Querido diário:
Todos conhecem o que chamo de primeiro teorema do PIB, não é mesmo? De acordo com ele, o PIB representa 100% do PIB. Um corolário é que, se o governo arrecadar mais impostos para fazer frente aos gastos de previdência, o PIB prosseguirá tendo precisamente o mesmo valor, havendo a transferência dos pagadores de impostos aos recebedores das aposentadorias e pensões.
Pois veio-me lá do Facebook de Fernando Lara o artigo de Carlos Bastos que reproduzo como anexo, mais para eu mesmo poder voltar a ele, artigo de Bastos, infinitas vezes do que para eu vangloriar-me da descoberta desse potente teorema.
Esta postagem estava com os rascunhos perdidos, pois o mural de Fernando foi visitado há bons tempos. Em compensação, ontem, Flávio Comim entrou no mesmo assunto. Fiz um comentário apoiando suas preocupações, mas com um conteúdo independente, de certo modo. Entao escrevi o que segue. Embora não estude os meandros do assunto, fala-se tanto nessa reforma que não consegui evitar pensar algumas diretrizes que certamente o governo deixou de lado. Primeiro: parece que qualquer sistema de aposentadoria decente não pode pagar mais ao aposentado do que ao trabalhador ativo. É que no Brasil o "salário mínimo" é tão escandalosamente baixo que falar nisto soa até estranho. Nos países decentes, não haveria qualquer sobressalto com essa iniciativa. Segundo: esses "salários" estrondosamente altos devem ser rebaixados, claro, mas claro que estou falando de um país decente. No Brasil, não acho haver a menor chance de que isto venha a ocorrer a curto prazo. Aliás, fala-se em "direito adquirido" a uma pensão de R$ 100 mil (no tempo do governo Sarney, ouvi na TV Bresser-Perreira dizer que "privilégio não é direito adquirido". Mas, se fosse, uma legislação decente do imposto de renda resolveria a questão. Terceiro: no mundo que esperamos ver no futuro, haverá cada vez mais PIB e cada vez menos emprego. Ou seja, os empregos precisam ser racionados: jornadas de trabalho menores, mais repouso remunerado semanal, férias mais alongadas, entrada tardia no mercado de trabalho e saída precoce. Ok, ok, tudo bem ao contrário do que os rapazes encarregados há 20 anos de propor uma reforma foram incapazes de intuir. Flávio respondeu: Verdade, nada disso está sendo discutido, principalmente esse terceiro ponto! E eu selecionei a imagem daqui.
DdAB
ANEXO:
A
questão da previdência pública e a natureza do sistema de
repartição
Carlos
Pinkusfeld Bastos
Uma vez compreendido
que a previdência é um sistema de contribuição e transferência
em dado período de tempo, e não um sistema de seguro intertemporal,
revelam-se a possível natureza redistributiva que envolve seu debate
e os ataques que sofre por setores da sociedade.
A questão da
previdência entrou definitivamente no centro do debate político e
econômico como um elemento importante da agenda de reformas
conservadoras. Tal discussão oscila entre debates contábeis,
ideológicos e até demográficos. Sem diminuir a importância de
tais questões, é curioso notar que, ao se tratar de um tema
eminentemente econômico, o que menos se observa é, exatamente, o
aprofundamento do debate, e confronto de ideias, segundo abordagens
teóricas distintas.
Entretanto, um ponto
inicial, e possivelmente o mais fundamental, aquele que uma vez
compreendido elimina boa parte dos mal-entendidos, é explicar o que
é um sistema de previdência público de repartição[1].
Tal sistema é um
programa de tributação e transferência, ou seja, são cobrados
impostos e contribuições de um subconjunto da sociedade e tais
valores são transferidos para outro subconjunto, composto por
aposentados e pensionistas. A forma como o Estado arrecada as
receitas que serão transferidas para pensionistas e aposentados
depende de uma economia política específica do arranjo de
contribuições previdenciárias: as receitas da previdência podem
advir de diferentes formas de impostos dependendo de uma decisão da
sociedade pactuada através de seus corpos de deliberação e decisão
política.
Tais contribuições
podem incidir, majoritariamente, sobre lucros, por exemplo (e não
sobre rendimentos de trabalhadores ativos), ou sobre o consumo
através de impostos indiretos (que são pagos indistintamente por
ativos e inativos). Entretanto, pode-se dizer que, usualmente, mas
não exclusivamente, as receitas do sistema são obtidas por
contribuições feitas por trabalhadores ativos, sendo esta forma de
contribuição em boa medida relacionada à própria formação
histórica dos sistemas de previdência pública, como se discutirá
mais à frente.
Um primeiro ponto
importante a se observar é que se, por um lado, as contribuições
para a previdência podem elevar a carga tributária, as suas
“despesas”, ou pagamentos, retornam à sociedade em quase sua
totalidade. Como o próprio nome deixa claro, as transferências da
previdência apenas realocam renda dentro da sociedade e seu impacto
líquido sobre o conjunto desta é praticamente zero, sendo a
diferença composta pelos reduzidos gastos operacionais do sistema de
previdência.
Assim, em princípio,
a carga tributária requerida para o pagamento de benefícios da
previdência não é uma subtração de renda da “sociedade” como
um todo, e sim sobre um grupo da sociedade e redistribuído a outro.
Esse tipo de sistema
previdenciário pode ensejar arranjos de tributação e
transferências que estimulem o nível de atividade econômica. Numa
abordagem da demanda efetiva (ou Keynesiana/kaleckiana), o produto e
emprego dependem da demanda efetiva, ou seja, do resultado dos gastos
(e tributação) do governo, setor privado e setor externo, sem que
haja nenhuma tendência natural ao pleno emprego dos fatores de
produção. Neste caso, há distintas formas de impacto de um
determinado desenho de sistema tributário sobre o produto. Quando
ocorre a cobrança de impostos sobre indivíduos de maior propensão
a poupar e as transferências são feitas para aqueles com maior
propensão a gastar o sistema tributário tem características
expansionistas. Arranjos de previdência assim organizados, mais
generosos e distributivistas, teriam um impacto positivo sobre o
nível de renda!
Como dito
anteriormente, tais conclusões só se tornam claras à medida que a
verdadeira natureza de um sistema público de contribuição é
explicitada, afastando-se do debate comparações ou “metáforas”
indevidas que remetem a sistemas de seguro individual; sistemas nos
quais os indivíduos acumulariam riqueza em seu período ativo para
gastá-los no período de inatividade.
De acordo com tal
“metáfora” os esquemas de repartição, e especificamente os
pagamentos dos ativos à previdência, emulariam as decisões de
poupança relacionadas ao ciclo da vida. A contrapartida contábil
desta inadequada “metáfora” do seguro seria a acumulação de
“passivos” por parte do responsável pelos pagamentos
previdenciários, o Estado.
Tal incompreensão
da verdadeira natureza do sistema previdenciário não é nova; é
tão antiga quanto a própria origem do sistema. Bismarck, o pioneiro
na implementação da previdência na Alemanha, refutava a ideia de
vinculá-la a um seguro pessoal, negando, assim, a própria razão de
ser: a caracterização do Estado como benevolente, que cuida do
bem-estar dos seus cidadãos.
Outro marco na
implantação de esquemas de previdência, o Beveridge Report[2],
reconhecia que um sistema público se baseava na capacidade do Estado
de tributar para prover recursos aos pensionistas e aposentados, e
que tal esquema não tinha nenhuma relação com a ideia de
acumulação pessoal de ativos, que caracteriza um seguro.
Entretanto, a utilização de uma “ficção de seguro”, ou seja,
a cobrança de contribuição individual que estaria relacionada aos
pagamentos futuros de aposentadorias seria uma ferramenta
politicamente útil para conscientizar os trabalhadores acerca dos
custos do sistema.
O próprio
economista John Maynard Keynes reconhecia que a forma “ficcional”
como se apresentava um sistema de contribuições pessoais
relacionado a pensões futuras, era, simplesmente, uma característica
de natureza política que tinha o objetivo de lembrar aos
trabalhadores que benefícios só seriam legítimos se tivessem como
contrapartida uma contribuição prévia.
Essa ficção
alcançou seu status teórico mais sofisticado na reflexão do
economista Paul Samuelson que desenvolveu um modelo no qual
contribuição e benefício se relacionam por uma “taxa de retorno”
(que chamou de juros biológicos) igual ao crescimento dos salários.
A tentativa de
apresentar uma formalização de um sistema de transferências
públicos através de uma “ficção do seguro” foi veementemente
contestada tanto por economistas simpáticos a tal esquema, como Abba
Lerner, quanto por críticos, como Milton Friedman. Ambos se opunham
à tentativa de representar de forma equívoca um sistema público de
tributação e transferência com o objetivo de transformá-lo
politicamente mais “aceitável”.
Uma vez entendida a
verdadeira natureza do sistema torna-se mais fácil entender o debate
que cerca a questão do pagamento de pensões no futuro.
Não há
discordância que quanto maior for o produto per capita no futuro
maior será o produto a ser repartido. Repartição esta que é
feita, entre indivíduos ativos e inativos, no sistema público
usual, segundo algum critério de natureza sociopolítica. Segundo a
abordagem da demanda efetiva, como não existe uma tendência da
economia de chegar ao pleno emprego, políticas de estímulo à
demanda efetiva fazem com que aumente a renda e o consumo agregado
escapando-se de um trade off que poderia ocorrer caso se registrasse
um maior grau de dependência (ou a relação) entre trabalhadores
inativos por ativos. Assim, no agregado pode-se aumentar o consumo
mantendo-se os benefícios aos trabalhadores inativos com políticas
de estímulo à renda e ao emprego.
Logo, o debate de
previdência não independe das formas distintas de abordagens
teóricas adotadas para a compreensão do funcionamento de uma
economia capitalista e não é, simplesmente, a consequência
inelutável de cálculos demográficos. Estes fornecem as
características populacionais futuras que influenciarão a
capacidade laborativa da população, mas a produção a ser
repartida por tal população depende de como se interpreta o
processo de determinação do produto e da acumulação de capital.
Uma vez compreendida
que a previdência é um sistema de contribuição e transferência
em um dado período de tempo, e não um sistema de seguro
intertemporal, revela-se a possível natureza redistributiva que
envolve o seu debate, e os ataques que sofre por certos setores da
sociedade. Por exemplo, uma elevação dos salários recebidos ao
longo da vida de um trabalhador, em consequência da existência de
um sistema de previdência de repartição, financiado em alguma
medida pela taxação de lucros, pode causar uma redistribuição
entre lucros e salários em favor do último, caracterizando uma
situação redistributiva a favor dos trabalhadores.
Vale lembrar,
também, que mudanças demográficas não operam apenas na elevação
de gastos. À medida que a população envelhece, uma série de
gastos relacionados à infância e outros serviços como, por
exemplo, segurança, se reduz. Há que se considerar ambos os efeitos
e não apenas aqueles que representam aumento de gastos e
transferências[3].
Certamente, seria
contraditório com a abordagem da demanda efetiva defender que uma
redução do gasto não teria um efeito contracionista sobre o
produto. Apenas queremos ressaltar que os fatores demográficos
colocam aos gestores de política econômica opções de alocação
de recursos que devem ser levadas em conta na consecução do
objetivo de maximização do bem-estar da sociedade, no qual se
inclui a manutenção do alto emprego.
A discussão
importante a ser feita diz respeito a escolhas da sociedade sobre a
trajetória do desenvolvimento econômico e divisão do produto
social. Se, por um lado, a metáfora do seguro foi imposta por
formuladores de sistemas públicos de previdência como uma forma de
mascarar sua verdadeira natureza redistributiva, por outro é forçoso
reconhecer que os trabalhadores aderiram a esta metáfora com a
expectativa de que uma ideia de contribuição presente para futuro
recebimento de renda fosse tornar mais rígido o pacto político de
manutenção do benefício previdenciário.
As propostas de
reformas correntes, não apenas no Brasil como em outras partes do
mundo, revelam que a estratégia dos trabalhadores se mostrou
equivocada. Uma vez aceita a verdadeira natureza previdenciária de
cobrança, contemporânea, de imposto, e transferência via pagamento
de benefício, a ideia de uma “quebra da previdência” perde seu
sentido lógico. Afinal, isso só seria possível caso houvesse uma
acumulação de ativos que deveria fazer frente a compromissos fixos
de remuneração futura e uma incompatibilidade atuarial entre tais
ativos e compromissos explicitaria tal “quebra”.
Num sistema de
tributação e transferência não só a ideia é fora de propósito
como também esforços intertemporais de “consertar” uma crise
que não pode existir em um esquema contemporâneo são também um
contrassenso. É claro que medidas como, por exemplo, a isenção
tributária sobre as contribuições de patrões, pode causar um
desequilíbrio entre receitas e despesas, mas sua “solução”
deve ser um item do conjunto da política fiscal de um dado período,
que se constitui de decisões de gasto, tributação e análise dos
impactos macroeconômicos de tais decisões.
Como defendido neste
artigo, a preocupação do gestor de política econômica deve ser
com a manutenção de um nível de demanda efetiva compatível com um
baixo desemprego, elevada ocupação da capacidade produtiva e,
indiretamente, acumulação de capital com impacto sobre a elevação
da renda per capita no futuro. Cortes de gasto presentes vão na
contramão de tal lógica.
Como diz o dito
popular no idioma inglês: “If it ain´t broken don´t fix it”,
ou “se não está quebrado não conserte”. Neste caso, não
apenas a ideia de uma quebra do sistema é equivocada como a sua
suposta correção da forma como está sendo proposta traria efeitos
distributivos regressivos, socialmente prejudiciais aos trabalhadores
e indiretamente nefastos à acumulação de capital no longo prazo. A
suposta solução seria um enorme problema.
Notas:
[1] A discussão que
se segue baseia-se no capítulo 1 do livro de autoria de Sergio
Cesaratto “Pension Reform and Economic Theory”. Uma referência
importante para explicitar as diferenças teóricas por trás do
debate é o artigo do economista Massimo Pivetti “The ‘Principle
of Scarcity’, Pension
Policy and Growth”
publicado no Review of Political Economy, Volume 18, Número 3, de
Julho de 2006.
[2] Um documento
preparado em 1942 pelo economista William Beveridge e que estabeleceu
os fundamentos do sistema de bem estar social na Inglaterra do pós
guerra.
[3] Um exemplo de
exercício nesta direção é feito no Working Paper do FMI de 2005
“Aging: Some Pleasant Fiscal Arithmetic” de autoria de David
Hauner.
Aqui acaba o artigo.
DdAB
Aqui acaba o artigo.
DdAB
P.S. Carlos Pinkusfeld Bastos é economista, professor e pesquisador do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ). Publicado aqui em 22/12/2016.
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