Estou lendo, pela terceira vez, as "Memórias do Cárcere", de Graciliano Ramos. Tenho em mãos a edição em dois volumes do Círculo do Livro de data "s.d.", ou seja, data sem data, não podemos concluir, com a informação que detemos o ano da edição. Mas eu até poderia dizer c.1980. Em 1980 e talvez 1981, fui sócio deste clube, infelizmente falecido (o clube, por sinal, e não eu...). O livro que agora compulso foi adquirido em um sebo porto-alegrense.
E por quê volto a ler Graciliano e suas memórias? Gosto da escrita escorreita dessa turma cuja amostra o posiciona ao lado de Machado de Assis e talvez alguns outros, mas não todos, que não li. Por isso mesmo, fico satisfeito em citar e reler esta dupla. Também costumo, mas não lhe dou a mesma elegância do duo citado, reservar para ler nos outonos a maior parte dos livros de Érico Veríssimo.
Estou o segundo volume do Círculo e Terceira Parte da concepção original da obra publicada em 1953. E parei na página 394, pois algo me chamou a atenção e inspirou-me a dar o título que esta postagem porta: perfume (substantivo que não consta da página) e Graciliano. Perfume lembra-me dois filmes:
a) o original - olha a Wikipedia:
Profumo di donna (no Brasil e em Portugal, Perfume de Mulher) é um filme italiano de 1974 dirigido por Dino Risi.
Sigo eu: filme dirigido por Dino Risi, baseado no livro de Giovanni Arpino intitulado Il buio e il miele (o escuro e o mel), bela arte gráfica que li em português.
b) a refilmagem Scent of woman, inclusive o título do filme (mas não, claro, do livro italiano), nomeadamente, Perfume de mulher. A direção é de Martin Brest e tem os atores Al Pacino e Chris O'Donnell, respectivamente no papel do tenente e do guri. E não posso deixar de citar a angelical Gabrielle Anwar, com quem Al Pacino dança aquele tango que ajudou até a um revival do tango clássico, especialmente o gardeliano "Por una cabeza".
Pois então. Não lembro se o que vou narrar em instantes está no filme com o imbatível Vittorio Gassman (tá na hora de rever...). O fato é que, na versão americana, uma das cenas que mais me divertiu foi aquela em que o guri que exerce as funções de acompanhante devia estar tentando pegar o papel -não lembro mais detalhes, talvez o endereço onde a sobrinha quer o Al depositado no feriado pascal- e a solução encontrada por Al Pacino foi segurar o papel e... comê-lo.
Pois então novamente. Aí é que entra Graciliano Ramos com o livro pobremente referenciado no parágrafo inicial desta postagem, páginas 393-4. O contexto é a Terceira Parte, Colônia Correcional, capítulo 23. A vida nesse ambiente é difícil, dificílima. O contexto é criado por um guarda, Alfeu de nome, que às vésperas do aniversário do diretor da prisão, queria homenageá-lo com um discurso. E foi pedir a Graciliano para escrevê-lo. Nosso Graça faz mil divagações sobre as consequências de uma recusa (afinal convence o soldado que não é conveniente fazer o serviço), pois vira-o esbordoando outro prisioneiro, chutando-o com "as biqueiras do sapato". Segue nosso Graça:
Um medo horrível, presumo que ninguém sentiu medo assim. Já me havia sucedido coisa semelhante, anos atrás. Em geral me atordoo, perco a noção do perigo, não ouço tiros num conflito; vem-me custosa, em pedaços, a conveniência de resguardar-me atrás de uma árvore, num vão de uma porta. Em 1930 um piquete das forças revolucionárias de Agildo Barata agarrou-me no interior de Alagoas e fingiu querer fuzilar-me. No Pavilhão dos Primários Agildo ria escutando a narração dessa proeza besta. Eram dezesseis malucos. Esvaziaram-me os pneumáticos do carro, encheram-me de perguntas e ameaças. Atrapalhado em excesso, não respondi; tirei do bolso um papel e mastiguei-o. Preso, estirado na cama, o chapéu cobrindo-me o rosto, ouvi pancadas; sentei-me, vi perto um indivíduo a bater com a soleira do fuzil no chão, querendo assustar-me. -"Você dispara esse diabo e mata um companheiro. Com licença." Estirei o braço e virei a asa do registro de segurança. Achava-me bastante apreensivo, mas era receio comum. Alguns dias de reclusão, vários aborrecimentos. Mas sério não me fariam aqueles militares vagabundos, incapazes de pegar direito numa arma. Não, não era medo. Medo senti agora, diante do cafuzo, pensando nos sapatos ferrados, na cólera doida. Medo igual ao que experimentara anos antes, uma noite de lua.
E continua contando uma historinha de arrepiar, jovem, fogoso, em terreno minado: família da "criaturinha sem-vergonha". Esse Graça! Mas o papel comido não fez falta, pois ele escreveu montes, obras monumentais. Voltarei a falar nas "Memórias do Cárcere".
DdAB
P. S.
As Memórias do Cárcere foram publicadas originalmente em quatro volumes:
Primeira Parte - Viagens
Segunda Parte - Pavilhão dos Primários
Terceira Parte - Colônia Correcional
Quarta Parte - Casa de Correção