24 março, 2022

Ulysses: a tradução de Bernardina


No outro dia, falei no relançamento da tradução do "Ulysses", de James Joyce, elaborada por Caetano Galindo. E falei que minha tradução preferida é a de 2007, da editora Alfaguarra/Objetiva, efetuada pela profa. Bernardina da Silveira Pinheiro. Ela trabalhou alguns anos na tradução, com a colaboração de colegas acadêmicos e estudantes. Uma grandiosa pesquisadora que deixa muitos legados à cultura brasileira, de que destacando esta obra monumental.

Nesta postagem, vou dar mais detalhes sobre as razões de minhas preferências. Mas, como bom gaúcho (heimat), começo botando defeito no que, depois, e apenas depois, vou elogiar... 

O DEFEITO

Tanta discussão já foi feita sobre o "Ulysses" que talvez já não mais seja possível fazer-se o levantamento de tudo o que foi escrito. Ou que apenas seja possível daqui a 1.000 anos... Um desses meandros da abordagem ao romance diz respeito às letras inicial e final da história: stately e yes, ou seja, as letras inicial e final da palavra "sífilis". Por quê? Existe uma longa bibliografia de comentadores sustentando que Joyce padeceu desta DST.

REFLEXÕES SOBRE OS DOIS "S" DO SUBSTANTIVO/ADVÉRBIO INICIAL (stately) E DO ADVÉRBIO FINAL (yes)

Para chegar na ilustração, temos um bom caminho a percorrer. Lendo daqui e dali, cheguei à conclusão que Joyce quis mesmo protestar contra a sífilis que o acometeu em algum ponto de sua vida ao iniciar o romance com a letra 's' e concluí-lo com outra (ver mais reflexões aqui). De fato em inglês, a edição princeps (Penguin) e também a edição de Hans Gabler (Vintage) mantêm as palavras originais 'stately' e 'yes'. Vou repetir aqui, para conveniência do leitor, a palavra inicial do romance nas traduções que tenho à mão ('stately'). E acrescentar a elas a final ('yes'). 

PORTUGUÊS BRASILEIRO E D'ALÉM MAR (fala-se em uma segunda tradução portuguesa já existente e de outra brasileira a ser lançada em junho/2022. Aqui acabei de tomar conhecimento com essa segunda tradução portuguesa, tendo a autoria atribuída a João Palma-Ferreira, cuja primeira frase deixa-se ler como “Pomposo, roliço, Buck Mulligan veio do alto da escada, trazendo uma tigela com espuma de barbear, na qual se cruzavam, em cima, um espelho e uma navalha”. A portuguesa e a novel  brasileira, no momento, são apenas objeto de meu desejo)

Pois então:

JOYCE, James (1966, 2003) Ulisses. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 13a. ed. 957p. Tradução de Antônio Houaiss. "sobranceiro" e "Sims"

JOYCE, James (2007) Ulisses. Rio de Janeiro: Alfaguarra/Objetiva. 908p. Tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro. "majestoso" e "sim".

JOYCE, James (2012) Ulysses. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras. 1106p. Tradução de Caetano Waldrigues Galindo. "solene" e "sim".

JOYCE, James (2022) Ulysses. São Paulo: 815p. Tradução de Caetano Waldrigues Galindo. "solene" e "sim".

JOYCE, James (2013). Ulisses. Lisboa: Relógio D'Água. 730p. Tradução de Jorge Vaz de Carvalho. "soberbo" e "yes".


TRADUÇÕES EM ESPANHOL

JOYCE, James (1988) Ulises. Barcelona: Debolsillo. 963p. Tradução de José Maria Valverde."solemne" e "sí".

JOYCE, James (2008) Ulises. Mexico: Tomo. 728p. (na verdade, "Grupo Editorial Tomo, S. A de C. V."). 1a. edición, noviembre. Tradução de J. Salas Subirat reproduzindo o original argentino."imponente". "sí''.

JOYCE, James (20011) Ulises. Madrid: Cátedra. (Tradução de Francisco Garcia Tortosa e María Luiza Venegas Lagüens em 1999). 908p. "majestuoso" e "sí".
abcz

VIRTUDES ADICIONAIS DA TRADUÇÃO BERNARDINA

Mais referências para avaliar a qualidade da tradução da profa. Bernardina são as notas do final do volume. Ela inicia confrontando a "Odisseia" de Homero com o "Ulysses" de James Joyce. Além disso, ela apresenta uma lista de termos requerendo qualificações praticamente página-a-página. Por exemplo, ao final do primeiro parágrafo do romance, vem uma expressão latina: "Introibo ad altare Dei". Bernardina escreve: [...] latim: "Eu irei ao altar de Deus". (Salmo 43.4) - Palavras do padre ao iniciar a antiga missa latina. Esta iniciativa é muito importante para quem deseja aposar-se dos detalhes da construção joyceana.

Mas isto não é tudo. Depois de um prefácio e sua bibliografia da autoria da professora, vemos um "Esquema dos Episódios", esquema este feito por James Joyce em 1921, para benefício de seu amigo Stuart Gilbert. Na edição Penguin-Companhia/Galindo, reproduz-se esse mesmo esquema. Podemos vê-lo clicando aqui. que, tristemente, foi eliminado da edução Companhia das Letras/Galindo. E ainda agora isso não é tudo, pois -além desse esquema feito para o amigo Stuart Gilbert, James Joyce fez outro, desta vez direcionado a seu amigo Carlo Linati (aqui).

E qual a importância desses esquemas? Eles mostram aspectos omitidos pelo próprio autor na edição princeps, ou seja a Penguin inglesa. Podemos entender que o  romance tem três partes. A primeira contempla os três capítulos iniciais e se intitula "Telemaquia". A segunda contempla os capítulos 4-15, intitulando-se "Odisseia" e a última contempla os três capítulos finais. E se intitula "Nostos".

Daí advém uma superioridade da tradução da profa. Bernardina sobre algumas das recém citadas, pois ela nos permite ver também o título dos 18 capítulos, o que já é também um brinde para o leitor. Mas ela não reproduz esses títulos como frontispícios dos próprios capítulos. A lápis, o leitor pode fazê-lo e, caso se arrependa, pode apagá-los... 

DdAB

P.S. Caetano Galindo é um acadêmico de respeito, especialista em comentar Joyce, além do "Ulysses" (além, claro, de outras especialidades). É dele um maravilhoso livro de introdução ao "Ulysses":

GALINDO, Caetano W. (2016) Uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce: São Paulo: Companhia das Letras.

Não sei o que é melhor: meter os peitos e ler a tradução da profa. Bernardina ou o livro introdutório de Galindo, também professor. Nas atrevo-me a recomendar a da professora.

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