Querido diário:
Ulysses, de James Joyce, é o mais afamado livro do século XX, segundo centenas de comentadores e mesmo do público em geral. Dizem alguns comentadores que, no Ulysses, encontramos um verdadeiro painel estilístico, cada capítulo sendo conduzido de uma forma diferente das demais. Lembro, para ilustrar, o capítulo das perguntas e respostas, o capítulo em forma de teatro e o capítulo cheio de citações. Mas Joyce não foi o único, nem mesmo o primeiro, a usar a técnica do mosaico estilístico. Digamos que estamos lendo a página 46 do livro de David Harvey intitulado
Para entender O capital; Livro I. São Paulo: BoiTempo, 2013.
David Harvey está falando naquilo que, em minha opinião, é a parte mais importante dos três volumes do Capital, a seção 4 do capítulo 1. Claro que Marx escreveu o resto, pois eu mesmo, se não tivesse lido tudo e voltado inúmeras vezes, não entenderia assim. Nesta seção, fala-se do fetichismo da mercadoria: pensamos estar trocando uma camisa por três potinhos de açúcar, quando o que trocamos mesmo é nossas horas de trabalho por horas de trabalho de outrem*.
E o que lemos?
Esse item é escrito num estilo completamente diferente, quase literário - evocativo e metafórico, imaginativo, lúdico e emotivo, cheio de alusões e referências a máximas, mistérios e necromancias. Ele contrasta com o sóbrio estilo explanativo do item anterior. Isso é característico da tática empregada por Marx ao longo de O Capital; ele alterna os estilos de acordo com o assunto abordado. Neste caso, a alternância pode criar confusão quanto à relevância do conceito de fetichismo no conjunto da argumentação de Marx (uma confusão agravada pelo fato de que esse item foi transferido de um apêndice da primeira edição para a posição atual - assim como o item 3 - somente na segunda e definitiva edição d'O Capital.
[...]
Meu leitor então entenderá que:
.a. sou especialista não apenas na primeira sentença de Ulysses, de James Joyce,
.b. estou ficando um verdadeiro especialista nos trabalhos dos comentadores e já avancei tanto, que até começo a ver interpretações do Ulysses onde há comentadores de trabalhos de terceiros, como no caso, Harvey e Marx.
Também devemos lembrar que me declaro especialista na primeira sentença do Capital de Marx, algo como "A riqueza das sociedades humanas em que rege o modo de produção capitalista é caracterizada por uma imensa acumulação de mercadorias." E, se é para citar de memória, ocorre-me uma versão aziaga da tradução de Antonio Houaiss: "Sobranceiro, fornido, Buck Mulligan debruçou-se no alto da escada, portando na mão um potinho com espuma de barbear onde jaziam um espelho e uma navalha entrecruzados." Não era bem assim, né?
DdAB
A imagem veio daqui, um site realmente esplendoroso, com uma postagem de primeira qualidade.
*Nota: isto ocorre na sociedade em que não existem transações interinstitucionais, contrariamente ao caso geral que vemos nas matrizes de contabilidade social planetárias.
P.S. Ainda que um tanto redundante, aquele negócio de navalha cruzando espelhos deveria ser acolhido como "... uma navalha jazia deitada sobre um espelho."
*Nota: isto ocorre na sociedade em que não existem transações interinstitucionais, contrariamente ao caso geral que vemos nas matrizes de contabilidade social planetárias.
P.S. Ainda que um tanto redundante, aquele negócio de navalha cruzando espelhos deveria ser acolhido como "... uma navalha jazia deitada sobre um espelho."
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