04 maio, 2020

Filosofia: qual a primeira?

Resultado de imagem para the evolution of culture in animals

Uma das recompensas ao negão ignorante é que ele vai ficando extasiado várias vezes por dia, ao ir aprendendo coisas e mais coisas. Na condição de estudioso de introdução à filosofia, um dia deparei-me com a compreensão de que a grande inovação filosófica na transição entre os séculos XIX e XX foi o que chamam, se não falha a memória, virada linguística. Li com interesse alguns textos sobre o assunto, naturalmente de autores/comentadores em livros introdutórios, falando sobre as obras de Frege, Russel, Moore e Wittgenstein, essa turma. A virada linguística. A filosofia analítica desses rapazes, contrastando com o que ouço chamarem de filosofia continental.

Todos os grandes filósofos, Aristóteles, Platão, três pontinhos, Descartes, Kant e pósteros, essa turma toda, todos eles devotaram alguma atenção ao problema da linguagem, aliás, a praticamente todos os campos em que a filosofia moderna costuma ser dividida. E o que depreendi da leitura da própria história da filosofia escrita por modernos é que a filosofia da linguagem tomou corpo, pois aquele quarteto que citei (e milhares de outros) queriam chegar à causa primeira, à preocupação com a qualidade do discurso filosófico. E entenderam que é a linguagem, seus signos e a comunicação. Como pode alguém filosofar numa linguagem passível de ambiguidades?

Se não me estendo, se não me abalo, se não me abato, vou fazer alguns arrazoados para colocar a filosofia da mente à frente da filosofia da linguagem. Mas antes preciso falar algo que só mesmo voltando a olhar (voltando?) o mais charmoso livro de uma survey da filosofia do século XX, que assim me foi apresentado por Eduardo Grijó, a long time ago,. Vou citando a primeira sentença do prefácio de:

RORTY, Richard (1988) A filosofia e o espelho da natureza. Lisboa: Dom Quixote.

   Quase na mesma altura em que comecei a estudar filosofia, fiquei impressionado com o modo como os problemas filosóficos aparecem, desaparecem, ou mudam de forma, em resultado de novas assunções ou vocabulários.

Nem preciso dizer mais nada. A exemplo dos livros O Capital e Ulysses, decorar a primeira sentença de um livro desses portes praticamente me desincentiva de ler o resto. O caso é que agora que quero especular sobre quem é a primeira filosofia abate-me um enorme baixo-astral, pois pode ser que o que penso ser algo interessante não passe de uma investida infantil e amadora de um pigmeu intelectual.

Mas relendo pela segunda vez (ou seja, terceira leitura) a obra:

LACOSTE, Jean (1992) A filosofia no século XX. Campinas: Papirus. Coleção Filosofar no presente.

parece que estou, enfim, entendendo que o mais básico ato de filosofar é penetrar nos meandros que nos são dados a pensar sobre a linguagem: signos e comunicação. Ao problematizar a noção de verdade, Lacoste diz que o início do processo é o reconhecimento e validação dos termos em que se dá o debate. E imaginei que neste caso precisamos recuar às faculdades mentais que possibilita essa validação: os estados mentais são prévios à fixação dos signos.

Pois nesse meu afã de tornar-me um PhD também em filosofia (titulação que obviamente não alcançarei jamais), deparei-me com o livrinho:

BIRMAN, Joel (2003) Freud e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Coleção Passo a passo, 27.

Diz ele na p. 36 caput:

[...] O psiquismo como objeto teórico autônomo se constitui somente aqui, de fato e de direito, passando a ser concebido, pois, de maneira descolada dos acontecimentos reais.
   O que Freud queria dizer com isto? Antes de mais nada, que existia uma realidade psíquica ao lado da realidade material, de maneira que a real queixa de sedução dos indivíduos [adultos, na psicanálise, falando abusos sexuais de seus pais, DdAB] deveria ser remetida à primeira e não mais à segunda, como supunha até então. O acontecimento continuava sendo real para o sujeito, é claro, mas o registro da experiência era a realidade psíquica e não mais a material. Enunciar isto seria formular que a verdade do acontecimento se fundaria apenas no registro dos signos e não mais no das coisas.

E qual não foi minha surpresa ao me ver filosofando... Tudo começou com a observação do comportamento de meu sobrinho-neto que mal completou um ano de idade. Ele não fala, mas se esta postagem demorar vai vê-lo como locutor proficiente. Mas o  garoto tem uma vida mental poderosíssima: ri, chora, grita, dá urros, rosna e ainda não diz nem mamãe.

Neste mundo, entendi que o cérebro-mente inicia percebendo as coisas e apenas então passa a atribuir-lhes signos de identificação e a incorporar signos de terceiros. Lá na ilustração da postagem, temos a capa do fascinante livro de John Bonner. A família usa um galho para penetrar no formigueiro, as formigas tentam defender sua morada, atacam o galho e os chimpanzés as comem. E o bebê-chimpanzé olha atentamente e em poucos instantes estará pronto para imitar seus amados.

Meu ponto é que os estados mentais - acreditar, amar, desejar, odiar, temer, ver, etc. - são anteriores à linguagem, isto é, são eles os elementos que requerem o primeiro ato de filosofar: como é que as ideias surgem, existem outras mentes, aqueles recortes que me fazem lembrar que está na hora de reler o livro introdutório ao tema de autoria de Thomas Nagel.

DdAB

2 comentários:

Flávia disse...

Vou ler alguns livros que você indicou.Parabéns pelo belíssimo trabalho de ...pensar.

... DdAB - Duilio de Avila Berni, ... disse...

Obrigado, querida! Muito obrigado!!! Parece que quem pensou mesmo foste tu!!!!