07 agosto, 2020

Machado de Assis e a Presidenta

Puxa saco de crochê passo a passo: 48 modelos imperdíveis ...
(Imagem de uma pata simpática e puxa-saca)

O DILÚVIO DA DILMA

Hoje em dia, poucos observadores da cena brasileira portadores de ideais social-democratas negam-se a entender que a presidenta Dilma começou a cair durante as manifestações de 2013. Eu não me neguei a entender que havia oposição ao governo dela mesmo dentro da direção do PT. Rui Falcão e outros paulistas, além de mais brasileiros. Como a esquerda nacional poderia ter entendido que o que estava em jogo naqueles momentos em que a presidenta inclusive sugeriu a realização de nova constituinte era precisamente o lulismo?

Em certo momento, depois do dilúvio, tudo o que Dilma fazia foi sendo crescentemente contestado por, possivelmente, neo-liberais descontentes com... o lulismo. Por exemplo, estocar vento. Claro que pode, pois -no capitalismo- tudo vira mercadoria, inclusive o vento. Talvez não seja sensato estocá-lo em pacotinhos de pipoca, mas não é difícil entender que  energia cinética que leva as pás daqueles cata-ventos a girar deve ser convertida em energia mecânica e aí sim ela pode ser estocada em baterias ou algum outro mecanismo que não está ao alcance de minhas chinelas.

E presidenta? Foi um neologismo inventado pela mineirinha? Of course not, diriam William Shakespeare e outros falantes.

MACHADO PARADIGMÁTICO PARÓDICO
Pois passo a Machado de Assis. Letrado que sou nas obras (algumas, umas poucas, uma ou duas...) de Chico Xavier, não me surpreenderia ler as notas não de um defunto, mas ditadas pelo espírito que iluminou aquelas carnes. Mas, no caso, Machado nada fala sobre o oculto, a não ser o que lhe dita Braz Cubas. Ou, como escreve-se hoje, Brás Cubas, pois cada chefe de quadrilha que preside a academia brasileira de letraz jah tentha faser ssua mudamça orthográphicah, parará deichar ceu nome inexqueçível, um arrazo. Isto confunde o leitor arguto, como é meu caso, e volta e meia, como no final daquela sentença que felizmente acabou, vou metendo erros que eu myself ou algum espírito ditoso vai ditando.  Olha a página 13 do Prefácio de Hélio Guimarães na edição Penguin:

   Nas Memórias Póstumas, esse procedimento paródico [convenções do realismo e do naturalismo], antes mais discreto, torna-se ostensivo, dominando a cena, da capo. O título inusitado alude às Memórias de além-túmulo, de Assis Chateaubriand, um gigante do romantismo francês, com uma diferença que também é uma superioridade. Se Chateaubriand, escreve, naturalmente, em vida para ser lido depois de sua morte, Machado inventa o defunto autor Brás Cubas, que escreve depois da própria morte para leitores (nós!) [sic] ainda presos às contingências do mundo dos vivos.

A verdade é que vejo interesses materiais nesse troca-troca de signos para representar os velhos e batidos fonéticos vocábulos. Vendem-se mais dicionários, mais enciclopédias, dão-se ocupações a linguistas e aprendizes, estagiários e doutorandos. Mas perde-se a comunicação entre as gerações. De minha parte, volta e meia ando falando por este blog que já testemunhei duas mudanças ortográficas e, em menos de 100 anos acrescentei mais uma.

Segue-se que aquelas obras completas de Machado de Assis que se depositavam na prateleira da sala mostravam-se ilegível para a criança de alfabetização linha B que era eu. Posthumas, algo assim. Aquele "memorias", sem acento. E lá dentro um monte de palavras que não cabiam em minha compreensão do mundo composto por letras. Muito tempo depois, contudo, vim a entender que o que me impede de ler Luis de Camões não é a escrita arrevesada para os padrões de 1954, quando declaram ter-me alfabetizado, mas a semântica: barões eram varões...

Aliás, se a ortografia impedisse um adulto dominante das 26 letras (2) de entender conteúdos, eu não entenderia o inglês nem o francês, para deixar de citar outros milhares de línguas cuja ortografia para mim é perfeita estranha, mas vou aprendendo os fonemas e suas combinações sonoras. Então, quando eu leio "shakespeare" em minha cabeça soa "cheicspir", e sei que estamos falando, na absoluta maioria das vezes, no gênio literário de Stratford upon Avon. E que viés cognitivo poderia assorear minh'alma para não entender que "posthumo" é "póstumo" mesmo?

AS MUDANÇAS NA ESCRITA DA LÍNGUA PORTUGUESA/brasileira
Olhei há pouco na internet três sites que falam do assunto. 
https://www.superprof.com.br/blog/numero-de-mudancas-na-lingua-portuguesa/
Não vi consenso entre eles. Fui-me à Wikipedia que tem até coisas demais. Ainda assim, fico ao lado dela e recomendo a consulta.

MACHADO VOTA EM DILMA PARA PRESIDENTA
No capítulo LXXX - De secretário
Lá no finzinho, eis que Lobo Neves andou convidando Brás Cubas a ser seu secretário, eis que esta encaminhando-se a ser presidente de uma dessas províncias que depois passaram a chamar-se estados e que deram cria, já havendo quase tantos quantos há hoje os partidos políticos. Lá no finzinho, repito, lemos outra reflexão de Brasinho: 

Na verdade, um presidente, uma presidenta, um secretário, era resolver as coisas de um modo administrativo.

Consideremos agora meus quatro exemplares deste livro:
a) Biblioteca Nacional: presidenta
b) L&PM: presidente (nota 1)
c) Nova Aguilar: presidenta.
d) Penguin-Companhia das Letras: presidenta.
Resultado: presidenta 3 x 1 presidente.
Não é de deixar qualquer um odiando a ABL?

Culmino essa encrenca de transformar questão linguística em questão política, não aceitando que a coroa se designasse por presidenta. Primeiro, é voz corrente que, se o marmanjo é meu parente, a irmã dele é minha parenta. Por fim e em prova definitiva, evoco o testemunho de uma ex-aluna que, tentando defender-se de volta e meia levar-me presentinhos (modestos, para não serem confundidos com propinas), declarou não ser puxa-saca. Claro que ela poderia ter dito puxa-saco, mas achou por bem aderir àquele presidenta machadiano.

DdAB
Nota 1 Aqui neste livro da L&PM não se fala em "fixação do texto", mas há uma dupla de garotas declaradas como revisoras: Delza Menin e Graziela J. Prestes. Pois penso que foram elas que fizeram essa mudança de presidenta para presidente. Tempos atrás li uma coluna do linguista Cláudio Moreno dizendo acreditar que esse tipo de forma que normalmente assume o masculino tem dado lugar ao gênero feminino. E um dia li a cronista Martha Medeiros, de Zero Hora, falando em presidente Dilma. Pois tomei a liberdade de escrever a ela, já que o e-mail estava lá no jornal, e sugeri que ela passasse a falar em presidenta. Martha respondeu dizendo que, se falasse com Dilma, assim faria. Pois não é que, alguns anos depois da resposta, ela foi chamada a receber uma homenagem no Palácio do Planalto. Pois Martha voltou de lá, homenageada, e voltou a falar em presidente. Eu, na condição de vice-presidente de alguma birosca do bairro, não cobrei nada de quem nada me devia. Delza e Graziela corrigiram arcaísmos, mas deixaram intoleráveis "cousa" e "dous" que traduzo por "coisa" e "2". Cá entre nós...

Nota 2 Falei em 26 letras? Aqui mesmo no blog refiro a reclamação de Graciliano Ramos em "Infância" que a criança não é forçada a aprender apenas um alfabeto, mas quatro: forma maiúscula, forma minúscula, cursiva maiúscula e cursiva minúscula. Total: quatro alfabetos e, se forem essas 26, chegamos a 104 signos fonêmicos: a, be, ce, de, e-fe, etc.


DdAB
P.S. Olha o que creio ser a primeira edição:






2 comentários:

Unknown disse...

Muito interessante! Quanto à referência ao prefácio do livro Memórias do além-tumulo, será que Hélio Guimarães não estava pretendendo citar François-René de Chateaubriad, escritor francês, e não ao nosso famoso jornalista Assis Chateaubriand?

... DdAB - Duilio de Avila Berni, ... disse...

Sem dúvida, my Unknown friend! Assis ainda não dera as caras naquele tempo, vindo a nascer apenas 12 anos depois da publicação do romance em folhetins. Os responsáveis pela "fixação do texto" [pior que aquele dístico de que 'traduttore è traditore'] dão uma nota ressaltando a autoria do texto funéreo de François-René. Abraço