01 dezembro, 2020

Melo, a Vaca e o Igualitarismo

 


Melo, como sabemos, é o prefeito-eleito de Porto Alegre, uma fulgurante manifestação de falsa consciência por parte da, como dizem os britânicos, lower class. Como pode a classe baixa (em tradução livre...) votar num programa claramente contra os interesses precisamente dos pobres? 

Só pode ser falsa consciência? E quem sou eu para dizer quem tem falsa consciência? Eu sou o discípulo da profa. Izete Pengo Bagolin que me ensinou: basta fazer um teste contrafactual. Indaga-se ao pobre se ele estaria melhor num projeto social-democrata do que no status quo ante. No caso, não seria "ante", mas depois. Imagine o pobre como estará no final do governo, digamos. E se ele preferiria viver naquele mundo paradisíaco que apenas as sociedades igualitárias podem oferecer. E parece óbvio que o pobre vai dizer que esse programa vencedor na eleição, com seu aval, é palha... Esse programa fê-lo (eu disse, 'fê-lo', por todos os reacionários do inferno...) piorar de vida: mais assaltos, mais descaso na saúde, mais escolas fechadas e mais promessas de esgoto (se lembro as quatro áreas de que falei ontem, segurança, saneamento, educação e saúde). E há milhares de outras áreas em que a diferença entre uma administração igualitária e outra liberal é gritante.

E que vaca é esta de que falo no título? Pois não fui capaz de ler uma entrevista inteirinha publicada no jornal Zero Hora, página 9, de hoje. Mas a manchete reza (reza, hein?):

Não vou aumentar a máquina pública, nem que a vaca tussa.

Convenhamos. O cara não quer sociedade igualitária, o cara não quer ver pobre empregado, quer ver pobre na pobreza, a lower class sem fazer sombra para a upper class, um mundo distópico de fazer inveja apenas ao... Brasil...

O senhor Melo não é capaz de entender que a máquina pública é o lugar em que tem papel o governo como "empregador de última instância". Quer dizer, dada a relação capital/produto de uma economia moderna e mesmo de outra subdesenvolvidinha como a brasileira, não há capital para empregar, no caso patrício, 25 milhões de trabalhadores que hoje detêm empregos precários.

Sendo as instituições mais fortemente encarregadas de agregar as preferências sociais no mundo econômico formadas pelo trio mercado-estado-comunidade, se o mercado não é capaz (nem quer, por sinal) dar emprego decente a todos, só nos restam a comunidade e o estado. Pelo tamanho, pelo controle dos recursos, o mais viável é o mercado, mas -se a vaca tussir- na visão ingênua de muitos governantes, a comunidade, com seus empreguinhos voluntários, poderá empregar esse contingente que, no Brasil, estimo em 25 milhões de "contribuintes".

Por que o emprego é a variável chave da sociedade igualitária? Imaginemos um presidiário dos dias atuais, internado numa sala cheia de colegas presidiários, todos respirando os mesmos aerosóis e comendo a mesma boia um tanto desagradável. Que papel teria ele a exercer numa sociedade igualitária? Primeiro, a construção civil ficaria feliz em fazer mais milhares de celas de cadeia para dar abrigo ao monte de farrapos humanos que se empilham nas cadeias. Com mais cadeias, também podemos pensar que em muitas delas poderão ser trancafiados os políticos ladrões que grassam de norte a sul e de leste a oeste neste querido Brasio.

O preso ideal (no sentido weberiano...) tinha dor de dente, ou dentes podres? Então os empregos de dentistas iriam crescer, os de auxiliares de dentistas, também, os de produtores de produtos dentários, também, os da transportadora do dentista e dos produtos dentários, também, os das empresas de manutenção dos equipamentos dentários, também, os da indústria de reparação de viaturas usadas no transporte dessa turma toda, também. E guardas, pessoal do restaurante, com ingredientes de qualidade, fogões de qualidade, panelas de qualidade, roupeiros de qualidade, lavadeiras de qualidade. Campos de futebol de qualidade, professores de qualidade, caixas de jogos de xadrez de qualidade, livros de filosofia de qualidade. A cadeia seria transformada num pólo gerador de empregos e mais empregos, deixando felizes aqueles até então desempregados que iriam absorver essas tarefas. E, claro, os presos, formados em filosofia, xadrez ou culinária (de qualidade) iriam mudar seu comportamento agatunado. Inclusive porque haveria mais repressão e tanto crime como o de Brasília e do resto do Brasil seria reprimido com vigor.

E as crianças e suas escolas, seus centros comunitários, hospitais, creches, ônibus? Também seriam pólos de geração de empregos para oferecerem-lhes bens e serviços que as tornarão adultos decentes, detentores de empregos decentes, capazes de votar decentemente. O paraíso? Não, ainda não falei das grávidas, dos velhinhos, da maioria negra, das minorias LGTBI+, das minorias índias, judias, tudo. O paraíso!

DdAB

P.S. Imagem daqui. Como podemos ver, uma vaca moderna, usando sua mascarazinha, ao contrário de milhões de brasileiros e demais terráqueos, pois sabe que, ao tossir, lança perdigotos sobre o prefeito preocupado com sua condição pulmonar.

2 comentários:

PROF. CONRADO disse...

Divino Dondo!

... DdAB - Duilio de Avila Berni, ... disse...

Muito grato, querido professor! Precisamos, nós outros, ganhar lições de retórica. Vivo batendo na tecla de que igualitarismo é sinônimo de emprego, ou vice-versa. E tenho amigos com filhos desempregados que pregam o estado mínimo. Vejo um sendo professor de "técnicas comerciais", outro, de odontólogo de escola, e assim por diante.
DdAB