Querido diário:
A ingratidão é brabo, como diria um gaúcho, talvez falando em/de mim. Alguém, que não lembro mais who, indicou-me o livro
JAPPE, Anselm (2011)
As aventuras da mercadoria; para uma nova crítica do valor. Lisboa: Antígona. Tradução de José Miranda Justo.
Livro caro, importado, o que não me dei conta até bater na palavra "fato", terno, fatiota. Pensei: estes tradutores brasileiros estão pegando o livro do alemão ditado nessa língua, mexendo um pouco na tradução francesa e metendo o mal-entendido. Meu leitor diuturno sabe que não tenho em alta conta o trabalhador brasileiro em geral, especialmente julgando-o pelo diferencial entre sua produtividade e aquela do trabalhador belga, sueco, e por aí vai.
Bem. Pensei: vou decorar a primeira sentença, pois é isto que me dá fama no que diz respeito a "Ulysses", de James Joyce, e "Das Kapital", de Karl Marx. Então lá vai:
A riqueza das sociedades humanas em que rege o modo de produção capitalista...
Não, não, não, isto é "O Capital". Ok, vejamos:
Sobranceiro, o fornido Buck Mulligan dirigiu-se ao alto da escada...
Epa, epa, agora vem-me à memória o próprio "Ulysses". O primeiro evoca-me pela tradução de Reginaldo Sant'Ana e o segundo por Antonio Houaiss. Então, vamos ao Jappe:
Há alguns anos muita gente estava disposta a acreditar no 'fim da história' e na vitória definitiva da economia de mercado e da democracia liberal.
De acordo com meu domínio da língua portuguesa, não tenho maiores encrencas com a frase até aquela "vitória definitiva da economia de mercado." E nem falarei mais nada além disto na postagem de hoje.
Claro que tem gente que acredita em tudo e outras que negam tudo, não acreditam em nada, outros que roubam, os que matam, os que trabalham feito máquinas, e tudo o que de mais podemos evocar destes primeiros dez ou 12 mil anos de história humana. Por não ter sido testemunha ocular, não sei se é mesmo verdade que o mercado surgiu mais ou menos ao tempo de Aristóteles (e parece que li isto em Stephen Hymer, ou Karl Polanyi ou ambos). Então deixemos claro: mercado é uma instituição que envolve outras tantas instituições, a maior delas dizendo respeito ao sistema de preços, a criação de incentivos à produção e, naturalmente, o dinheiro.
Obviamente, não podemos pensar que o dinheiro surgiu antes da mercadoria simples. Aliás, a mercadoria simples nunca existiu, uma vez que -derivando-se da troca- ou surgiram duas ou não houve troca. Ou seja, a primeira troca já foi testemunha do primeiro modelo de equilíbrio geral da história da moderna calibração (Hehehe, claro que não estávamos falando de "modelos", mas de mundo mundano).
Lá pela página 3 ou 4 do texto de Anselm Jappe, senti falta da
boutade -se é que é isto- de Marx dizendo que "no capitalismo tudo vira mercadoria, inclusive a honra". Então, se é que o velhinho tinha razão, não nos devemos surpreender se os políticos brasileiros venderam suas honras por dinheiro contado. E claro que antes do capitalismo, se é que houve isto, a mercadoria virara dinheiro, na idade média gerara o crédito e nos tempos modernos gerara o Banco Central.
Lá naquele negócio de Oskar Lange e Frederick Taylor de 1936, se é que eu já tinha nascido, o que duvido, tornou-se claro que a teoria garantia que se poderia articular um sistema de alocação de recursos despido de um sistema de preços. Fora o lado prático que, na União Soviética, já se via em ação o planejamento central para uma boa parte dos recursos, sobrando uma fração cada vez menos importantes deles para a alocação no mercado.
Um dia há vários anos, dei-me conta de que fazer um sistema econômico por decreto tem o mesmo tipo de erro antipático daqueles que fizeram línguas artificiais, como bem lembro do esperanto. [Não li isto agora, mas se quiseres saber mais sobre esta encrenca, clica
aqui]. Desde então comecei a ver com mais simpatia aquela frase de meu amigo Gerônimo Machado que reproduzo aqui com frequência de fã: não queremos socialismo, mas reformas democráticas que conduzam a ele.
E também aprendi nos cursos de organização industrial a que assisti e nos muitos mais que ministrei aquela encrenca toda do mercado real ser incapaz de prover simultaneamente eficiência alocativa, distributiva e produtiva, exceto nos casos ausentes do mundo real de concorrência pura e contestabilidade perfeita. Ou seja, nunca haverá numa economia de mercado eficiência nesses três sentidos (respectivamente, preço igual ao custo marginal, preço igual ao custo médio e custo médio mínimo). E por isto passei a pensar que o lucro extraordinário é uma distorção desejável do sistema e que o segredo da sociedade igualitária será organizar como dele dispor. Por exemplo, 100% para o patrão, 100% para o governo, 100% para os trabalhadores, 100% para os indivíduos santificados (ver
aqui, para exemplo de um deles), ou combinações destas possibilidades e infinitas outras.
Mas, nos dias que correm, nas décadas que nos esperam, talvez séculos, não há melhor solução para o problema da produção (especialmente incentivos) do que a economia de mercado. Ou melhor, a economia capitalista. Fora que já dei minha piadinha a respeito: o capitalismo acabou há mais de 15 dias... Seja como for, comecemos pelo sistema solar. Será que este negócio de "vitória definitiva" lá da frase de Jappe e do título de minha postagem resistirá ao colapso do Sol? À decadência dos prótons (que devem levar mais tempo do que o estimado para o gran finale do universo? Ou mesmo a uma contração demográfica que penso deverá ocorrer no Terceiro Planeta de Sol durante o século XXII?
Claro que o capitalismo é um sistema econômico datado. O que não podemos garantir tão serelepemente é que o sistema de mercado, as economias monetárias, não durarão tanto quanto ou mais que as primeiras evasões populares do planeta e da expansão do Sol em sua busca de condição de anã branca?
O que me parece óbvio é que o capitalismo hoje é muito mais concorrencial do que há 50 anos, tanto geograficamente quanto qualitativamente, ou seja, a financeirização das transações, a transformação das empresas "industriais" em empresas financeiras, ou -por outra maneira de expressar- a expansão dos bancos nos últimos 200 anos foi muito mais vigorosa do que da empresa industrial/comercial/etc.
Em outros termos, não houve nem haverá vitória definitiva das economias de mercado, a barbárie pode avançar muito mais do que já o fez e tudo pode acabar, com leis de movimento do capital, aquelas coisas de que presumo serão tratadas por Jappe daqui a algumas poucas páginas. Nem o Sol é eterno, que dizer um sisteminha econômico evoluído nos cérebros da macacada humana?
Minha fé nas virtudes estáticas e dinâmicas de uma sociedade igualitária é que apenas com ela é que haverá vagas para todos nas naves que resgatarão a turma quando a terra for tragada pelas labaredas da anã vermelha!
DdAB
P.S.: eu poderia colocar como marcador desta postagem também "Escritos", mas quero deixar claro que tudo o que falei aqui, inclusive as acusações e piadinhas, é mesmo economia política!
P.S.S. e a imagem é da bandeira do movimento esperantista (do qual -
hélas- já fui simpatizante e até praticante... Agora, no futuro, não poderemos ter para o governo mundial nem bandeira vermelha, nem bandeira verde.