mesmo teto que ele nem se aproximar a menos de quatro côvados de distância...' [sic]
Quer dizer, aparentemente essa ponderada (hahaha) condenação de um ser humano, foi prolatada por um colegiado (Wikipedia: a legal measure resorted to by a judicial court for certain prescribed offenses). Por mais radical que seja, tratou-se de uma condenação feita por um colegiado. Isto difere tanto das sentenças de Moro quanto das que hoje vemos e que parece terem um excesso de zelo da juíza que a redigiu. E monocromaticamente (ou seja, tudo da mesma cor...) a coroa também condenou Lula. Agora a encrenca vai para a segunda instância que, obviamente, vai validá-la, pois Lula não pode ser candidato a nada, nunca mais.
DdAB
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03 fevereiro, 2019
Mais uma Aula Antiga: comércio intra-indústria
Depois daquela aula do dia 17 de abril de 1997 (quinta-feira, aqui), encontrei umas notas também de aula na UFSC sobre o comércio intra-indústria. Fazia parte daquela disciplina em que assumi a coordenação, em substituição ao prof. Edvaldo, cuja capacidade teórica e prática o levara a rumos nacionais, tipo na agência nacional de energia. O roteiro da aula foi:
Introdução
A. Teoria do Comércio Intra-indústria
B. A Medida do Comércio Intra-Indústria
C. Um Modelo de Comércio Intra-Indústria
Moral da História
INTRODUÇÃO
. o comércio inter-indústria é aquele que se dá, por exemplo, com a empresa de automóveis Toyota, que compra minério de ferro, digamos, da Austrália, faz aço e carros e os vende aos EUA
. no caso do comércio intra-indústria, a questão é do tipo: por quê o Brasil compra vinho argentino e vende vinho para a Argentina?
. vamos responder a esta questão básica em etapas.
. dar uma olhada na teoria das vantagens comparativas, evocando os nomes de David Ricardo e Hecksher-Olin (Eli Heckscher e Bertil Ohlin, da Escola de Economia de Estocolmo), que apresentam três problemas
.a a maior parte do comércio mundial ocorre entre países com dotações de fatores assemelhadas
.b a expansão do comércio mundial do pós-guerra não tem levado a grandes realocações de recursos
.c boa parte do comércio mundial é intra-indústria
. mas o que é comércio intra-indústria?
É o comércio de produtos produzidos pela mesma indústria, ao contrário da noção mais convencional de que uma indústria vende motosserras e outra vende talheres.
. mas como explicar a exportação e importação simultânea do mesmo produto, ou de produtos similares? tipo: vinho, automóveis, talheres, motosserras, algodão.
. as novas teorias do comércio internacional centram seu interesse nas economias de escala e na diferenciação do produto.
A. TEORIA DO COMÉRCIO INTRA-INDÚSTRIA
. a teoria tradicional do comércio internacional tem sua formulação por meio da dupla Hecksher-Olin: o país tem vantagem comparativa na produção do produto que usa intensivamente o fator disponível em abundância.
. país com abundância relativa de trabalho exporta mais produtos intensivos em trabalho e importam bens intensivos em capital dos países com abundância de capital.
. um corolário desta proposição é que países com dotação de fatores assemelhados não terão muito comércio.
. outro corolário é que o comércio entre países de dotações diferentes implicará a equalização dos preços dos fatores.
. mas, a partir dos anos 1960s, começou-se a constatar que havia exceções a esse padrão com a presença de troca de produtos iguais (tipo vinho contra vinho ou algodão contra algodão).
. de fato, observou-se que os Estados Unidos vendiam algodão ao Egito e dele também compravam precisamente algodão, a França e a Inglaterra com lã
. os modelos tradicionais, adotando a moldura da concorrência perfeita, deixaram de investigar as consequências da presença tanto de economias de escala quanto da diferenciação do produto.
. existe diferenciação do produto, pois os consumidores preferem produtos similares, mas não idênticos. Lembrar o famoso artigo de Kelvin Lancaster e a relação próxima entre não mais de quatro produtos substitutos.
. todavia, se os custos em dois países são diferentes, volta a valer a teoria de Heckscer-Olin: só produz o país cujo custo é menor: produzem-se os produtos em que o aproveitamento das economias de escala expandem a competitividade das exportações.
. o diagnóstico do comércio intra-indústria foi feito nos países desenvolvidos, mas também vale para os subdesenvolvidos.
. as primeiras explicações foram:
... diferenciação do produto
... flutuações sazonais (soja em julho e soja em dezembro para abastecer a indústria da prensagem)
. reexportação: Argentina e Cuba com produto americano (automóveis lá naqueles tempos da aula).
. em particular, em termos industriais Linder (1961) disse que só se exporta um produto se houver demanda doméstica, o que difere dos produtos primários: posso não processar urânio, mas exportá-lo.
. as faixas de importação e exportação potenciais de um país é que vão determinar seu comércio: quanto mais os países exibirem estruturas de demanda semelhantes, mais eles trocarão,
. as uniões tarifárias europeias: BENELUX e a subsequente Comunidade Europeia mostraram que a maior parte do comércio foi de vender fora o que já se produzia localmente e comprar dos demais.
. Grubel e Lloyd ampliaram este argumento, mesmo para países sem uniões aduaneiras. E o mesmo fenômeno foi observado entre os então países socialistas.
. Helpman e Krugman (1985) disseram que níveis de renda per capita semelhantes levam à expansão das trocas bilaterais intra-indústria.
. Kelvin Lancaster diz que, com economias de escala em ação, quanto maior o mercado, mais possibilidades de diferenciação.
. mas deve-se ter cuidado para não ser levado a pensar em comércio intra-indústria devido ao excesso de agregação (se falarmos apenas em indústrias com "dois dígitos" de agregação, é possível que tudo seja incluído.
. mais detalhadamente, se classificarmos a tradicional divisão
... bens de consumo durável
... bens de consumo não-durável (consumo corrente)
... bens intermediários
... bens de capital,
praticamente tudo é comércio intra-indústria por contraste. Se pensarmos em vinho tinto marca tal, safra tal, não haverá comércio intra-indústria.
. obviamente isto determina a magnitude do comércio.
. e pode comercializar produtos homogêneos? sim, devido à sazonalidade, ao custo de transporte baixo, ao alto custo da armazenagem (perecibilidade, massa de pão francês na Inglaterra que viaja ainda fermentando no compartimento de carga do navio e é cozido de manhãzinha)
. e isto justifica a teoria de Heckscher-Olin.
. quais os determinantes do comércio intra-indústria?
... diferenciação do produto (design, performance),
... economias de escala (internas e externas): complementaridade industrial, mão-de-obra treinada
... ciclo do produto de Raymond Vernon: o país inventor abre filiais no exterior, mas o produto é imitado e ganha parte de seu mercado doméstico (do inventor),
... o nível de desenvolvimento do país,
... os níveis de renda,
... o tamanho dos mercados,
... a dotação de fatores de produção e
... as barreiras comerciais.
B. MEDIDA DO COMÉRCIO INTRA-INDÚSTRIA
. já acentuei que a agregação ou desagregação dos dados industriais pode fazer um tudo ou nada virar comércio intra-indústria (R), ou negá-lo.
. mas há medidas razoáveis que fazem todo sentido, contornando esta peculiaridade.
. inicia-se definindo comércio total (CT, entendido como fluxo comercial) de um país, X são as exportações de bens e serviços e M são as importações correspondentes. Então
CT = X + M
. e esta grandeza pode ser calculada para a indústria i em um ano específico, levando-nos a escrever:
R =CT - CIT,
onde R é o comércio inter-indústria/s.
O comércio intra-indústria é dado por
CIT = X - M,
ou seja, o saldo comercial de cada mercadoria é exatamente a absorção líquida de um país dos produtos da mesma indústria localizada em outro país.
Combinando e mudando ligeiramente as duas definições anteriormente exibidas,
R = X + M - |X - M|,
onde a expressão |X - M| é o módulo do saldo do balanço de pagamentos em conta corrente.
. inventei três exemplos:
... X maior que M, com X = 20, M = 10, levando a R = 20
... X = M, com X = 20, M = 20, levando a R = 40
... X menor que M, com X = 20, M = 30, levando a 60 = 50 + 10.
. a partir deste ponto, podemos construir o índice de Grubel-Lloyd para a indústria i, IGLi:
IGLi = (Fluxo comercial - Módulo do saldo comercial)/Fluxo comercial
= (Comércio total - Comércio Inter-indústria)/Comércio total.
. este índice assume o valor zero quando não há nenhum comércio intra-indústria, com todo comércio sendo inter-indústria, pois as dotações dos fatores entre as indústrias i dos dois países são diversas,
. passando a exibir o valor 1, quando todo comércio é intra-indústria, sendo a dotação dos fatores dos dois países e indústria i idêntica, por haver economias de escala e diferenciação do produto.
. quando o IGLi é maior que zero, mas menor que a unidade, há algum comércio intra-indústria, com aproveitamento das economias de escala e diferenciação do produto,
. quando o IGLi é menor ou igual a 0,5, predomina o comércio inter-indústria; se há efeitos de escala e diferenciação, estes são compensados pela dotação relativa dos fatores de produção.
. por exemplo, se X = 1.234 e M = 310,
IGLi = ((1.234 + 310) - (1.234 - 310))/(1.234 + 310) = 0,4
[se não me equivoco, pois havia um erro de cálculo horrível na anotação que usei na aula]
Com este IGLi = 0,4 e ainda as exportações têm valor maior que as importação, podemos dizer que o comércio é predominantemente inter-industrial e que a indústria local é mais competitiva do que a do resto do mundo.
. com esse mesmo IGLi de 0,4, mas se as exportações excederem as importações, diríamos que o resto do mundo é que é mais competitivo do que a economia doméstica.
. se IGLi é maior que 0,5 e simultaneamente, há superávit no balanço de transações correntes (X maior que M), predomina o comércio intra-industrial. Isto implica que a indústria do gênero i doméstica tem maior potencial competitivo do que a correspondente indústria do resto do mundo.
. se mantemos o IGLi maior que 0,5, mas agora há déficit no balanço de transações correntes, simetricamente, a indústria local tem menor potencial competitivo do que a do resto do mundo.
. para o total da economia, o índice de Grubel e Lloyd pode ser calculado como uma média aritmética ponderada dos índices das indústrias específicas em evidência. Passando a chamar agora o IGLi de Bi, o Btot é dado por
Btot = S bi * Bi
onde aquele S é a operação soma, normalmente indicada por um sigma, que não sei colocar em HTML...
Então os Bi são ponderados pelo fator bi. Este é a participação do fluxo de comércio do setor i no fluxo de comércio total do país.
. no caso do Brasil de 1990 [velhinho, hein?] foi de 0,59, ao passo que a média apenas entre dois setores específicos (714 e 716 da ISIC) alcançou apenas 0,37.
. para o ano de 1989, apresentei alguns dados do IGLi do Brasil com relação a alguns países:
Alemanha = 0,67
Argentina = 0,83
Chile = 0,88
Estados Unidos = 0,93
Itália = 0,72
México= 0,98
Paraguay = 0,98
Uruguay = 0,71.
. naturalmente no devido tempo foram criadas algumas variantes do IGLi, destacando-se a correção para os desequilíbrios comerciais. Neste caso (dos desequilíbrios comerciais), Aquino propôs outro índice. Seu suporte básico é tomar o valor do desequilíbrio global da balança comercial (ou transações correntes?) e distribuí-lo proporcionalmente entre as indústrias.
C. UM MODELO DE COMÉRCIO INTRA-INDÚSTRIA
, sendo, como anteriormente, R o comércio intra-indústria,
. ND o nível de desenvolvimento,
. DND os diferenciais no nível de desenvolvimento
. TM o tamanho do mercado,
. DTM a diferença entre os tamanhos do mercado
. IE a integração econômica e
. CMT o custo médio do transporte,
então o modelo pode ser expresso como:
R = f(ND, DND, TM, DTM, IE, CMT)
. os resultados esperados são:
ND = nível de desenvolvimento deve variar positivamente com o nível de comércio intra-indústria; me outras palavras, quanto maior a renda de um país, maior a diversificação de seu padrão de demanda (renda per capita elevada correlaciona positivamente)
DND = diferença nos níveis de desenvolvimento, quando países mais ricos tendem a querer consumir produtos mais sofisticados, logo o mais pobre não compra do mais rico, e vice-versa
TM = tamanho dos mercados: quanto maior o mercado, mais economias e de escala e mais diferenciação do produto são exploradas
DTM = a diferenciação do tamanho dos mercados implica que mercados nacionais de mesmo tamanho tendem a gerar o mesmo volume de diferenciação do produto
IE = integração econômica: parceiros comerciais em esquemas de integração econômica, ao reduzirem as barreiras alfandegárias ao comércio, favorecem mais transações
CMT = custo médio de transporte: como o custo é transportar o produto, pouco se sabe sobre ele no país adquirente. Ademais, o custo alto representa uma barreira via custos.
. estimou-se a equação dada pelo modelo que acabei de referir, alcançando os resultados:
R = 45 + 2 ND + 0,02 DND + 0,3 TM - 0,009 DTM + 20 IE - 0,3 CMT,
. usou-se um cross section de 85 setores.
MORAL DA HISTÓRIA
. parece que não haverá problemas em colocar novos produtos.
. o verdadeiro problema reside na democratização das oportunidades de consumo da população. Segue-se que o emprego doméstico é vital.
. E emprego doméstico não requer muita competitividade em serviços non-tradeables., em especial os serviços pessoais.
[Hoje eu vacilaria em dizer isto, pois acho que até cirurgias poderão ser importadas da China, em certo futuro, usando a tecnologia 3D]
DdAB
P.S. Tinha dois lembretes em minha "folha de rosto" das notas da aula:
. há problemas no cálculo dos dois índices
. é preciso pegar outro texto sobre medida!
... ou seja, eu pensava usar essas notas para publicar algo, como fiz ao longo de minha carreira com quase todos os textos didáticos.
A. TEORIA DO COMÉRCIO INTRA-INDÚSTRIA
. a teoria tradicional do comércio internacional tem sua formulação por meio da dupla Hecksher-Olin: o país tem vantagem comparativa na produção do produto que usa intensivamente o fator disponível em abundância.
. país com abundância relativa de trabalho exporta mais produtos intensivos em trabalho e importam bens intensivos em capital dos países com abundância de capital.
. um corolário desta proposição é que países com dotação de fatores assemelhados não terão muito comércio.
. outro corolário é que o comércio entre países de dotações diferentes implicará a equalização dos preços dos fatores.
. mas, a partir dos anos 1960s, começou-se a constatar que havia exceções a esse padrão com a presença de troca de produtos iguais (tipo vinho contra vinho ou algodão contra algodão).
. de fato, observou-se que os Estados Unidos vendiam algodão ao Egito e dele também compravam precisamente algodão, a França e a Inglaterra com lã
. os modelos tradicionais, adotando a moldura da concorrência perfeita, deixaram de investigar as consequências da presença tanto de economias de escala quanto da diferenciação do produto.
. existe diferenciação do produto, pois os consumidores preferem produtos similares, mas não idênticos. Lembrar o famoso artigo de Kelvin Lancaster e a relação próxima entre não mais de quatro produtos substitutos.
. todavia, se os custos em dois países são diferentes, volta a valer a teoria de Heckscer-Olin: só produz o país cujo custo é menor: produzem-se os produtos em que o aproveitamento das economias de escala expandem a competitividade das exportações.
. o diagnóstico do comércio intra-indústria foi feito nos países desenvolvidos, mas também vale para os subdesenvolvidos.
. as primeiras explicações foram:
... diferenciação do produto
... flutuações sazonais (soja em julho e soja em dezembro para abastecer a indústria da prensagem)
. reexportação: Argentina e Cuba com produto americano (automóveis lá naqueles tempos da aula).
. em particular, em termos industriais Linder (1961) disse que só se exporta um produto se houver demanda doméstica, o que difere dos produtos primários: posso não processar urânio, mas exportá-lo.
. as faixas de importação e exportação potenciais de um país é que vão determinar seu comércio: quanto mais os países exibirem estruturas de demanda semelhantes, mais eles trocarão,
. as uniões tarifárias europeias: BENELUX e a subsequente Comunidade Europeia mostraram que a maior parte do comércio foi de vender fora o que já se produzia localmente e comprar dos demais.
. Grubel e Lloyd ampliaram este argumento, mesmo para países sem uniões aduaneiras. E o mesmo fenômeno foi observado entre os então países socialistas.
. Helpman e Krugman (1985) disseram que níveis de renda per capita semelhantes levam à expansão das trocas bilaterais intra-indústria.
. Kelvin Lancaster diz que, com economias de escala em ação, quanto maior o mercado, mais possibilidades de diferenciação.
. mas deve-se ter cuidado para não ser levado a pensar em comércio intra-indústria devido ao excesso de agregação (se falarmos apenas em indústrias com "dois dígitos" de agregação, é possível que tudo seja incluído.
. mais detalhadamente, se classificarmos a tradicional divisão
... bens de consumo durável
... bens de consumo não-durável (consumo corrente)
... bens intermediários
... bens de capital,
praticamente tudo é comércio intra-indústria por contraste. Se pensarmos em vinho tinto marca tal, safra tal, não haverá comércio intra-indústria.
. obviamente isto determina a magnitude do comércio.
. e pode comercializar produtos homogêneos? sim, devido à sazonalidade, ao custo de transporte baixo, ao alto custo da armazenagem (perecibilidade, massa de pão francês na Inglaterra que viaja ainda fermentando no compartimento de carga do navio e é cozido de manhãzinha)
. e isto justifica a teoria de Heckscher-Olin.
. quais os determinantes do comércio intra-indústria?
... diferenciação do produto (design, performance),
... economias de escala (internas e externas): complementaridade industrial, mão-de-obra treinada
... ciclo do produto de Raymond Vernon: o país inventor abre filiais no exterior, mas o produto é imitado e ganha parte de seu mercado doméstico (do inventor),
... o nível de desenvolvimento do país,
... os níveis de renda,
... o tamanho dos mercados,
... a dotação de fatores de produção e
... as barreiras comerciais.
B. MEDIDA DO COMÉRCIO INTRA-INDÚSTRIA
. já acentuei que a agregação ou desagregação dos dados industriais pode fazer um tudo ou nada virar comércio intra-indústria (R), ou negá-lo.
. mas há medidas razoáveis que fazem todo sentido, contornando esta peculiaridade.
. inicia-se definindo comércio total (CT, entendido como fluxo comercial) de um país, X são as exportações de bens e serviços e M são as importações correspondentes. Então
CT = X + M
. e esta grandeza pode ser calculada para a indústria i em um ano específico, levando-nos a escrever:
R =CT - CIT,
onde R é o comércio inter-indústria/s.
O comércio intra-indústria é dado por
CIT = X - M,
ou seja, o saldo comercial de cada mercadoria é exatamente a absorção líquida de um país dos produtos da mesma indústria localizada em outro país.
Combinando e mudando ligeiramente as duas definições anteriormente exibidas,
R = X + M - |X - M|,
onde a expressão |X - M| é o módulo do saldo do balanço de pagamentos em conta corrente.
. inventei três exemplos:
... X maior que M, com X = 20, M = 10, levando a R = 20
... X = M, com X = 20, M = 20, levando a R = 40
... X menor que M, com X = 20, M = 30, levando a 60 = 50 + 10.
. a partir deste ponto, podemos construir o índice de Grubel-Lloyd para a indústria i, IGLi:
IGLi = (Fluxo comercial - Módulo do saldo comercial)/Fluxo comercial
= (Comércio total - Comércio Inter-indústria)/Comércio total.
. este índice assume o valor zero quando não há nenhum comércio intra-indústria, com todo comércio sendo inter-indústria, pois as dotações dos fatores entre as indústrias i dos dois países são diversas,
. passando a exibir o valor 1, quando todo comércio é intra-indústria, sendo a dotação dos fatores dos dois países e indústria i idêntica, por haver economias de escala e diferenciação do produto.
. quando o IGLi é maior que zero, mas menor que a unidade, há algum comércio intra-indústria, com aproveitamento das economias de escala e diferenciação do produto,
. quando o IGLi é menor ou igual a 0,5, predomina o comércio inter-indústria; se há efeitos de escala e diferenciação, estes são compensados pela dotação relativa dos fatores de produção.
. por exemplo, se X = 1.234 e M = 310,
IGLi = ((1.234 + 310) - (1.234 - 310))/(1.234 + 310) = 0,4
[se não me equivoco, pois havia um erro de cálculo horrível na anotação que usei na aula]
Com este IGLi = 0,4 e ainda as exportações têm valor maior que as importação, podemos dizer que o comércio é predominantemente inter-industrial e que a indústria local é mais competitiva do que a do resto do mundo.
. com esse mesmo IGLi de 0,4, mas se as exportações excederem as importações, diríamos que o resto do mundo é que é mais competitivo do que a economia doméstica.
. se IGLi é maior que 0,5 e simultaneamente, há superávit no balanço de transações correntes (X maior que M), predomina o comércio intra-industrial. Isto implica que a indústria do gênero i doméstica tem maior potencial competitivo do que a correspondente indústria do resto do mundo.
. se mantemos o IGLi maior que 0,5, mas agora há déficit no balanço de transações correntes, simetricamente, a indústria local tem menor potencial competitivo do que a do resto do mundo.
. para o total da economia, o índice de Grubel e Lloyd pode ser calculado como uma média aritmética ponderada dos índices das indústrias específicas em evidência. Passando a chamar agora o IGLi de Bi, o Btot é dado por
Btot = S bi * Bi
onde aquele S é a operação soma, normalmente indicada por um sigma, que não sei colocar em HTML...
Então os Bi são ponderados pelo fator bi. Este é a participação do fluxo de comércio do setor i no fluxo de comércio total do país.
. no caso do Brasil de 1990 [velhinho, hein?] foi de 0,59, ao passo que a média apenas entre dois setores específicos (714 e 716 da ISIC) alcançou apenas 0,37.
. para o ano de 1989, apresentei alguns dados do IGLi do Brasil com relação a alguns países:
Alemanha = 0,67
Argentina = 0,83
Chile = 0,88
Estados Unidos = 0,93
Itália = 0,72
México= 0,98
Paraguay = 0,98
Uruguay = 0,71.
. naturalmente no devido tempo foram criadas algumas variantes do IGLi, destacando-se a correção para os desequilíbrios comerciais. Neste caso (dos desequilíbrios comerciais), Aquino propôs outro índice. Seu suporte básico é tomar o valor do desequilíbrio global da balança comercial (ou transações correntes?) e distribuí-lo proporcionalmente entre as indústrias.
C. UM MODELO DE COMÉRCIO INTRA-INDÚSTRIA
, sendo, como anteriormente, R o comércio intra-indústria,
. ND o nível de desenvolvimento,
. DND os diferenciais no nível de desenvolvimento
. TM o tamanho do mercado,
. DTM a diferença entre os tamanhos do mercado
. IE a integração econômica e
. CMT o custo médio do transporte,
então o modelo pode ser expresso como:
R = f(ND, DND, TM, DTM, IE, CMT)
. os resultados esperados são:
ND = nível de desenvolvimento deve variar positivamente com o nível de comércio intra-indústria; me outras palavras, quanto maior a renda de um país, maior a diversificação de seu padrão de demanda (renda per capita elevada correlaciona positivamente)
DND = diferença nos níveis de desenvolvimento, quando países mais ricos tendem a querer consumir produtos mais sofisticados, logo o mais pobre não compra do mais rico, e vice-versa
TM = tamanho dos mercados: quanto maior o mercado, mais economias e de escala e mais diferenciação do produto são exploradas
DTM = a diferenciação do tamanho dos mercados implica que mercados nacionais de mesmo tamanho tendem a gerar o mesmo volume de diferenciação do produto
IE = integração econômica: parceiros comerciais em esquemas de integração econômica, ao reduzirem as barreiras alfandegárias ao comércio, favorecem mais transações
CMT = custo médio de transporte: como o custo é transportar o produto, pouco se sabe sobre ele no país adquirente. Ademais, o custo alto representa uma barreira via custos.
. estimou-se a equação dada pelo modelo que acabei de referir, alcançando os resultados:
R = 45 + 2 ND + 0,02 DND + 0,3 TM - 0,009 DTM + 20 IE - 0,3 CMT,
. usou-se um cross section de 85 setores.
MORAL DA HISTÓRIA
. parece que não haverá problemas em colocar novos produtos.
. o verdadeiro problema reside na democratização das oportunidades de consumo da população. Segue-se que o emprego doméstico é vital.
. E emprego doméstico não requer muita competitividade em serviços non-tradeables., em especial os serviços pessoais.
[Hoje eu vacilaria em dizer isto, pois acho que até cirurgias poderão ser importadas da China, em certo futuro, usando a tecnologia 3D]
DdAB
P.S. Tinha dois lembretes em minha "folha de rosto" das notas da aula:
. há problemas no cálculo dos dois índices
. é preciso pegar outro texto sobre medida!
... ou seja, eu pensava usar essas notas para publicar algo, como fiz ao longo de minha carreira com quase todos os textos didáticos.
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Economia Política
02 fevereiro, 2019
Freud e o "Moisés" de Michelangelo
Querido diário:
Sabe-se que hoje é feriado em Porto Alegre. Um feriado a todos afeta, os que trabalham, os que estudam e os chamados nem-nem, meu caso. Nos dias feriados, a gente faz coisas que não conseguiu fazer em condições normais de temperatura e pressão por falta de tempo, variável alheia a essa sigla CNTP.
Pois então. Dias atrás, falei a uma pessoa muito querida que se encontra em Roma, Italia, que está fazendo périplos sobre os tesouros históricos da cidade, que -estivesse eu lá- iria visitar a Igreja Santa Maria dei Fiori ou Santa Maria Maggiore, ou outra santa Maria. Nela, segundo a memória registrava, encontra-se o "Moisés", esculpido por Michelangelo em priscas eras. As informações que me chegam aos olhos neste momento dizem-me que a obra encontra-se mesmo na Igreja de San Pietro in Vincoli.
Em outras eras, li uma biografia de Freud, momento em que penso ter aprendido que esse "Moisés" mostra, pela posição de seus polegares, que conteve a ira que o acometia ao retornar da montanha em que recebeu as tábuas da lei e ver sua macacada adorando um bezerro de ouro.Mas agora notei, como segue, que Freud himself fala em outra igreja.
Pois segue-se então. Procurei no Google precisamente a expressão que deu título a esta postagem. Na verdade, procurei há alguns dias e nem lembro se achei mais coisas. Mas o que fiz foi gravar um PDF de autoria do próprio Sigmund Freud, talvez do tempo em que escrevia em português, o que teria desencadeado a primeira guerra mundial, ou seja, citada no PDF é 1914.
E fiquei tão feliz com o que li, não tanto por ter mostrado que a memória que retive daquelas leituras do livro resumido da biografia de Freud escrito por Ernest Jones estava errada, mas pela erudição do -caiamos na real- tradutor do alemão original austríaco de Freud e o português brasileiro que hoje lemos.
Então, e apenas então, decidi fazer esta postagem, usando para ilustrá-la uma imagem do próprio "Moisés", propagandeando o artigo de Freud, um exemplo maravilhoso de erudição e cultura. Ele fala em um velho conhecido meu, o dr. Morelli, que conheci ao ler um artigo de Carlo Ginzburg (possivelmente disponível em português) intitulado "Morelli, Freud e Sherlock Holmes". Ginzburg ilustra o que chama de "método conjetural" e associando-o com a semiótica médica e a comunalidade da condição de esculápios retidas pelos três nomes que dão título ao artigo!
Meu PDF de Freud veio deste link aqui. Só podia ser correlato à USP. Boa leitura!, bom domingo!
DdAB
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