22 julho, 2015

Morno Marxismo: isto é comigo?


Querido diário:

A Carta Capital datada de hoje circula aos sábados (talvez até na sexta-feira em Sampa), mas -movido pelo ódio da incompetência na entrega porto-alegrense que às vezes pertence ao conjunto vazio- dei-lhe o epíteto de Capital dos Carta. Pudera, dada a presença de representantes da família Carta nas matérias, é mesmo um bom capital. Pois bem. Na página 51, há um interessante artigo de Antonio Delfim Netto, intitulado "Vitória de Pirro", falando de obviedades sobre as consequências do arrocho imposto à Grécia pelas autoridades monetárias europeias.

Ele -artigo e autor- tem (deveria ter dito 'eles têm'?) duas tiradas interessantes (espero que meus cortes não mude o sentido, como pareço já ter feito com outra crônica delfiniana):

.a. "Tsipras" [foi ... ] "buscar Yanis Varoufakis, um acadêmico que conhece a economia do mainstream, admira Keynes, tem um evidente viés marxista e é especialista em teoria dos jogos."

.b. "Nomeou para substituí-lo outro acadêmico, Euclid Tsakolotos, também conhecedor do mainstream e com um elegante tempero do morno marxismo da Universidade de Oxford."

Premièrement. Será que eu também tenho aquele charme e dotes motociclísticos de Varoufakis? E será que eu tenho esse mesmíssimo tempero da esquerda oxfordiana?

Como sabemos, há alguns anos, adquiri o livro de teoria dos jogos de Hargreaves-Heap e Varoufakis, que passei carinhosamente a chamar, entre os alunos de então, de H&V:

HARGREAVES-HEAP & VAROUFAKIS, Yanis (1995) Game theory; a critical introduction. Nova York: Routledge.

E sei que ele escreveu ou atualizou esta obra, mas ainda não a li.

Deuxièmement. E, como sabemos, o finado Andrew Glyn, reader da Oxford University, foi o orientador de meu doutorado. E, a certa altura de conversas informais, disse-me ter deslocado sua posição política do trotskismo para a social-democracia. E atribuía a ela a influência de seu grande amigo Bob Rowthorn, professor de Cambridge-UK. Creio que o suave tempero marxista pode ser identificado por uma palavra, que talvez seja o melhor resumo do legado de Glyn: igualitarismo. Ele não era lido em teoria dos jogos, mas certamente era keynesiano (ou, como dizem os heterodoxos, até mais kaleckiano do que keynesiano).

E eu? Tomemos o Varoufakis como tese e o Andrew como antítese. É dialética? É dialética marxista? É meu amado Carlos Roberto Cirne-Lima? Haverá síntese? Sou de esquerda, sou da esquerda esclarecida, sou igualitarista. Sou keynesiano (quase nada calequiano, por falta de leitura, por falta de comentadores de qualidade). Tento dizer que conheço em alguma profundidade tanto o mainstream quanto o canal heterodoxo. E agora sou muito mais refinado que nos tempos em que ministrei Introdução à Economia a Flávio Comim , que disse (aqui) que eu lhe ensinei

.a. mais-valia e

.b. marginal,

o que me encheu de orgulho e sensação de dever cumprido. E que era o 'marginal'? Basicamente aquelas relações tiradas da curva de demanda linear entre ela (isto é, a receita média), a receita total e a receita marginal. Pouco ou nada havia sobre custos (exceto a diferença entre custo social e custo privado), mas tinha uma curvinha de oferta positivamente inclinada e  inventei100 problemas sobre a teoria elementar do preço (baseados em Achyles Barcelos da Costa e na dupla Levenson&Solon). E que era o 'mais-valia'? Era basicamente o livrinho de Ernest Mandel que respondia pelo título de "Iniciação à Teoria Econômica Marxista" (veja se pode baixar clicando aqui).

Mas havia dois bons artigos moldando minha permanente preocupação em criar bases sólidas para a neo-heterodoxia (a propósito, o prof. João Rogério Sanson classifica-me como um neo-clássico de esquerda, o que me levou a este auto-epíteto/auto-elogio de neo-heterodoxo).

O primeiro artigo é de Oskar Lange:

LANGE, Oskar (1972) A economia marxista e a moderna teoria econômica. In: HOROWITZ, David (Org.). A economia moderna e o marxismo. Rio de Janeiro: Zahar, p.66-83. Reproduzido da Review of Economic Studies, junho de 1935. [Digo eu: este é uma dos mais extraordinários e visionários materiais (artigos e livros) que já li.]
E o segundo é:

WORLAND, Stephen T. (1972) Radical Political Economics as a Scientific Revolution. Southern Economic Journal, v.39 n.2 oct/1972.

Ambos os artigos deixaram claro para mim, de longa data, que não há uma mas, pelo menos, duas ciências econômicas, dois paradigmas, no dizer de Thomas Kuhn e sua aplicação mais direta à ciência econômica.

E que dizer do artigo de James Clifton sobre as transformações do capitalismo e a diversificação da empresa industrial, que se transformou em banco. Isto fez o capitalismo mais concorrencial e não "monopolista", pois o dinheiro é que tem a grande fluidez. E por isto é que, a partir da resposta que dei ao comentário de Ronald Hillbrecht na postagem de ontem, sempre que falar em valor adicionado, passarei referi-lo como M*V, pois a equação quantitativa da moeda garante que isto é igual a P*Q. Então M*V fica mais harmonizado com as economias monetárias com bancos centrais e empresas diversificadas.

DdAB
P.S. Esta postagem começou com minha intenção de dar apenas os dois marcadores Besteirol e Economia Política, principalmente o primeiro. Depois acrescentei o Vida_Pessoal e vi que a parte Economia Política ficou realmente importante. Só faltou dizer que um de meus economistas prediletos (ver postagem a respeito do tema aqui, e já vou para lá imediatamente acrescentar os nomes destes dois) é John Hicks e outro é James Meade, para ficar na turma da Ilha Velha. Hicks, a propósito, foi professor de Oxford, mas nada de cândido marxismo. Também estava em Oxford durante meus anos no paraíso o prof. David Harvey, hoje com enorme notoriedade na esquerda brasileira. Diferentemente de Glyn, Harvey considera não haver saída para a humanidade, em virtude de ter suas bases econômicas assentadas sobre o modo de produção capitalista. Claro que isto é uma antítese da social-democracia.

E a imagem é da city of dreaming spires é daqui. E meu St. Peter's College está aqui:


E devia estar um frio dos diabos por aquelas cercanias.

P. S.S. Vi que há um comentário de "Flávio" na postagem sobre o artigo do Ronald daqui. Será o Comim de que falei anteriormente?

P.S.S.S. às 13h00 de 5/out/2019, editei a referência ao artigo de Oskar Lange lá no livro de David Horowitz.

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