28 dezembro, 2020

Natais de Paz e Amor entre 1946 e 1967 (e pau na cabeça dos despossuídos)



Quando eu nasci, o Brasil eram regidos pela Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil - de 18 de setembro de 1946. No verão de 1968, prestei exame vestibular para o curso de ciências econômicas da UFRGS. Aliás, era URGS, que um dos primeiros marechais a presidir a república encaçapou aquele F. Já naquele tempo, meus direitos e garantias individuais (???) eram regidos pela Constituição de 1967, a primeira de uma boa meia-dúzia produzida pelos militares. Ou seja, minha formação universitária seria acompanhada pelas noveis constituições, abandonando-se (se?) a de 1946.

Seguindo minha trajetória rumo à profissionalização, no primeiro semestre de 1968, cursei, entre outras, a disciplina de "Instituições de Direito" do curso de graduação em economia da UFRGS. Claro que os professores (um bando de cabotinos) rezavam pela constituição da república produzida pelo congresso nacional. Já naquele tempo, o congresso fora descaracterizado por montes de cassações e declarado editor de um projeto feito por juristas de respeito, respeito dos militares, esbirros da ditadura. E a constituição de 1967 era tão liberal, para gosto dos mandantes que em menos de dois anos foi substituída por outra, um tanto mais, digamos, circunspecta. E, naquele tempo, jornalistas-humoristas amados pelos brasileiros de minha geração criaram um jornalzinho chamado "O Pasquim" que, usando o nome tradicional da república "Estados Unidos do Brazil" (ou melhor, Brasil, que o nome já fora trocado durante a ditadura civil), passou a chamar a república de Brasil dos Estados Unidos. Os militares odiaram e na tal constituição de 1967 mudaram o nome para República Federativa do Brasil, nome que sobrevive, como sabemos, até hoje.

No segundo semestre daquele ano de 1968, dia 14 de dezembro (um sábado), estava eu sentado no murinho da Av. João Pessoa, 52, acompanhado de alguns colegas diletos. Eles aguardavam a abertura do Restaurante Universitário, do outro lado da rua, para o almoço. Foi então que alguém falou que os militares estavam baixando com data da véspera o Ato Institucional número cinco, talvez o mais truculento daquela fieira.

Mas a prova de que o mar já não estava mais para peixe vem mesmo da constituição de 1967, que removeu o artigo  145 da constituição de 1946:

CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL 
(de 18 de setembro de 1946)
[...]
TÍTULO V
Da Ordem Econômica e Social
Art. 145. A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho humano.
Parágrafo único. A todos é assegurado trabalho que possibilite existência digna. O trabalho é obrigação social. [o grifo é meu]
[...]

E nem vou falar no artigo seguinte, que dá papel de relevo ao governo como condutor da política econômica. Quero focar mesmo é nesse traço de assegurar à população trabalho que possibilite existência digna. Claro que nossos governos, nossos governantes, nunca pensaram nisto. Aquela constituição de 1967 contempla a palavra "emprego" dez vezes. Nenhuma tem o significado de garantir emprego a tod@s. Em compensação, a lei 10.835/2004 garante a todos uma renda básica da cidadania, um rendimento incondicional, que nem depende de emprego e que garanta existência digna. 2004? Segundo governo Lula. E garantiu? Não garantiu nada e até hoje ninguém fala deste projeto, nem com aquela "renda Brasil" que o governo Bolsonaro chegou a acenar.

E por quê meus dedos jamais vão cansar-se de digitar loas (loas, eu disse "loas", porca pipa?) ao igualitarismo? Por que é apenas na sociedade igualitária que o emprego é importante. Aliás, a causação roda pelo contrário: numa sociedade em que há emprego para todos, o igualitarismo é uma consequência natural. Dando empregos, a sociedade (o artigo 145/1946, na verdade) terá o governo como empregador de última instância. E, para oferecer empregos decentes, o governo deverá assumir um caráter social-democrático, produzindo ou provendo bens públicos (como a segurança e o saneamento) e bens de mérito (como a educação e a saúde). E, ao fazê-lo, por exemplo, na educação, estará criando empregos para professores, bibliotecários, dentistas, cozinheiros, motoristas, pedreiros, uma enorme cadeia de profissões que irão depender do gasto em educação. E mais em saneamento, pedreiros, engenheiros, cozinheiros, etc. Produzindo segurança pública, teremos investigadores, detetives e juízes decentes. Estes mandarão os filhos ao curso de clarinete. O professor de clarinete mandará o filho à Disneilândia. E assim por diante.

DdAB

P.S. A imagem é de um par de trabalhadores. Aliás, Rachel não é trabalhadora, pois não é humana. E o próprio "caçador de androides", dizem, também seria um androide. E será que eles teriam direito a um emprego que lhes possibilitasse existência digna?

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