19 março, 2022

Ulysses: novidades interpretativas


O subconjunto da humanidade que tem o peculiar passatempo de acompanhar o Planeta 23 sabe que andei fazendo dezenas de postagens sobre o "Ulysses", a obra magistral do irlandês James Joyce, obra que dá o que falar, como previu o autor. Joyce, lui même, previu que a crítica literária iria ocupar-se de "Ulysses" por pelo menos 1.000 anos. Pois então: no dia 2 de fevereiro passado, completaram-se os 100 primeiros anos desse prometido milênio, com a publicação de dois exemplares pela editora parisiense Shakespeare and Company da editora americana Sylvia Beach. Joyce, naquele santo dia, completava 40 anos de existência.

A mais benévola crítica que li sobre este milenar romance (um dia voltarei a encontrá-la e referenciar comme il faut) diz que faltou um editor para o catatau, umas 800 páginas. Outros dizem-na genial e outros ainda dizem tratar-se de pure gibberish.

Pouca atenção tem sido dada aos requebros e meneios feitos pelos tradutores de milhares de países e milhões de línguas à obra magistral. Ou talvez pouca atenção tenha sido dada por mim a este tópico. O fato é que eu mesmo (ver postagens anteriores sobre o "Ulysses") coleciono traduções: as quatro em português, outras três ou quatro em espanhol e um PDF italiano. Um dia voltarei a Barcelona para ver se existe tradução catalã, se os nativos do território pararem de hostilizar os turistas. Pois então: tanto li a primeira sentença do primeiro capítulo da primeira parte do original em inglês (não indo muito longe nas leituras) que a decorei:

Majestosamente, o gordacho Buck Mulligan acercou-se do hallzinho da escada, portando um vaso de barbear em que se entrecruzavam um espelho e uma navalha.

Pois então. Poucos dias atrás, vim a saber em propaganda encaixada no Facebook que a Companhia das Letras publicou a tradução revisada do trabalho de Caetano Galindo previamente saído com o selo de Penguin-Companhia. E fui direto comparar a primeira sentença dois dois livros. Pensei que te repensei e pensa, repensa e cheguei à conclusão que a obra vista e a revista por Galindo têm parentesco com o conto "Pierre Menard, autor del Quijote", de Jorge Luis Borges (ver postagem completa clicando aqui e minha erudita discussão sobre vírgulas e o sentido do universo agora clicando aqui). Parece que já dá para ir tomando a metade da manhã de um domingo.

Nesta linha constatei que Galindo aperfeiçoou a tradução da primeira sentença, pois lemos:

a) naquela edição Penguin-Companhia:

Solene, o roliço Buck Mulligan surgiu no

alto da escada, portando uma vasilha de

espuma em que cruzados repousavam es-

pelho e navalha.

b) na novel edição da Companhia das Letras:

olene, o roliço Buck Mulligan surgiu no alto da escada, portando uma vasi-

lha de espuma em que cruzados repousavam espelho e navalha.

Bem estilo Pierre Menard, não é mesmo? Mas que dizer daquele "olene"? Não era o mais prosaico e sofisticado "solene" da Penguin-Companhia? Claro que era, mas esta edição 1000 vezes mais caprichada que a anterior capitula as letras iniciais de todos os 18 capítulos. Ou seja, reserva-se uma página exclusivamente para a letra capitulada.

Moral da história: de tanto ler, derrapar, reler, descansar, reler aquela primeira sentença, já descobri muita coisa sobre ela. Agora tem mais, ainda que não estejamos falando no original de 1922 e sim de uma tradução revisada. Moraleja: só procurando no motor de busca do blog para ver tudo o que já escrevi, derrapei, reescrevi, descansei, reescrevi sobre o assunto.  

DdAB

P.S. Não duvido que o lançamento da tradução revisada de Caetano Galindo tenha sido lançada precisamente no dia 2/fev/2022, ou seja, o primeiro centenário de nascimento de James Joyce. Seria bem romântico!

P.S.S. Quem me falou que a primeira edição, os primeiros dois exemplares da primeira edição, foram -os dois- levados a Paris, um deles sendo entregue a Joyce foi Caetano Galindo. Ou melhor, não falou, mas escreveu: "No dia 2 de fevereiro de 1922, meros dois exemplares do "Ulysses" ficaram prontos a tempo de chegar a Paris para marcar o aniversário de 40 anos de James Joyce."

P.S.S.S. Como sabemos, as reformas ortográficas de 2009, algo assim, reinseriram na língua brasileira o k, o w e o y. Assim, Galindo alertou-se e foi o primeiro a grafar "Ulysses". A melhor tradução para o português foi a da dame Bernardina da Silveira Pinheiro, de 2005, o que, talvez, levou-a a usar "Ulisses" mesmo. 

P.S.S.S.S. Entre os comentários que acompanharam a postagem no WhatsApp, destaco estas respostas que dei:

Para mim [a melhor tradução) é a de Bernardina da Silveira Pinheiro. Há uns 10 anos, quando li a resenha bibliográfica da obra/tradução no jornal e informando-me que a tradutora era octogenária, achei que valeria a pena comprar (antes tentara ler apenas a tradução de Antônio Houaiss). E assim começou a coleção.
Mas o que mais me diverte é ler os comentadores.

Por exemplo, um carinha defendeu a tese de que Joyce contraíra sífilis (talvez seja verdade) e começou o romance com a palavra "stately" e o terminou com um "yes", ou seja as letras inicial e final do nome da doença. A Bernardina não tem esse requebro, mas -depois que li o comentador- vi que Houaiss tem: inicia com "sobranceiro" e, daquele monte de "sim" do monólogo de Molly Bloom, ele traduziu o último "yes" dela como "sims".

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