22 maio, 2009

Peixes de açude e papeleiros

Querido Diário:
eu disse: Querido Diário:
Desbanco-te com esta questão de queridagens, pois acabo de escrever:
querido David:
maravilhoso hoje! comecei pensando: é o melhor texto que já li em toda a minha vida. depois relativizei: dos 100 melhores, dos 10 melhores, mas insisti: é o melhor mesmo, com minha admiração crescendo a taxas exponenciais, as primas dos logaritmos.

também pensei que poderíamos começar um abaixo-assinado requerendo que essa macacada fosse obrigada a lidar exclusivamente com uma única lei: a lei do orçamento público. teriam assunto para avançar em:
.a. o projeto da lei que vigorará no exercício fiscal-financeiro de 2010
.b. fiscalização do cumprimento da lei de 2008 durante todo o decorrer dos 365 dias de 2009 (e até 366 dias, nos anos bissextos).
abraço
DdAB

de que trato? da crônica semanal de David Coimbra na p.3 de Zero Hora d'aujourdui:

Inveja dos peixes de açude

Uma vez uma carroça me atropelou, já contei. Faz décadas isso. Mas foi a causa de agora, poucos dias atrás, ter ficado chateado com os deputados do Rio Grande. Pelo seguinte:

Justamente no fulgor deste 2009 aconteceu de certo deputado estadual ter sido acometido por uma ideia para um projeto de lei. A partir daquele instante de luz, pôs-se a funcionar a gigantesca, pesada e complexa máquina do Estado. Estivéssemos atentos, nós, vulgares contribuintes, reles eleitores, também denominados genericamente de “povo”, poderíamos ouvir o clangor das engrenagens se movimentando.

Imagine os sons da faina dos funcionários públicos: as sábias frases do deputado e de seus assessores a discutir, no recôndito do gabinete acarpetado, qual seria a melhor forma de apresentar a proposta. Em seguida, nossos ouvidos seriam lambidos pelo tectec produzido por dedos ágeis desses mesmos funcionários a ferir os teclados de plástico dos computadores, redigindo o texto do projeto de lei. Depois, poderíamos ver a azáfama das dezenas de secretários da Assembleia percorrendo os corredores da Casa do Povo com o projeto em mãos, apresentando-o às comissões temáticas. Aí teríamos a satisfação de testemunhar o burburinho que se deu nessas comissões ante o projeto: legisladores sisudos debruçados sobre o texto, debatendo se ele deveria ser enviado ou não para a Comissão de Constituição e Justiça. Enviado, como foi, o zunzum daquela colmeia de trabalho que é a Assembleia partiu dos próceres da CCJ, que, do alto do seu saber jurídico, analisaram a ideia do parlamentar, e a aprovaram com louvor, submetendo-a, enfim, à votação em plenário.

O plenário é importante. É como se fosse o palco do Legislativo. No plenário, a atividade da máquina do Estado explode em ação pública e notória. Houve discursos na tribuna, quiçá apartes acalorados, houve votação, as taquígrafas a tudo anotaram, pressurosas, e o canal de TV da Assembleia transmitiu a função ao vivo para o Estado inteiro.

O projeto foi aprovado!

Mas os motores do Estado ainda não foram desligados. Seguiram a pleno, fazendo o projeto atravessar a Praça da Matriz, decerto levado por algum apressado funcionário em cargo de comissão muito bem ilustrado acerca do assunto, e em seguida o texto coruscante aterrissou na mesa da governadora Yeda.

Não estávamos prestando atenção. Pena. Estivéssemos, perceberíamos a concentração da governadora ao ter o projeto em mãos. Seus olhos castanhos correndo céleres pelas linhas impressas do papel, seu cenho franzido de gravidade e, a seguir, o aceno de aprovação que provavelmente fez com a cabeça, antes de apor sua assinatura sancionando a lei. Terminou? A dispendiosa máquina do Estado parou de funcionar? A resposta é não! O projeto agora foi repassado para os funcionários do Diário Oficial, que o digitaram, diagramaram e mandaram imprimir. As poderosas rotativas da gráfica estatal entraram em ação, a tinta beijou as lâminas de papel, o projeto do deputado passou para a imortalidade: está instituído o Dia dos Gaúchos Vitimados por Acidentes Aéreos!

São incontáveis as datas festivas aprovadas pela Assembleia, como a Semana do Peixe de Açude, e foi exatamente por isso que me aborreci. Assim como, suponho, outros peixes gaúchos, como os de lagos, largos, lagoas e até mesmo os marítimos, assim como todos esses peixes devem ter ficado irritados com a preferência dos deputados pelos peixes de açude, também eu me magoei. Tenho todo o respeito por quem já sofreu um acidente aéreo e, mais ainda, por seus amigos e familiares que têm de enfrentar a eventual perda. Mas a lei criada pela Assembleia me deixou órfão. E o Dia dos Atropelados por Carroças? Ninguém se importa conosco? Francamente! Tenho que achar um deputado simpático à nossa causa, à dos Atropelados por Carroças. Quero ouvir o doce som do dinheiro do contribuinte sendo queimado a nosso favor.

Retomo a palavra. E que dizer da lei proibindo a circulação de papeleiros? Não deveria ter surgido há 500 anos? O prefeito não deveria ser forçado a puxar carroças, 99% do tempo do mandato? Pior: provavelmente nada será feito por ninguém, pois eles estão fazendo leis para proibir a cobrança de meia entrada no cinema, de consumação nos bares, declarando persona non grata em Porto Alegre alguns peixes do Rio Amazonas, essas coisas. Deputado e vereador para mim, by the way, é a mesma coisa, sinecurista e nefelibata. Lei do orçamento? Lei dor, lamento.
.d.

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