Estava eu calmamente preparando esta postagem quando tudo se acelerou. Vi uma postagem no mural de Flávio Comim no Facebook informando (e eu não sabia) que acaba de sair o novo livro de Thomas Piketty intitulado "Capital and Ideology". Não li o livro, mas pude ler uma resenha bastante cáustica que foi recomendada pelo prof. Ronald Hillbrecht lá no mural do prof. Comim mesmo. Então aquilo que seria apenas uma viagem sobre conceitos passou a centrar-se na dupla ideologia-paradigma.
Durante muito tempo, eu achava que "definir um conceito" era tão abstruso quanto, digamos, o presidente Bolsonaro e seus miquinhos amestrados. Até que cheguei a um desses livros de introdução à filosofia que venho consumindo desde que me dei conta de que devo falar algo nesta linha, por ser um Doctor of Philosophy. Então já falei em
ALMEIDA, Aires e MURCHO, Desidério (2014) Janelas para a filosofia. Lisboa: Gradiva. (Coleção Filosofia Aberta, 26).
e postei sobre ele aqui. Na página 247, Almeida e Murcho dizem-nos que devo reproduzir aqui para conveniência do leitor diligente (mas sem tempo para dirigir-se à postagem citada):
Um conceito não é uma palavra; é o que as palavras exprimem. Há muitos casos em que uma palavra exprime diferentes conceitos: a palavra 'papel', por exemplo, tanto exprime o conceito de pasta fibrosa de origem vegetal com que fazemos livros, jornais, etc., como o conceito de um dos povos da Guiné-Bissau. Quando queremos definir um conceito [DdAB com o negrito], não é porque estamos interessados em palavras, mas antes porque estamos interessados no que as palavras exprimem.
Pois então: nem sempre conseguimos ser felizes a ponto de, com esta distinção em mente, atijolar adequadamente os conceitos. Exemplifico com os dois que citei anteriormente: ideologia e paradigma, o que me leva a descambar para concepção de mundo. Um mundo nada mundano, como percebemos. Então começo:
IDEOLOGIA
Ideologia é o título de uma canção de Cazuza: "ideologia: eu quero uma para viver". E, ao mesmo tempo, é um festejado termo da sociologia, chegando também a outras ciências sociais. Diz o dicio.com.br:
Ideologia: reunião das certezas pessoais de um indivíduo, de um grupo de pessoas e de suas percepções culturais, sociais, políticas etc: sua ideologia é fazer bem ao próximo.
[Política] Reunião das ideias características de um grupo, de um período, e que marcam um momento histórico: ideologia capitalista.
Ciência da origem das ideias; estudo das ideias de modo abstrato; doutrina das ideias.
[Sociologia] Organização de ideias fundamentadas por um determinado grupo social, caracterizando seus próprios interesses ou responsabilidades institucionais: ideologia cristã; ideologia fundamentalista; ideologia nazista etc.
[Filosofia] Marxismo. Aquilo que abarca o sistema de ideias, tanto autorizadas pelo poder econômico da burguesia, quanto àquelas que expressam as preocupações revolucionárias do proletariado; consciência social.
[Filosofia] Atribuição da origem das ideias às noções sensoriais do indivíduo a partir de sua compreensão do mundo externo.
Nesse verbete, há várias acepções interessantes, cabendo-me destacar as "certezas pessoais de um indivíduo [...] e suas percepções culturais, sociais, políticas". Ou seja, de minha parte, nada fica de fora. Por exemplo, olhar jogos de futebol na TV faz parte de minha ideologia, pois vinculam-se a minhas percepções culturais. E que dizer do igualitarismo? Agora falamos de minhas percepções políticas: na sociedade igualitária todos seremos felizes!
PARADIGMA
Definir o conceito de paradigma é tão árduo quanto deixar claro o que é ideologia. Inicio começando novamente (como é que se começa novamente, pois -se era começo- nada havia antes?), e voltando a usar o dicio.com.br:
Paradigma: substantivo masculino. Exemplo ou padrão a ser seguido; modelo: paradigma político.
[Por Extensão] Padrão já estabelecido; norma: paradigma de mercado.
[Gramática] Cujas formas vocabulares podem ser usadas como padrão ou modelo: o verbo amar segue o paradigma da primeira conjugação porque termina em "ar".
[Linguística] Conjunto dos termos que podem ser substituídos, entre si, na mesma posição da estrutura da qual fazem parte.
Essa dos paradigmas usados como padrões ou modelos naqueles tempos eram os verbos cantar, vender e partir. Também tinha o "pôr", que perdeu o lugar, o acento... Esses gramáticos... Para esquecê-los, abandono o mundo dos paradigmas e passo a falar em outro livro de introdução à filosofia que já citei aqui:
Essa dos paradigmas usados como padrões ou modelos naqueles tempos eram os verbos cantar, vender e partir. Também tinha o "pôr", que perdeu o lugar, o acento... Esses gramáticos... Para esquecê-los, abandono o mundo dos paradigmas e passo a falar em outro livro de introdução à filosofia que já citei aqui:
ALCHIN, Nicholas (2003) Theory of knowledge. London: Hodder Murray.
Então começo e ele me guia a fazer reflexões sobre "concepção de mundo", uma parenta afastada de ideologia e paradigma. No passado muito remoto, em torno de 50 anos atrás, li haver três e apenas três concepções de mundo. Acho que era um livro de Roger Garaudy de meu rebanho ora distante por causa do confinamento a que estou sendo submetido voluntariamente. A leitura do mr. Alchin marcou-me sobremaneira. Mas troquei o fascínio dessa ideia de conhecer um conceito que abarca todos os demais conceitos (estilo do Aleph de Jorge Luis Borges), como é o caso da concepção de mundo pelo de paradigma, lá no sentido de Alchin. Vejamos.
O capítulo 9 do livro tem o título quase em português: Paradigms and culture. Lembra do General George Patton? Não sei se é o mesmo daquele filme, meio louco. No filme, ele diz algo interessante, filho dileto do pragmatismo americano: "Não quero que meus soldados morram por nosso país, mas que façam os soldados inimigos morrer pelo país deles". E daí? Virei belicista? Claro que não. É que Nicholas Alchin, que tem sempre um monte de frases instigantes no início de cada capítulo, exibe neste capítulo 9 outra frase daquele Patton, agora com o sobrenome Jr. e que cito em minha tradução: "Se todo mundo está pensando da mesma forma, então alguém não está pensando." Um breve contra o puxa-saquismo... Mas quem não é puxa-saco? Eu mesmo, há anos elogiava Richard Stone, acrescentando-lhe Samuel Bowles com seu livro de microeconomia e, mais recentemente, passei a idolatrar o livro The idea of justice, de Amartya Sen. Seja como for...
Pois Nicholas Alchin começa definindo paradigma, com tradução da Wikipedia revisada por mim:
A noção de paradigma é, em certo sentido, bastante trivial - paradigmas significam que diferentes pessoas interpretam as coisas de maneiras diferentes. Mas, em outro sentido, a noção é profunda, porque muitas vezes esquecemos que estamos operando sob nossos próprios paradigmas e pensamos que temos algum canal especial para 'a verdade'. No sentido que usaremos o termo aqui, um paradigma é uma construção mental pela qual organizamos nosso raciocínio e classificamos nosso conhecimento. Pessoas que possuem paradigmas de redes diferentes podem ver exatamente a mesma cena, mas a interpretá-las de modo totalmente diverso.
Nas páginas 170 e 171, Nicholas Alchin conta uma história de Mark Twain e
segue:
Twain sugere que ele e seus amigos [que viajavam de barco, DdAB] veem coisas diferentes quando olham para o rio. Isso diz muito mais sobre os observadores do que sobre o que está sendo observado, e mostra como os paradigmas afetam nossa percepção. Mas o impacto dos paradigmas vai muito além da percepção - eles também impactam nosso raciocínio. Os paradigmas são importantes porque desempenham um papel central em ambas as formas de aquisição de conhecimento.
Claro que isto me deixa nervoso quando lembro que vivo fazendo ardentes defesas da economia política do igualitarismo, para não falar em filosofia política. Ao mesmo tempo, o que vou falar levou-me a formular meu próprio paradigma, ou melhor, a partir da agora falo em Alchin, mas me aproprio dos conceitos e chamo-os de concepções de mundo.
CONCEPÇÃO DE MUNDO
(Achei melhor seguir com ele, falando em paradigmas, mas meu leitor, minha leitora, hão de entender que eu quero dizer mesmo é concepção de mundo)
PARADIGMA CLÁSSICO
Humanos estão no centro do Universo.
Humanos foram colocados nesse centro por Deus.
A finalidade da vida humana é a adoração a Deus(es).
Diz ele: "Esta concepção dá suporte a uma visão de humanidade mais ou menos como:
Deus(es), humanos, animais, todo o resto.
PARADIGMA ILUMINISTA
O homem é racionalmente superior a todo o resto.
A razão é uma dádiva de Deus(es).
A finalidade da vida humana é investigar o Universo.
A ciência é a fonte da verdade.
E agora temos alinhados: Deus, mente, projeto, ordem, caos, nada.
PARADIGMA MODERNO
Os seres humanos vêm de um acidente que evoluiu por acaso.
A humanidade é uma entre bilhões de espécies biológicas.
Não existe Deus.
Não existe uma finalidade definida para a vida.
Não há caminho que leve à verdade.
POIS ENTÃO MEU PARADIGMA
Os seres humanos resultam de um processo evolucionário causado por mudanças incrementais e sucessivas.
Os seres humanos são gregários.
Os seres humanos são livres.
Os seres humanos são proprietários.
Os seres humanos não gostam de desigualdade.
Então, pois então, com este meu quinteto, estamos falando em concepções de mundo, em paradigma ou em ideologia.
DdAB
Patton, p.168: If everybody is thinking alike, then somebody isn't thinking.
Alchin 1, p. 169: The notion of a paradigm is in one sense quite trivial - paradigms mean that different people interpret things in different ways. But in another sense, the notion is profound because we often forget that we are operating under our own paradigms and we think that we have some special channel to 'the truth'. In the sense that we shall use the term here, a paradigm is a mental construction by which we organize our reasoning and classify our knowledge. People holding different paradigms may see exactly the same scene, but interpret is completely diffently.
Alchin 2, p.170-171: Twain suggests that he and his friends see different things when they look at the river. This says far more about the watchers than it says about the thing being watched, and it shows how paradigms affect our perception. But the impact of paradigms goes much further than perception - they impact on our reasoning too. Paradigms are important because they play a central role in both our ways of acquiring knowledge.
[Fiquei devendo aquele "in both our ways".]
P.S. Depois de tudo dito e feito, achei por bem colocar a grande epígrafe de todo o livro do prof. Nicholas Alchin:
Português (Google e eu)
Você é um ser humano. E assim você tem uma visão filosófica da existência - quer você perceba quer não. Sobre isso, você não tem escolha. Mas há uma escolha a ser feita sobre sua filosofia, e isso pode ser colocado nesses termos: sua filosofia é baseada em uma reflexão consciente, ponderada e bem informada? É sensível, mas não constrangida pela necessidade de consistência lógica? Ou você deixou seu subconsciente acumular uma feia pilha de preconceitos não examinados, intolerâncias injustificadas, medos ocultos, dúvidas e contradições implícitas, reunidas ao acaso, mas integradas por seu subconsciente a uma espécie de filosofia híbrida e fundidas em um único e sólido peso, como uma bola-e-corrente no lugar onde as asas da sua mente deveriam ter crescido?
Não é a resposta que esclarece, mas a pergunta.
DdAB retoma a pena: Que posso dizer? Digo que, se somos capazes de modelar "como se" fosse racional o comportamento de, digamos, dois passarinhos disputando um território, por que não poderíamos modelar circunstâncias similares envolvendo o processo decisório de um açougueiro, de um cervejeiro ou de um padeiro?
Inglês (Eugène Ionesco)
You are a human being. And so you have a philosophical view of existence - whether you realize it or not. About this you have no choice. But there is a choice to be made about your philosophy, and it can be put in these terms is your philosophy based on conscious, thoughtful and well-informed reflection? Is it sensitive to, but not chained by, the need for logical consistency? Or have you let your subconscious amass an ugly pile of unexamined prejudices, unjustified intolerances, hidden fears, doubts and implicit contrdictions, trown together by chance but integrated by your subconscious into a kind of mongrel philosophy and fused into a single, solid weight, like a ball and chain in the place where your mind's wings should have grown?
It is not the answer that enlightens but the question.
Eugène Ionesco
P.S.S. A capa do livro que vemos é muito mais bonita que a de meu próprio livro. E aqui temos a da dupla Almeida e Murcho:
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