22 abril, 2020

Por quê deveríamos ter começado com esgotos


Essa foto tire-a ontem ao meter umas biritas com a turma do bar da esquina. Todos usávamos máscaras e distávamos de cá e de lá 2m, ou seja, cada um de nós ocupava uma área circular de 1m de raio. E não nos era permitido sair do centro do círculo. O garçom, içado a um arame a 4m de altura, servia-nos a canha com solicitude e boa pontaria.

Não surpreende que, dado a estado de meu sangue, a foto requereu a explicação mais detalhada que é meu costume. Nem quero falar em esgotos, no sentido de que algum cliente da birosca mais enfezado possa ter ido ao banheiro devolver parte processada dos itens bebidos. Falo em esgotos, não falo em escatologia...

Pois então. A figura que nos encima veio da página 227 do livro

SOUZA, Pedro H. G. Ferreira de (2018) Uma história de desigualdade; a concentração de renda entre os ricos no Brasil; 1926-2013.

E que vemos que a foto pode estar ocultando?

Figura 18. Contribuição da indústria de transformação para o valor agregado e taxa de abertura da economia (%). Brasil, 1947-2013.
Eixo vertical: percentual, de 0 a 35%
Eixo horizontal: anos, sinalizando as décadas cheias de 1950 a 2010.

E por que 1947? Ano de nascimento do degas aqui. E 2013? Ano em que ficou clara a oposição exercitada de dentro da direção do PT ao governo Dilma.

E por quê a a participação da indústria de transformação no "valor agregado" corcoveia mais que gogó de trovador gago? Pois aí começa. Não quero nem comentar um fator que contribuiu e que nós, os revolucionários de esquerda, podemos referir como o dumping social que levou a China à posição que ela ocupa e talvez siga ocupando mesmo depois do corona vírus covid-19. Mas a burrada (que nem eu mesmo diagnostiquei na época, digamos, segunda metade de 1985, aproximado no gráfico) foi envolver-se esse comércio irrestrito com um país que, além do dumping social, praticava uma taxa de câmbio assassina dos projetos industriais nacionais. A queda abrupta dessa fração é caso de polícia. Parece que todo aparato estatal, ministério da indústria e comércio e seus sucessores com nomes assemelhados, SESI, FIESP, etc. não foi capaz de perceber (como tampouco eu fui, mas tenho a atenuante de não ter sido convidado para a festa pobre).

Pois então. A indústria de transformação teve uma performance medíocre, vergonhosa nesses anos, perdendo a corrida para os outros setores econômicos nacionais e para as exportações. Há muitos anos repito que o verdadeiro problema do estancamento econômico do Brasil é o baixo grau de capital humano incorporado pela força de trabalho. Sem educação, sem saúde, sem esgotos, sem justiça. Baixa produtividade do trabalho também implica que pouco há a ser transferido aos preços, o que é testemunhado pela inflação galopante que acompanhou o país naquele período. Alta produtividade leva, como sabemos, a preços baixos. Claro que a inflação tem muitas causas, mas -caso examinemos dados, como fiz há alguns anos- veremos que esta lei fundamental do desenvolvimento capitalista fez-se distante do que ocorreu no país.

Baixa produtividade sepultando tudo, inclusive o lado exportador do comércio exterior? Claro. A figura 18 de Souza ajuda a entendermos. O coeficiente de abertura (que presumo seja calculado com a soma das exportações com as importações e, se fossem apenas exportações, meu ponto seria ainda mais atordoante) parece oscilar desordenadamente, com a share da transformação até aquele tipo 1985. E daí passa a subir como um cohete, um pouco mais desordenado que a queda da produtividade da indústria de transforção auri-verde.

Que disse? Disse o que Bob Rowthorn e John Wells dizem em seu livro De-industrialization and foreign trade, publicado tipo naquele final dos anos 1980. Que dizem eles? Cito de memória, pois meu livro sumiu bem antes da pandemia. Para falarmos em desindustrialização, pelo menos no Reino Unido, devemos considerar três sinais:
.a produto crescente
.b emprego decrescente
.c participação no comércio exterior crescente.

Ou seja, a afirmação da vitalidade do fenômeno nacional deve ser referendada por sua pujança produtiva em nível global. Por tudo isto, trazendo ao Brasil, vejo que toda política industrial baseou-se num mal-entendido. Para imitar os países bem-sucedidos, o que deveria ter sido feito por estas bandas não era nada do que foi feito. Hoje é claro que a maior fonte setorial do crescimento econômico é o setor serviços. Educação, saúde, segurança, justiça, tudo deficiente. E onde andam os serviços industriais de utilidade pública, como os esgotos, a água, a coleta de lixo urbano? Resposta desanimada: andam guardados no armário para, se tudo correr mal novamente depois da retomada da crise do corona vírus, talvez se começar a gastar dinheiro público promovendo a criação de capital humano.

Já imaginou o que seria do Brasil se, nos anos 1950, o combate às favelas tivesse iniciado? Se o combate ao analfabetismo tivesse ocorrido? Se a renda básica universal tivesse sido implantada (ela que tem lei mandando, a 10.835)?

Eu já imaginei e me desespero até hoje!
DdAB
P.S. Tem gente que pensa que a indústria conduz o crescimento de todos os setores, ou seja, que a indústria explica o PIB. Eu penso o oposto: um PIB crescente é que gera tudo, inclusive o crescimento industrial. E, quando dizem que a demanda industrial é que explica o crescimento do PIB, eu digo que dizer isto significa ignorar que o valor adicionado tem três óticas de cálculo. Então cada um pila gasto na demanda industrial vai gerar... um pila no PIB (mais importações) da economia. E, de brinde, já vou dizendo: e um pila de renda. Como poderia gerar mais? Confunde-se produção com produto. E isto fez milhares de pessoas morrerem no mais estrondoso analfabetismo e na mais desabotinada esquistossomose.

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