11 maio, 2009

Glamour na Retórica

Querido Diário:
Estas apetitosas imagens originam-se da pesquisa que encomendei ao Prof. Google Images com o título de "glamour na retórica". Nada veio. Repeti com "glamour" e "retórica". Quero ilustrar com ela a proposição elementar que o consumo compulsivo de qualquer coisa leva à obesidade ou a qualquer outra coisa. E que disto nada podemos dizer sobre se o melhor para a sociedade é ter o voto voluntário ou compulsório, se devemos obrigar nossas crianças a fumar maconha ou proibi-las e por aí vai.

Neste afã, escrevi o que espero seja completamente auto-explicativo (com pequenas edições aqui):

Caro Humberto:
Na coluna "Sua Segurança" de ontem (p.5), vi, infelizmente, uma boa parte de preconceito de tua parte, talvez instilado pela "marcha pela maconha" que iria acontecer na tarde (e nem sei se aconteceu, nem como foi) dominical. É difícil, para mim que não sou literato, "provar" as tiradas preconceituosas. Mas, em minha intuição, ele está visível -por exemplo- na frase de encerramento do artigo ("É bom que os bichos-grilos de outrora, hoje de cabelos brancos, pensem duas vezes antes de defender uma liberalidade que só traz desgraças".

Talvez outra demonstração do preconceito seja a frase: "[Certas pessoas] Não enxergam que a disputa darwiniana entre os que pouco têm e desejam um lugar ao sol envolve mortes, vício, degradação." Neste caso, posso ir um pouco mais além. Penso que Darwin, Charles Darwin, nada tem a ver com o que alguns chamam de "darwinismo social". Como sabemos, foi o economista David Ricardo que influenciou Darwin a pensar em evolução e sobrevivência do mais apto. Ricardo, é verdade, pensou para a realidade econômica inglesa dos primeiros alvores do século XIX, tempo de inegável consolidação da revolução industrial. Mas Darwin -reza uma importante versão do debate evolucionista- não é conhecido por ter buscado analogias do comportamento animal com a sociedade humana: seu objeto de estudo sempre foi o indivíduo. O que hoje chamamos de "instituições" passou a ser estudado sistematicamente por biólogos apenas no século XX.

Sou dos que defendem uma política de liberalização relativamente ao consumo de drogas, mas não sou capaz de estabelecer os contornos precisos para a regulamentação, pois trata-se de temática das ciências da saúde (e não das ciências econômicas ou penais etc.). O que tenho plena convicção, que me leva ao ponto de esposar o tipo de posição implícita nestes conteúdos, é que existe um conceito importante de exercício da liberdade humana e que, no caso, associa-se ao conceito de consumo recreativo. Talvez aqui também possamos ver algo naquilo que me parece preconceituoso em tua posição. Pelo que tenho lido em tua coluna, não pareces trabalhar com este conceito. Apresso-me a dizer que, nesta área, estou mais à vontade para falar, pois passamos a discutir a liberdade de escolha do indivíduo, tema que enche livros e livros da ciência econômica. Todos eles, os livros, têm como cláusula liminar que a discussão sobre escolha exclui agentes sociais incapazes de praticá-la, listando invariavelmente crianças, criminosos e loucos. Ora, se estes três agentes estão excluídos do problema da escolha, o consumo -recreativo ou não- do que quer que seja não pode ser contestado numa sociedade aberta. Em outras palavras, consumo compulsivo é uma anomalia no comportamento do consumidor racional.

Precisamos, claro, discutir se a mãe que matou o filho, o filho que matou o pai, o menino que matou a professora, a menina que vendeu a TV caseira, agiram racionalmente. E aí volto ao tema do glamour da droga. O consumo recreativo de cigarros é ou foi glamouroso, como o é o consumo de raquetes Wilson ou o de torta de aipo com sal do Monte Himalaia. Quem fuma tabaco, dentro de certos limites, também poderia ser declarado como portador de alto grau de irracionalidade e, como tal, destituído do direito de escolha. Os contornos da liberdade pessoal não podem sob nenhum pretexto dar vasão ao autoritarismo social. No caso do tabaco, é evidente que a sociedade tem o direito de proibir o consumo em lugares públicos, mas apenas o autoriatrismo é que vai proibir o indivíduo de inalar o que bem entenda se ele, ao exercer sua liberdade de escolha, não atinge a liberdade dos demais. Também desconheço os limites físicos da propagação da fumaça, de sorte que não me proponho a regulamentar o cordão sanitário que deve ser esticado entre um fumante e um cidadão comum.

Dito isto, passo a listar algumas das frases do artigo com as quais concordo integralmente:
"A triste realidade atual é que as drogas são o cartão de visitas da morte entre irmãos. A porta do maior dos males, que é a violência. [...] O pesadelo do crack começa a dizimar vidas no Interior num ritmo tão ou mais intenso do que na Capital. Não só pelo uso, mas também em função da disputa dos pontos devenda e das dívidas contraídas pelos viciados. [...] Muito rapaz de classe média anda assaltando pessoas e roubando carros por aí, na fissura por mais uma pedra queimada."

E, mutatis mutandi, a própria frase de fechamento: nem calvos nem encanecidos devem defender desabridamente a desregulamentação do mercado de drogas! Mas tenho discordância radical de uma afirmação como a da "[...] liberalidade que só traz desgraças." Aqui há um problema na listagem de julgamentos de valor. Em minha opinião, quanto mais liberdade, maior será o bem-estar social. Mas talvez o problema não seja tanto de concordarmos em que a indústria das drogas é socialmente perniciosa. Pelo contrário, ambos concordamos, mas a diferença é o que fazer com a regulamentação. Em tua opinião, o combate frontal, impedindo todos os agentes sociais (digamos, cidadãos e o trio criança-criminos-louco) de escolherem, é a melhor estratégia. Eu divirjo, por achar que devemos isolar o cidadão do trio. E mais, nesta linha de raciocínio, penso que o encaminhamento do problema, tentando impedir o cidadão de escolher, distorce de tal maneira o meio-ambiente que a vantagem para lidar com o trio acaba nas mãos do traficante e não das autoridades sanitárias.

Sobre o "flagelo maior no interior": parece que este é um maravilhoso exemplo da possibilidade de explorarmos o tema de forma criativa, se estivermos descontentes com os resultados do atual tipo de abordagem. Muito provavelmente, o interior mais contaminado pela droga será o de menor desenvolvimento social (mais Montenegro e menos Vila Amor...). Os locais em que as instituições são mais frágeis do que em Porto Alegre serão presas fáceis da sanha dos traficantes. Penso que há enorme analogia deste teu diagnóstico com o que vemos, quando comparamos o malefício carreado pela proibição ao consumo recreativo de drogas nos Estados Unidos do que nos países terceiro-mundistas, como o Afeganistão, a Bolívia e o Brasil.

Tenho visto em Zero Hora a exploração de uma idéia que porta uma correlação espúria (estatisticamente falando) entre maconha e crack. Aparentemente, o pessoal que lida com o assunto no jornal esposa um modelo do tipo "quem consome maconha também consumirá crack", com evidências carreadas por milhares de casos. É possível que a associação entre uma e outro não obedeça a nenhuma relação causal mais forte, estando ambas relacionadas a terceiros fatores. Por exemplo, quem fuma crack é pobre, deseducado, vive em área de baixo desenvolvimento social, enfrenta problemas familiares sérios, foi vítima de violência por parte de adultos, e por aí vai. O perigo de conduzirmos recomendações para a implementação da política pública a partir deste tipo de associação terá um argumento pesado no seguinte raciocínio: a elevação do gasto em repressão ao comércio de drogas eleva-lhes o consumo. Esta correlação é inegável, como o é o exemplo tradicional de associação positiva despida de causalidade, no caso, entre o rebanho bovino da Índia e o PIB americano.

A experiência de mais de 20 cidades européias que já contam com "salas de consumo" tem tido avaliação muito positiva, no sentido de encaminhar o tratamento do problema (ao contrário do que afirmaste no outro dia na mesma coluna). Claro que este tipo de ambientação clínica não é destinado a elevar o consumo (não estamos mais aqui falando em consumo recreativo), ao contrário. Mas tal ocorre, como também reduz-se a criminalidade geral nos "red light districts".

Seja como for, estamos do mesmo lado, os bichos-grilos, os que sonham em um mundo de paz e harmonia como palavras de ordem, além de ti e de mim e dos policiais que acham que a repressão conduz à redução do consumo: queremos menos violência, sociedade menos conturbada pela indústria da droga. O que talvez me distancie de todos os citados é uma teoria da ação humana que se baseia numa lei (a da oferta e procura) cuja ação é muito, muito mais forte do que as leis que regem a evolução biológica e mesmo as que regem a atração gravitacional!

abraços do
DdAB

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