25 fevereiro, 2021

Perfume de Graciliano

 

(capa de "minhas" Memórias do Cárcere)

Estou lendo, pela terceira vez, as "Memórias do Cárcere", de Graciliano Ramos. Tenho em mãos a edição em dois volumes do Círculo do Livro de data "s.d.", ou seja, data sem data, não podemos concluir, com a informação que detemos o ano da edição. Mas eu até poderia dizer c.1980. Em 1980 e talvez 1981, fui sócio deste clube, infelizmente falecido (o clube, por sinal, e não eu...). O livro que agora compulso foi adquirido em um sebo porto-alegrense. 

E por quê volto a ler Graciliano e suas memórias? Gosto da escrita escorreita dessa turma cuja amostra o posiciona ao lado de Machado de Assis e talvez alguns outros, mas não todos, que não li. Por isso mesmo, fico satisfeito em citar e reler esta dupla. Também costumo, mas não lhe dou a mesma elegância do duo citado, reservar para ler nos outonos a maior parte dos livros de Érico Veríssimo.

Estou o segundo volume do Círculo e Terceira Parte da concepção original da obra publicada em 1953. E parei na página 394, pois algo me chamou a atenção e inspirou-me a dar o título que esta postagem porta: perfume (substantivo que não consta da página) e Graciliano. Perfume lembra-me dois filmes:

a) o original - olha a Wikipedia:

Profumo di donna (no Brasil e em Portugal, Perfume de Mulher) é um filme italiano de 1974 dirigido por Dino Risi.

Sigo eu: filme dirigido por Dino Risi, baseado no livro de Giovanni Arpino intitulado Il buio e il miele (o escuro e o mel), bela arte gráfica que li em português.

b) a refilmagem Scent of woman, inclusive o título do filme (mas não, claro, do livro italiano), nomeadamente, Perfume de mulher. A direção é de Martin Brest e tem os atores Al Pacino e Chris O'Donnell, respectivamente no papel do tenente e do guri. E não posso deixar de citar a angelical Gabrielle Anwar, com quem Al Pacino dança aquele tango que ajudou até a um revival do tango clássico, especialmente o gardeliano "Por una cabeza". 

Pois então. Não lembro se o que vou narrar em instantes está no filme com o imbatível Vittorio Gassman (tá na hora de rever...). O fato é que, na versão americana, uma das cenas que mais me divertiu foi aquela em que o guri que exerce as funções de acompanhante devia estar tentando pegar o papel -não lembro mais detalhes, talvez o endereço onde a sobrinha quer o Al depositado no feriado pascal- e a solução encontrada por Al Pacino foi segurar o papel e... comê-lo.

Pois então novamente. Aí é que entra Graciliano Ramos com o livro pobremente referenciado no parágrafo inicial desta postagem, páginas 393-4. O contexto é a Terceira Parte, Colônia Correcional, capítulo 23. A vida nesse ambiente é difícil, dificílima. O contexto é criado por um guarda, Alfeu de nome, que às vésperas do aniversário do diretor da prisão, queria homenageá-lo com um discurso. E foi pedir a Graciliano para escrevê-lo. Nosso Graça faz mil divagações sobre as consequências de uma recusa (afinal convence o soldado que não é conveniente fazer o serviço), pois vira-o esbordoando outro prisioneiro, chutando-o com "as biqueiras do sapato". Segue nosso Graça:

    Um medo horrível, presumo que ninguém sentiu medo assim. Já me havia sucedido coisa semelhante, anos atrás. Em geral me atordoo, perco a noção do perigo, não ouço tiros num conflito; vem-me custosa, em pedaços, a conveniência de resguardar-me atrás de uma árvore, num vão de uma porta. Em 1930 um piquete das forças revolucionárias de Agildo Barata agarrou-me no interior de Alagoas e fingiu querer fuzilar-me. No Pavilhão dos Primários Agildo ria escutando a narração dessa proeza besta. Eram dezesseis malucos. Esvaziaram-me os pneumáticos do carro, encheram-me de perguntas e ameaças. Atrapalhado em excesso, não respondi; tirei do bolso um papel e mastiguei-o. Preso, estirado na cama, o chapéu cobrindo-me o rosto, ouvi pancadas; sentei-me, vi perto um indivíduo a bater com a soleira do fuzil no chão, querendo assustar-me. -"Você dispara esse diabo e mata um companheiro. Com licença." Estirei o braço e virei a asa do registro de segurança. Achava-me bastante apreensivo, mas era receio comum. Alguns dias de reclusão, vários aborrecimentos. Mas sério não me fariam aqueles militares vagabundos, incapazes de pegar direito numa arma. Não, não era medo. Medo senti agora, diante do cafuzo, pensando nos sapatos ferrados, na cólera doida. Medo igual ao que experimentara anos antes, uma noite de lua. 

E continua contando uma historinha de arrepiar, jovem, fogoso, em terreno minado: família da "criaturinha sem-vergonha". Esse Graça! Mas o papel comido não fez falta, pois ele escreveu montes, obras monumentais. Voltarei a falar nas "Memórias do Cárcere".

DdAB

P. S.

As Memórias do Cárcere foram publicadas originalmente em quatro volumes:

Primeira Parte - Viagens

Segunda Parte - Pavilhão dos Primários

Terceira Parte - Colônia Correcional

Quarta Parte - Casa de Correção

18 fevereiro, 2021

Bolsonaro e a Filosofia da Ciência


Que teria Bolsonaro a dizer sobre epistemologia, gnosiologia, filosofia da ciência, essas coisas do mundo cognitivo? Certamente nada, nadicas de nada. Por contraste, os estudiosos dos métodos de investigação científica muito têm a falar sobre o presidente da república, um representante do modo irracional de governar, um anti-popperiano por ser incapaz de abandonar o pensamento mágico.

Tão nefasta é a influência do presidente e seus acólitos e inspiradores sobre as políticas governamentais que o país paga em diferentes momentos com diferentes moedas. A mais óbvia é formada pelo número de mortes por covid-19 até, digamos, hoje: de longe mais de 200 mil ocorrências. E a mais triste é o número de novas mortes por omissão governamental nas providências para a cobertura vacinal de todo o país. 

O número de mortes nos tempos anteriores à disponibilidade das vacinas chinesa e britânica não foi exatamente uma fatalidade. O presidente da república, ao fazer pouco caso da já declarada pandemia, foi o pior exemplo para a disseminação das medidas saneadoras: a higienização das mãos, o uso de máscaras e o distanciamento social. Bolsonaro parece nunca ter lavado as mãos, é certo que raramente usa máscara e pelo exemplo e o jogo de corpo não respeita o isolamento social.

Outro desserviço às causas do progresso humano diz respeito ao desrespeito a regras básicas do pensamento ordenado, racional. Pensar racionalmente é uma característica de uma personalidade madura e saudável. Pensar racionalmente, além disso, e até antes disso, é o maior antídoto contra a violência. Pensar racionalmente, em resumo, é um atributo alheio às conclamações violentas de Bolsonaro. Acreditar em fantasmas e na teoria da grande conspiração é traço característico dos mandatários daqueles 57 milhões de votos de brasileiros nas eleições de novembro de 2018.

Todo mundo ficou aturdido com tanta insanidade da parte do governante máximo, o chefe das forças armadas, aquilo tudo. E acho que até os mais capazes entre nós temos confundido o que manda a ciência com as chamadas melhores práticas. De fato, a ciência não manda nada, pois suas funções primordiais são a explicação e a previsão, mas não a recomendação). Quem faz recomendações são os modelos, como o de Copérnico sobre o movimento dos astros ou de Emma de Mascheville (*1903, +1981), de movimentos das emoções humanas (baseada nos astros).

DdAB

P.S. Por outro lado, entendi que, cada brasileiro podendo adquirir seis armas de fogo, os bandidos rapidamente vão começar a assaltar a turma. Já imaginei que seria de mim se bandidos invadissem meu "abrigo inviolável" e pedissem minhas seis armas. Eu iria dizer: "Ehr, uhh, não tenho armas." E claro que eles iriam pensar: "Este velhote está mentindo". E passariam a aplicar-me os mais elevados truques de baixaria para eu indicar-lhes o local onde guardava o cobiçado sexteto.

08 fevereiro, 2021

Reminiscências Daqui e Dali


Reminiscência é coisa de velho, lógico, pois - quanto mais jovem - menor é o estoque de dejà vu. Ao mesmo tempo, tem tanta reminiscência na mente de um velho que torna-se crucial fazer seleções, especialmente, botar pra fora do campo as lembranças amargas. Já andei dizendo ter uma lista que já alcançou 100 itens em que registrei eventos desagradáveis de minha vida com o objetivo de esquecê-los. E periodicamente passo os olhos nela para conferir se ainda há alguma que não foi para o olvido.

Primeira reminiscência (se é que o que acabamos de ler não são outras delas). Digamos que lá pelos anos 1980 li o livro de Gail Sheehy intitulado Passagens, onde encontrei um quinteto, o do ajustamento bem sucedido, eu que estava completamente desajustado de alguns valores que deveriam mesmo ser rompidos:

: ser produtivo, 
: ter boa relação com os outros, 
: conhecimento e aceitação de si mesmo, 
: perceber eficazmente a realidade e
: pensar racionalmente.

Esta do "pensar racionalmente" sempre me levou a desconfiar daqueles que consideram que o postulado da racionalidade usado para a construção de boa parte da teoria econômica é despido de significado. E depois ainda vim a entender que pode-se modelar racionalmente como "racional" a ação de dois passarinhos em disputa por um território.

 Pulando menos de uma década, cheguei, bem ajustadinho, mas com desajustamentos adicionais, aos 2/fev/1989 (menos de um mês depois da chegada a Oxford, a terra da vacina, para cursar meu doutorado em economia). Eu ouvia regularmente a Rádio BBC-4, para tentar melhorar os ouvidos, a audição, a compreensão da língua de Shakespeare. Nesse momento, ouvi os trabalhistas britânicos fazerem 

a defesa do salário mínimo sob o argumento de que ele elimina firmas ineficientes e favorece investimentos.

Mais uma: sem saber que o ano seria esculhambado pela invasão do covid-19, aos 
23 de fevereiro de 2020, um divertido domingo passado na aprazível cidade de Canela, lembrei - e anotei - que 

a Sorveteria La Basque tem filial no Shopping Iguatemi.

Por fim, faço uma reminiscência bem recentinha, pois a fiz (eu já ia dizendo "fi-la"...) no final do ano de 2020. Registrei que tenho lido textos de muita gente lamentando o 2020. E, por ser rebelde do contra, já fico me preparando para argumentar que:

a) terminamos vivos
b) aprendemos mais sobre o lado amargo da vida
c) mantemos o sonho em que o futuro nos reserva enormes alegrias.

E não lembro de ter desejado feliz ano-novo a tod@s. Se não o fiz, faço-o agora. Se o fiz, desejo que todos ganhamos a mega-sena.

DdAB

04 fevereiro, 2021

O MST e Eu... e Mais Gente




O MST: valeria para a administração do Brasil, talvez com um número reduzidíssimo de ministérios:

Ministério da Alimentação (comida na mesa de nascidos vivos).
Ministério da Saúde (saúde para nascidos vivos de tenra idade e de dureza da vida).
Ministério da Higiene (saneamento/esgotos, água, sabão...).
Ministério da Segurança (sistema judiciário, inclusive prisões, delegacias, campos de concentração para juízes ladrões).
Ministério da Infra-estrutura (moradia, ferrovias, pontes, túneis, canais hídricos, ...) Principalmente lidar com o aquecimento global, contratação de guardas florestais, a fim de dar andamento ao projeto da plantação planetária de um trilhão de árvores).
Ministério da Comunicação (criar meios de comunicação a dar e vender).
Ministério da Cultura (+Educação Física).
Ministério da Mística (filosofia da religião).

Grande divulgador dessa linha de ação do MST, eu mesmo fico um tanto cabreiro para dar espaço ao Ministério da Mística. Mas aproveitei o ensejo e fiz complementações. Talvez possamos adaptar essas oito pastas e, em particular, transformar a da mística em Ministério da Filosofia da Religião, um curso de filosofia que vai requerer o conhecimento profundo de todas as grandes áreas em que hoje se subdivide o tema.

Áreas de atuação continuada que recolhi daqui, onde apus comentários.

Administração pública,
Agricultura,
Assistência social,
Educação, 
Energia, 
Infraestrutura
Reforma tributária, 
Saneamento, 
Saúde, 
Política comercial (inclusive câmbio),
Política externa, 
Política fiscal (gastos e tributos),
Política monetária (juros e crédito),
Previdência social, 
Reforma agrária,
Reformas sociais,
Relações industriais,
Reforma política,
Segurança pública e
Transportes.

Temos estas considerações que intitulei de Segredo do desenvolvimento econômico:
No seu excelente The Elusive Quest for Growth, William Easterly não consegue chegar a nenhuma receita mágica para o enriquecimento dos países, mas dedica um capítulo inteiro a ações induzidas por governos que foram capazes, ao longo da história, de enterrar o crescimento. São elas: inflação alta, altos ágios no mercado paralelo de câmbio, altos déficits de orçamento, juros reais fortemente negativos, restrições ao livre comércio, burocracia excessiva e serviços públicos inadequados.
[Tirei de: http://drunkeynesian.blogspot.com.br/2012/06/uma-cronica-argentina-2001-2012.html].

Claro que fico pensando no que acontece aos países que têm:
.a. inflação rastejante
.b. taxa de câmbio próxima do equilíbrio
.c. orçamento razoavelmente equilibrado
.d. juros próximos à taxa de lucro da economia
.e. comércio internacional razoavelmente livre
.f. reduzida burocracia
.g. serviços públicos de boa qualidade.

Será que tudo isto poderia ser resumido em "boas instituições"? E, se puder, como é que faz para o surgimento de boas instituições e a transformação das más? Education, education, education!

DdAB
Podemos acrescentar o modelo donut de Kate Raworth que colhi do mural do Facebook de Márcio Gasperini Gomes em 18 de abril de 2020:
água, alimento, saúde, educação, renda e trabalho, paz e justiça, voz política, igualdade social, igualdade de gênero, moradia, vida em sociedade, energia.




DdAB

01 fevereiro, 2021

Dona Zulma e o Auxílio Emergencial

 

Página 9 do jornal Zero Hora de hoje. Sem emprego, vivendo em moradia precária, dona Zulma poderia declarar-se estupefata com aqueles que acham que as finanças públicas do Brasil entrarão em colapso se o auxílio emergencial for mantido.

Minha defesa da implementação da lei 10.8352004 (renda básica da cidadania) é radical e certamente, com o tempo, removeria gente como dona Zulma da zona da vida precária, dando a seus filhos oportunidades que hoje são reservadas a seletas minorias. Na sociedade igualitária, a social-democracia garantirá a renda básica, mas essencialmente o emprego público no "serviço municipal". Nesta ocupação dona Zulma e outros despossuídos poderão trabalhar em cuidados ambientais, cuidar de crianças e velhos, além de estudar e praticar exercícios físicos. 

Para ela, acena-se com um projeto em que nada será perdido, mas aparecerá mundo inteiro a ganhar.

DdAB

P.S. O Brasil é um país "abençoado" com uma escandalosa distribuição de renda, o que permite que, elevando a arrecadação do imposto de renda da pessoa física em 10%, aquele "auxílio emergencial" poderia tornar-se a renda básica da cidadania.