Oxford tem um bairro chamado de Jericho. Sempre que eu passava por perto (e o fazia com frequência, ao mexer-me em torno da Faculty of Social Studies) e lia a placa de sinalização de tráfego indicando a saída para a rótula que para lá conduzia, eu lia "J'Erico" e em seguida "J'ai lis Èrico", batiam-me saudades do Brasil. Mas não lia o cruz-altense, pois tinha pilhas enormes para conseguir fazer umas 20 páginas de bibliografia na tese que lá escrevi.
Eu lera Érico na cruzada da adolescência para a vida madura alguns dos principais, com acento na sorte (livros em casa) e nas indicações da escola. Faço o registro da leitura de "O Senhor Embaixador", que li um ou dois anos depois do lançamento e muito amei, chegando mesmo a pensar em seguir a carreira diplomática e desistindo em tempo. Depois, em 1976, já professor de microeconomia na Unisinos, reli esse mesmíssimo "O Senhor Embaixador" e voltei a amá-lo. E há cerca de 10 anos, comecei a todos os "meus" Éricos sistematicamente. E defini um grupo de que falei numa postagem de 24 de março e chamei de
MEU PRIMEIRO ÉRICO
1933 - Clarissa.1935 - Caminhos cruzados.
1936 - Música ao longe.
1936 - Um lugar ao sol.
Um pouco adiante, no finalzinho do capítulo 95 (p.272), também exclamou, dirigindo-se a um eclesiástico flor de sem-vergonha que se banqueteava no palacete em que Dodó morava:
Às vezes, a gente não compreende por que é que há ricos e pobres. Por que será, monsenhor?
Diz Érico: "Monsenhor encolhe os ombros: intimamente só sabe que o peru está delicioso e o vinho é velho e generoso." Vera, a filha rebelde do casal, toma a palavra:
Existem pobres - explica Vera mentalmente - porque existem ricos como papai que gastam mais do que deviam, e querem ganhar mais do que precisam.
ÉRICO E OS MAXIMALISTAS
Ainda na linha de avaliar as condições sociais em que vivia, Érico Veríssimo faz eco aos chamados maximalistas de seu tempo em pelo menos duas passagens de "Um lugar ao sol".
Primeira: na página 296 da quinta seção do capítulo 2 da quarta parte do romance, Vasco e o conde conversam sobre qual a época ideal para se viver. Vasco indaga qual seria esse tempo para o conde. Este responde:
-Daqui a uma centena de anos, quando os hómens tiverem compreendido que ésse Frankenstein que fizeram, a máquina, deve ser explorado em seu proveito. Numa época em que a necessidade de trabalhar seja uma coisa microscópica. Precisamos domesticar as máquinas como os gatos. Não se ensina a um gato que ele não deve fazer certas inconveniências no soalho? Acho que uma máquina aperfeiçoada tem inteligência superior à dos gatos. [DdAB: aqueles 'hómens' e 'ésse' reproduzem o sotaque do alemão falando português.]
Segunda: agora passamos à página 343, eis que estamos na seção 3 do capítulo 13, quando tem a palavra o aventureiro Álvaro Bruno, o italiano pai de Vasco:
Estúpida cosa é o trabalho! Para que trabalhare? Os passarinhos trabalhano? As estrelas trabalhano? [DdAB: Não meti um acento em "trabalhano", mas fique claaro que a pronúncia de Álvaro, pelo que intuo, era mesmo "trabálhano".]
A observação do conde é mais afinada com minhas crenças. Há muitos anos, li um artigo de Martin Bronfenbrenner em que ele fala dos "maximalistas", gente que sugeria que, no futuro, a humanidade iria trabalhar apenas dois anos em seu ciclo de vida, tema que trato no blog volta e leia. O velho Álvaro não foi meu aluno em Introdução à Economia: a gente trabalha, pois tem a ambição de atender a crescentes volumes de necessidades. Mesmo nossos antepassados caçadores-coletores trabalhavam. E viviam numa incerteza desgranida, pois não tinham razoável crença em que teriam comida amanhã ou daqui a um ano. A divisão do trabalho é tão integrada à natureza humana quanto a linguagem ou a propensão a alimentar estranhos.
DdAB
P.S. Quando eu voltar a ler "Meu primeiro Érico" e o -agora batizo- "Duo intermediário", talvez dentro de um lustro, vou ficar atento para todas as dicas -pelo menos para o leitor que se torna arguto por causa de seu backward understanding. Explico-me: ao reler várias vezes a obra dele (e quem sabe de todos os demais autores prolíficos?) vim formando um conjunto de convicções sobre o que habitava o universo literário de Érico. Expressões e situações que aparecem nos livros anteriores e vão sendo reincorporadas nas obras seguintes. Situações que poderiam parecer despretensiosas tomam foros de premonição, antevisão, interpretação. Em "Um lugar ao sol", vemos o momento em que Noel (já casado com Fernanda) termina seu romance, muito orientado por ela, e lê para os amigos Vasco e Clarissa. No final da leitura, claro, indagam o que os amigos acharam da obra. Eles dão sua opinião e segue-se a pergunta relevante. Que nome dar àquele romance. Vasco sugere "Saga", o romance que o próprio Érico viria a publicar em 1940, isto é, quatro anos após "Um lugar ao sol".
E por falar no casamento de Vasco e Fernanda, fiz este spoiler para ir adiante com minhas brincadeiras, pois notei, naquele "Duo intermediário", que o primeiro parágrafo de "Olhai os lírios do campo", já entrega o ouro: Olívia vai morrer. Este spoiler perde apenas, pelo que me é dado entender à novela "A morte de Ivan Ilitch", de Leon Tolstói.
É tudo Bíblia ou Shakespeare ou até obras ainda mais sublimes e mais refinadas...
P.S.S. O artigo de Bronfenbrenner que me foi dado a ler pelo orientador de minha tese de mestrado gaúcha, o fraterno mestre e amigo prof. Antonio Carlos Fraquelli, tem algumas observações aqui:
https://19duilio47.blogspot.com/2014/08/metodologia-economica-e-martin.html.
E cito assim, pois nesta nova versão do blog não sei fazer este link direitinho.
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