É Natal, é Natal,
Tudo tão legal.
Mas não é, não,
Mas não é, não
Aquele mito reação.
Pensei que este poema fosse de Carlos Drummond de Andrade. Mas, como diria Lord Byron, but it is not. Na verdade, diz-me a enfermeira do hospital em que me jogaram para as festas natalinas, é meu mesmo. Tê-lo-ia (como dizia o velho Temer), escrito mesmo hoje. Pois foi então que, nesse clima, veio-me à cabeça (felizmente ainda porto uma delas), o poema "O Mito", de Carlos Drummond de Andrade. Creio que a última vez que o li foi em 1972 (ano de minha formatura em economia), portanto há 50 anos, talvez 51, se é que a leitura foi feita em 1o de janeiro. E fim-de-ano em que estamos prestes a nos livrar d'"O Mito", aquele mito que rima com cabrito, achei que o elogio a Fulana pode estar representando o ódio das mulheres ao presidente misógeno.
Usando um velho teorema que aprendi ainda no segundo ano da faculdade (Av. João Pessoa, 52, em Porto Alegre), consegui decorar o poema todo. E agora o recito de cor, com ligeiras correções a referida enfermeira, que portava o livro dos poemas completos do grande poeta que amou Chico Buarque, homenageando-o com o livro "Boitempo", pois Chico falava em "Bom tempo". Vai lá, Drummond:
O Mito (de Carlos Drummond de Andrade, do livro "A Rosa do Povo")
Sequer conheço Fulana
Vejo Fulana tão curto
Fulana jamais me vê
Mas como eu amo Fulana
Amarei mesmo Fulana?
Ou é ilusão de sexo?
Talvez a linha do busto
Da perna, talvez o ombro
Amo Fulana tão forte
Amo Fulana tão dor
Que todo me despedaço
E choro, menino, choro
Mas Fulana vai se rindo
Vejam Fulana dançando
No esporte ele está sozinha
No bar, quão acompanhada
E Fulana diz mistérios
Diz marxismo, rimmel, gás
Fulana me bombardeia
No entanto sequer me vê
E sequer nos compreendemos
É dama de alta fidúcia
Tem latifúndios, iates
Sustenta cinco mil pobres
Menos eu... Que de orgulhoso
Me basto pensando nela
Pensando com unha, plasma
Fúria, gilete, desânimo
Amor tão disparatado
Desbaratado é que é
Nunca a sentei no meu colo
Nem vi pela fechadura
Mas eu sei quanto me custa
Manter esse gelo digno
Essa indiferença gaia
E não gritar: Vem, Fulana!
Como deixar de invadir
Sua casa de mil fechos
E sua veste arrancando
Mostrá-la depois ao povo
Tal como é, ou deve ser
Branca, intacta, neutra, rara
Feita de pedra translúcida
De ausência e ruivos ornatos
Mas como será Fulana
Digamos, no seu banheiro?
Só de pensar em seu corpo
O meu se punge... Pois sim
Porque preciso do corpo
Para mendigar Fulana
Rogar-lhe que pise em mim
Que me maltrate... Assim não
Mas Fulana será gente?
Estará somente em ópera?
Será figura de livros?
Será bicho? Saberei?
Não saberei? Só pegando
Pedindo: Dona, desculpe
O seu vestido esconde algo?
Tem coxas reais? Cintura?
Fulana às vezes existe
Demais: Até me apavora
Vou sozinho pela rua
Eis que Fulana me roça
Olho: Não tem mais Fulana
Povo se rindo de mim
(Na curva do seu sapato
O calcanhar rosa e puro.)
E eu insonte, pervagando
Em ruas de peixe e lágrima
Aos operários: A vistes?
Não, dizem os operários
Aos boiadeiros: A vistes?
Dizem não os boiadeiros
Acaso a vistes, doutores?
Mas eles respondem: Não!
Pois é possível? Pergunto
Aos jornais: Todos calados
Não sabemos se Fulana
Passou. De nada sabemos
E são onze horas da noite
São onze rodas de chope
Onze vezes dei a volta
De minha sede; e Fulana
Talvez dance no cassino
Ou, e será mais provável
Talvez beije no Leblon
Talvez se banhe na Cólquida
Talvez se pinte no espelho
Do táxi; talvez aplauda
Certa peça miserável
Num teatro barroco e louco
Talvez cruze a perna e beba
Talvez corte figurinhas
Talvez fume de piteira
Talvez ria, talvez minta
Esse insuportável riso
De Fulana de mil dentes
(Anúncio de dentifrício)
É faca me escavacando
Me ponho a correr na praia
Venha o mar! Venham cações!
Que o farol me denuncie!
Que a fortaleza me ataque!
Quero morrer sufocado
Quero das mortes a hedionda
Quero voltar repelido
Pela salsugem do largo
Já sem cabeça e sem perna
À porta do apartamento
Para feder: De propósito
Somente para Fulana
E Fulana apelará
Para os frascos de perfume
Abre-os todos: Mas de todos
Eu salto, e ofendo, e sujo
E Fulana correrá
(Nem se cobriu; vai chispando)
Talvez se atire lá do alto
Seu grito é: Socorro! E Deus
Mas não quero nada disso
Para que chatear Fulana?
Pancada na sua nuca
Na minha é que vai doer
E daí não sou criança
Fulana estuda meu rosto
Coitado: De raça branca
Tadinho: Tinha gravata
Já morto, me quererá?
Esconjuro se é necrófila
Fulana é vida, ama as flores
As artérias e as debêntures
Sei que jamais me perdoara
Matar-me para servi-la
Fulana quer homens fortes
Couraçados, invasores
Fulana é toda dinâmica
Tem um motor na barriga
Suas unhas são elétricas
Seus beijos refrigerados
Desinfetados, gravados
Em máquina multilite
Fulana, como é sadia!
Os enfermos somos nós
Sou eu, o poeta precário
Que fez de Fulana um mito
Nutrindo-me de Petrarca
Ronsard, Camões e Capim
Que a sei embebida em leite
Carne, tomate, ginástica
E lhe colo metafísicas
Enigmas, causas primeiras
Mas, se tentasse construir
Outra Fulana que não
Essa de burguês sorriso
E de tão burro esplendor?
Mudo-lhe o nome; recorto-lhe
Um traje de transparência
Já perde a carência humana
E bato-a; de tirar sangue
E lhe dou todas as faces
De meu sonho que especula
E abolimos a cidade
Já sem peso e nitidez
E vadeamos a ciência
Mar de hipóteses. A Lua
Fica sendo nosso esquema
De um território mais justo
E colocamos os dados
De um mundo sem classes e imposto
E nesse mundo instalamos
Os nossos irmãos vingados
E nessa fase gloriosa
De contradições extintas
Eu e Fulana, abrasados
Queremos... Que mais queremos?
E digo a Fulana: Amiga
Afinal nos compreendemos
Já não sofro, já não brilhas
Mas somos a mesma coisa
(Uma coisa tão diversa
Da que pensava que fôssemos.
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