24 abril, 2020

Preços Negativos: saldo positivo

Nenhuma descrição de foto disponível.

Querido diário:
Estou trazendo para cá, para fins de documentação acessível a meu estilo de organização (tudo no blog e propagandeado no Facebook, mas pouca coisa direto no Facebook). Este é o caso de duas postagens dizendo respeito ao mesmo tema: os preços negativos divulgados como existentes no mercado de petróleo. A tudo transcrevi, editando aqui e ali o que eu mesmo ou os comentadores dissemos.
A ilustração que nos antecede veio da segunda postagem no Facebook. A que segue veio da Folha de São Paulo. E assim começou a encrenca.

PRIMEIRA POSTAGEM DO FACEBOOK
 A imagem pode conter: céu e texto

Comentando a figura, escrevi:
Duilio de Avila Berni:
Estava à toa no Facebook e achei essa alegoria à 'boutade' de Marx falando que os preços poderiam cair 1.000%. Por mais que eles caiam, chegamos no máximo a 100%. E ficaram $$$ 0.
Moral da história: a Folha de São Paulo fugiu da escola quando ensinaram razões e proporções.

Comentário de Carlos Henrique Horn:
Estas quedas de mais de 100% são sempre misteriosas. Certa vez, depois de uma coletiva da PED, deparei-me com a manchete sobre uma redução de 102% no desemprego. Até hoje, não atino a que correspondem aqueles 2 pontos depois do 100%.

Comentário de Ricardo Holz:
E agora Luis Humberto Villwock?
[Villwock não respondeu, DdAB]

Comentário de Sérgio Kapron 
É que preço negativo é estranho na economia. Aliás, não paro de me surpreender com coisas estranhas na economia.

Comentário de Flavio Comim:
Oi, Duilio, pensei o mesmo quando vi a manchete, mas o fato é que isso sim é possível (acredito) pois o preço foi para -37 dólares. Impossível, em principio um preço baixar de zero, verdade? Não nos contratos futuros nos quais o pessoal compra para fazer hedge. Parece que o pessoal que ia receber esse petróleo não tinha como estocar ou o custo era muito alto em função da nova demanda e ai eles fizeram um hedge que forcou o preço futuro para baixo, indicando mesmo que eles estão pagando um prêmio para se livrar no petróleo comprado, ou algo assim. Bom, foi o que eu escutei...

Comentário de Roger Keller Celeste: 
Estão pagando para comprar o petróleo? Kkkkkkk

Comentário de Ricardo Holz a Roger Keller Celeste:
Por ai. "Leva e eu te pago".

Comentário de Duilio de Avila Berni:
Ambos: parece que a encrenca começou a assumir características da demanda por lixo.
Comentário de Duilio de Avila Berni:
Resposta a Flavio Comim e aos demais comentadores. Demorei mas articulei uma resposta. Vou colocar em outra postagem. Aqui deixo a imagem (obnubilada pela idade) do livro de readings on price theory que agora não li, muito o fiz em passado mais antigo que o aluno de economia contemporâneo.

Nenhuma descrição de foto disponível.

Comentário de Carlos Sidnei Coutinho Coutinho:
Péssima notícia para a energia alternativa.

Comentário de Duilio de Avila Berni:
Tempos atrás, Carlos, quando, no passado de menos de 20 anos, o petróleo chegou a um nadir que até viabilizou a extração brasileira nas águas profundas, comecei a acreditar que, por contraste, o capitalismo já entendera de deixar o petróleo para fins mais nobres que o combustível.
Claro que os bens de capital que geram energias alternativas hoje são uma realidade palpável. E em boa medida, também originárias na China.

Comentário de Fernando Ferrari Filho:
Duílio, por mais que seja surreal haver queda de preços acima de 100,0%, a questão central é que a demanda por petróleo colapsou. Como os vencimentos dos contratos futuros (quando da entrega do petróleo) estão ocorrendo neste contexto de colapso de demanda, logo, para não ficar com estoque de petróleo encalhado, os que têm petróleo (ofertantes) tendem a baixar o preço (mesmo que para níveis surreais, como os de de ontem) para que os custos de estocagem e oportunidade não tragam mais prejuízos.

Comentário de Duilio de Avila Berni:
Entendo, caro Ferrari. Muito obrigado. Viste minha outra postagem, com aquela curva de custo sinuosa?
Comentário de Fernando Ferrari Filho:
Li, mas confesso que a sua explicação é mais complexa que a minha, cuja simples ideia é estar comprado ou vendido no mercado futuro.

Comentário de Duilio de Avila Berni a Fernando Ferrari Filho:
Claro, meu! A simplicidade é a filha dileta da sabedoria!
Comentário de Fernando Ferrari Filho a Duilio De Avila Berni:
De maneira alguma. A complexidade, para mim, de sua explicação é porque eu sou macroeconomista e meus conhecimentos de microeconomia ficaram para trás há muito tempo.

SEGUNDA POSTAGEM DO FACEBOOK
Comentando aquela figura da função de custo variável total que abre esta postagem no blog, escrevi:

Resposta a Flavio Comim sobre preços negativos. A encrenca ficou tão grande que tive que trazê-la para nova página.
Então, Flavio. Gentil e instigante observação. O fato é que eu, volta e meia, dou um fora aqui no Facebook. Fui me meter com a FSP, logo eu cuja especialidade é achar erros no que chamo de Zerro Herra...
Seja como for, segui teu toque e dei uma olhada nessa viagem de preço negativo. Antes do petróleo, diz a sra. internet, já houve casos assemelhados no mercado de energia elétrica na Califórnia.
Meu palpite é que nesse caso do jargão do petróleo e dos mercados futuros (tema sobre o qual tenho rasa leitura), estamos falando de uma metáfora: O comprador assinou, digamos, um contrato de $ 50 para receber uma quantidade de petróleo (virtual) que ele agora acha excessiva para sua capacidade de armazenamento. Então ele se dispõe a pagar aqueles $ 37 por barril. Ele deveria receber mercadoria-papel no valor de $ 50, embora não mais a quisesse. Então ele subornou o vendedor para não executar o título original.
E que fui levado a pensar, depois de vencer o medo, em explicar o ocorrido pela formação do preço do petróleo pela regra do mark-up:
p = (1+m) x CVMd,
isto é, o preço cobrado é obtido ao se adicionar uma margem sobre o custo variável médio. No caso daquele excesso de oferta de que falam, o mark-up só pode ser zero. E aí é que começa minha modelagem. Passamos a:
p = CVMd.
Então separo o custo variável médio em duas componentes, digamos,
CVMd = CVMd1 + CVMd2,
sendo CVMd1 o custo variável médio descontado o custo de manutenção dos estoques e CVMd2 representando exatamente esse custo. Neste caso, se tivermos CVMd2 negativo e seu módulo for maior que CVMd1, tá aí o preço negativo.
A figura que desenhei (desenhei?) mostra uma função de custo variável total estranha por causa do trecho assinalado como AB. Mas já li a respeito: é um segmento em que os insumos são combinados da melhor maneira possível no artigo do livro de Harry Townsend que já vou citar. 
Acabo de ver um exemplo falando em homens e tratores para lidar com um jardinzinho comparado com esses recursos num fazendão. A ideia é que no fazendão a combinação é mais eficiente, capaz mesmo (imagino que demitindo muitos trabalhadores) de reduzir o custo de produção (no caso do petróleo e da energia elétrica) de manutenção dos estoques.
E onde li, que o confinamento me impede de conferir? Um Penguinzinho dos velhos tempos:
TOWNSEND, Harry ed. (1980) Price Theory: Penguin Modern Economic Readings.
E que tem lá dentro? Oh, memória! Deve ter um artigo de um cara cujo sobrenome -oh, memória!- é OI. Ele fala no custo marginal negativo e talvez seja daí que a memória (oh, ela!) resgatou essa explicação da combinação eficaz de insumos reduzindo o custo total.

Eu mesmo comentei:
A turma que até a pouco viu a postagem de 16 horas atrás e que talvez não volte a ver minhas 'explicas': Ana Severo, Andre Da Silva Pereira, André Luis Machado Teixeira, Ani Reni, Carlos Henrique Horn, Christiano Avanegra, Elisabete Otero, Geni De Sales Dornelles, Jorge Almir Wehbeh, Jorge Mattoso, Julia Ambros, Laura Berni Wagner, Nadia Bogoni, Ramon Cabron, Raquel Dias, Roger Keller Celeste, Rubens Salvador Bordini, Sueli Maldonado, Vanete Ricacheski e Volnei Piccolotto.

Comentário de Christiano Avanegra para Duilio De Avila Berni:
💯👏 Adorei! Estava lendo sobre o assunto, vou me apropriar da nobre explicação, citando obviamente o meu Mestre dos Mares e Doutor do Saber Supremo, já aproveito para propagandear seu blog e face... Quinta-feira vou ter que falar exatamente deste tema na cadeira de Gestão de Risco (MBA de Gestão Financeira da Uniritter)... Obrigado... estou sempre de 👀 aqui... hehehehe

Comentário de Duilio De Avila Berni a Christiano Avanegra: 
Dá uma olhada, querido Christiano, neste comentário que o macroeconomista e professor Ferrari apôs à postagem original, em que não falei errado, mas não pensara o suficiente: "Duílio, por mais que seja surreal haver queda de preços acima de 100,0%, a questão central é que a demanda por petróleo colapsou. Como os vencimentos dos contratos futuros (quando da entrega do petróleo) estão ocorrendo neste contexto de colapso de demanda, logo, para não ficar com estoque de petróleo encalhado, os que têm petróleo (ofertantes) tendem a baixar o preço (mesmo que para níveis surreais, como os de de ontem) para que os custos de estocagem e oportunidade não tragam mais prejuízos."

Comentário de Flavio Comim:
E como ficaria no caso dos custos das opções? Parece que essa é o x da questão (pergunto, não que entenda nada disso....hahaha)

Comentário de Duilio de Avila Berni a Flávio Comim:
Naquele livro da Penguin, não tem nem uma letra sobre futuros...

Comentário de Carlos Sidnei Coutinho Coutinho:
Momento para reler: Financial Revolution Amazon.com.br.

DdAB

22 abril, 2020

Por quê deveríamos ter começado com esgotos


Essa foto tire-a ontem ao meter umas biritas com a turma do bar da esquina. Todos usávamos máscaras e distávamos de cá e de lá 2m, ou seja, cada um de nós ocupava uma área circular de 1m de raio. E não nos era permitido sair do centro do círculo. O garçom, içado a um arame a 4m de altura, servia-nos a canha com solicitude e boa pontaria.

Não surpreende que, dado a estado de meu sangue, a foto requereu a explicação mais detalhada que é meu costume. Nem quero falar em esgotos, no sentido de que algum cliente da birosca mais enfezado possa ter ido ao banheiro devolver parte processada dos itens bebidos. Falo em esgotos, não falo em escatologia...

Pois então. A figura que nos encima veio da página 227 do livro

SOUZA, Pedro H. G. Ferreira de (2018) Uma história de desigualdade; a concentração de renda entre os ricos no Brasil; 1926-2013.

E que vemos que a foto pode estar ocultando?

Figura 18. Contribuição da indústria de transformação para o valor agregado e taxa de abertura da economia (%). Brasil, 1947-2013.
Eixo vertical: percentual, de 0 a 35%
Eixo horizontal: anos, sinalizando as décadas cheias de 1950 a 2010.

E por que 1947? Ano de nascimento do degas aqui. E 2013? Ano em que ficou clara a oposição exercitada de dentro da direção do PT ao governo Dilma.

E por quê a a participação da indústria de transformação no "valor agregado" corcoveia mais que gogó de trovador gago? Pois aí começa. Não quero nem comentar um fator que contribuiu e que nós, os revolucionários de esquerda, podemos referir como o dumping social que levou a China à posição que ela ocupa e talvez siga ocupando mesmo depois do corona vírus covid-19. Mas a burrada (que nem eu mesmo diagnostiquei na época, digamos, segunda metade de 1985, aproximado no gráfico) foi envolver-se esse comércio irrestrito com um país que, além do dumping social, praticava uma taxa de câmbio assassina dos projetos industriais nacionais. A queda abrupta dessa fração é caso de polícia. Parece que todo aparato estatal, ministério da indústria e comércio e seus sucessores com nomes assemelhados, SESI, FIESP, etc. não foi capaz de perceber (como tampouco eu fui, mas tenho a atenuante de não ter sido convidado para a festa pobre).

Pois então. A indústria de transformação teve uma performance medíocre, vergonhosa nesses anos, perdendo a corrida para os outros setores econômicos nacionais e para as exportações. Há muitos anos repito que o verdadeiro problema do estancamento econômico do Brasil é o baixo grau de capital humano incorporado pela força de trabalho. Sem educação, sem saúde, sem esgotos, sem justiça. Baixa produtividade do trabalho também implica que pouco há a ser transferido aos preços, o que é testemunhado pela inflação galopante que acompanhou o país naquele período. Alta produtividade leva, como sabemos, a preços baixos. Claro que a inflação tem muitas causas, mas -caso examinemos dados, como fiz há alguns anos- veremos que esta lei fundamental do desenvolvimento capitalista fez-se distante do que ocorreu no país.

Baixa produtividade sepultando tudo, inclusive o lado exportador do comércio exterior? Claro. A figura 18 de Souza ajuda a entendermos. O coeficiente de abertura (que presumo seja calculado com a soma das exportações com as importações e, se fossem apenas exportações, meu ponto seria ainda mais atordoante) parece oscilar desordenadamente, com a share da transformação até aquele tipo 1985. E daí passa a subir como um cohete, um pouco mais desordenado que a queda da produtividade da indústria de transforção auri-verde.

Que disse? Disse o que Bob Rowthorn e John Wells dizem em seu livro De-industrialization and foreign trade, publicado tipo naquele final dos anos 1980. Que dizem eles? Cito de memória, pois meu livro sumiu bem antes da pandemia. Para falarmos em desindustrialização, pelo menos no Reino Unido, devemos considerar três sinais:
.a produto crescente
.b emprego decrescente
.c participação no comércio exterior crescente.

Ou seja, a afirmação da vitalidade do fenômeno nacional deve ser referendada por sua pujança produtiva em nível global. Por tudo isto, trazendo ao Brasil, vejo que toda política industrial baseou-se num mal-entendido. Para imitar os países bem-sucedidos, o que deveria ter sido feito por estas bandas não era nada do que foi feito. Hoje é claro que a maior fonte setorial do crescimento econômico é o setor serviços. Educação, saúde, segurança, justiça, tudo deficiente. E onde andam os serviços industriais de utilidade pública, como os esgotos, a água, a coleta de lixo urbano? Resposta desanimada: andam guardados no armário para, se tudo correr mal novamente depois da retomada da crise do corona vírus, talvez se começar a gastar dinheiro público promovendo a criação de capital humano.

Já imaginou o que seria do Brasil se, nos anos 1950, o combate às favelas tivesse iniciado? Se o combate ao analfabetismo tivesse ocorrido? Se a renda básica universal tivesse sido implantada (ela que tem lei mandando, a 10.835)?

Eu já imaginei e me desespero até hoje!
DdAB
P.S. Tem gente que pensa que a indústria conduz o crescimento de todos os setores, ou seja, que a indústria explica o PIB. Eu penso o oposto: um PIB crescente é que gera tudo, inclusive o crescimento industrial. E, quando dizem que a demanda industrial é que explica o crescimento do PIB, eu digo que dizer isto significa ignorar que o valor adicionado tem três óticas de cálculo. Então cada um pila gasto na demanda industrial vai gerar... um pila no PIB (mais importações) da economia. E, de brinde, já vou dizendo: e um pila de renda. Como poderia gerar mais? Confunde-se produção com produto. E isto fez milhares de pessoas morrerem no mais estrondoso analfabetismo e na mais desabotinada esquistossomose.

15 abril, 2020

Alerta a Bolsonaro e seus Miquinhos Amestrados

(foto: Givaldo Barbosa/CB/D.A Press)
(foto: Givaldo Barbosa/CB/D.A Press)

Estava eu placidamente dando uma olhada no Correio Braziliense eletrônico quando me deparo com uma reportagem iniciando uma série sobre o aniversário de Brasília no próximo 21 de abril, comemorando os 60 anos da "Brasília Sexagenária". Claro que evoquei um livro que li há muitos anos. Era de Edgard Carone e, a certa altura, contestando a tese do brasileiro cordial, fala que sempre o povo brasileiro foi violento, nada cordial. E evoquei este traço de uma coleção de respeito quando vi as rebeliões recentes na América Latina.

E sempre pensei que este é um futuro possível para o Brasil contemporâneo, Bolsonaro e seus miquinhos amestrados, Temer e suas mesóclises e toda essa elite que habita o poder, não se dando conta de que a revolta popular está sempre à espreita. Reproduzo o que posso da reportagem do Correio Braziliense, inclusive a foto que nos encima:

Esta matéria foi publicada originalmente na edição de 28 de novembro de 1986 do Correio. Sua republicação faz parte do projeto Brasília Sexagenária, que até 21 de abril de 2020 trará, diariamente, reportagens e fotos marcantes da história da capital. Acompanhe a série no site especial e no nosso Instagram

1. A manifestação começa às 14h30 e, sob o comando da CUT, CGT, PT, PDT e PCB, transcorre normalmente até as 16 horas, quando os líderes pedem aos manifestantes que deixem o local. As 17h45, a polícia faz uma varredura na Esplanada, sem habilidade, e começam os primeiros conflitos. Os manifestantes são empurrados para a rodoviária.

2. Na Rodoviária não há policiais e, durante uma hora e meia, sem serem molestados, vândalos queimam 27 viaturas policiais, cinco ônibus e destroem cabines de despachantes, bancas de jornais, uma charutaria, uma lanchonete, além de saquear, incendiando logo após, o posto da Cobal. Só às 19h45 é que a Polícia Militar aparece.

3. Subindo na direção do Conic e do prédio da ECT, perto do Hotel St. Paul, grupos quebram lojas e incendeiam o Banco Safra. Na ECT, destroem os equipamentos de telex e de telegrafia. Onze prédios públicos são danificados. Às 21h30, a cidade começa a voltar ao normal depois de horas de violência e muita tensão.


Esplanada virou um campo de batalha

Confusão começou quando PM tentou dispersar manifestantes a golpes de cassetete 

A histeria coletiva que tomou conta da Esplanada dos Ministérios teve início efetivamente às 17h40, quando a Polícia Militar e tropas de Choque da PM tentaram dispersar os manifestantes a golpes de cassetete e bombas de gás lacrimogêneo. Apesar dos apelos dos dirigentes sindicais para que não corressem, os manifestantes sairam em disparada pela Esplanada, nas cercanias do Ministério da Fazenda - para logo em seguida se voltarem contra a polícia armada de pedras.

Na confusão que se seguiu, pessoas foram espancadas e policiais apedrejados. Em frente à tropa de choque, o senador eleito Maurício Corrêa e o presidente da Fenaj, Armando Rolemberg, tentavam acalmar o capitão responsável pela tropa de choque para que contivesse seus homens. Não adiantou, Maurício Corrêa se afastou dos policiais, cercado de jornalistas, quando os manifestantes começaram a reagir novamente, jogando paus e pedras na Polícia, que jogou bombas de gás lacrimogêneo, que caíram exatamente onde estava o senador.


(foto: Marcos Henrique/CB/D.A Press)

As bombas, porém, ao invés de dispersar, causaram ainda mais revolta na população, que resolveu resistir aos gritos. Nessa altura, seis minutos depois, toda a área ao redor do Ministério da Fazenda já estava cercada por policiais. No confronto, foram disparados alguns tiros. A medida que os manifestantes eram afastados, outros policiais iam chegando, especialmente para proteger os ministérios seguintes, do Exército, Marinha e Aeronáutica. O ministério do Exército chegou a mobilizar dois tanques de guerra, a princípio, para proteger seu prédio.

Já às 17h45, a Kombi de som do comício conseguiu sair do pátio do ministério onde ainda estava, e foi saudada pelos manifestantes. Um policial civil exclamou, ao vê-la: “Eram esses aí que a gente tinha que pegar”, e soltou um palavrão. Os palavrões, aliás, deram a tônica da manifestação.

Quando as coisas pareciam que iam se acalmar um pouco os manifestantes, sem nenhuma liderança aparente, se voltaram novamente contra a polícia - por vezes dando a impressão de que haveria uma luta corporal. Mas as bombas de gás os obrigavam a se afastar.

Às 18h, a PM já havia conseguido afastar os manifestantes para além do viaduto que marca o início dos prédios dos ministérios. Os carros que passavam abaixo, entretanto, faziam um barulho infernal de buzinas.

Além dos tanques e ônibus, camburões e caminhões, um helicóptero também foi mobilizado pelo Exército para conter a manifestação. Sobrevoando a Esplanada, o helicóptero dava a impressão de que despejaria pára-quedistas no meio dos manifestantes, o que não aconteceu. No cerrado próximo à Esplanada, uma moça foi perseguida por um PM e um membro da tropa de choque, após ter apedrejado alguns policiais. Antônia Aquino foi finalmente alcançada e presa.

Às 18h10, a maioria dos manifestantes já estava abrigada na Rodoviária, juntando-se às milhares de pessoas que àquela hora diariamente tomam seus ônibus.

Ainda não eram 19h e o céu próximo à rodoviária já estava escuro. Era a fumaça dos diversos veículos que já haviam sido queimados pela multidão - a essa altura, muito multiplicada pelos frequentadores habituais do local àquela hora. Nas plataformas superiores, milhares de pessoas se acotovelaram para aplaudir as cenas de confronto entre a polícia e os manifestantes. 

O primeiro veículo incendiado foi um microônibus do Exército, às 18h45. A passagem inferior sul da Rodoviária estava cheia de manifestantes, quando o motorista do ônibus tentou passar mas teve que parar por causa do trânsito que estava lento. Os manifestantes se acercaram e começaram a tentar virar o carro. Estimulados pela multidão que assistia a tudo, o veículo foi virado e incendiado, após a fuga do motorista.

Logo em seguida, uma Brasília azul do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA) que passava pelo local também foi cercada pelos manifestantes. Desesperados, o motorista tentou escapar pelo gramado do Touring, mas não conseguiu. A Brasília foi apedrejada e em seguida, incendiada. O que aconteceu depois foi rápido. Animados, os manifestantes também depredaram um ônibus do Senado - igualmente incendiado.

O povo que havia se concentrado na Rodoviária subia e descia as plataformas aos gritos de “o povo unido jamais será vencido”. Nesse ínterim, alguns policiais, destacados para reprimir a manifestação na plataforma norte, estacionaram seus carros na parte inferior da Rodoviária. Todos os sete veículos foram incendiados, por manifestantes que desceram. Os de cima continuavam xingando e jogando pedras na polícia.

O tumulto então foi além: começaram a ser depredados incendiados estandes da TCB, além de duas bancas de revistas. O mercado fixo da Cobal foi saqueado e incendiado. Da plataforma de baixo, eram jogados alimentos para os que estavam em cima, inclusive latas de óleo de soja, que sujaram o asfalto. Muitas pessoas saíram da Rodoviária carregadas de pacotes de arroz, feijão, óleo e panetones, alardeando estar com a “cesta básica”.

O trânsito havia sido bloqueado no início da via que passa por baixo da Rodoviária. Mesmo assim, não paravam de chegar carros que estacionavam nas calçadas da plataforma superior, e pessoas a pé.

Embaixo, um grupo de manifestantes partiu mais uma vez em direção aos policiais, que estavam parados na área de baixo. Atingido por pedras, um policial da tropa de choque se descontrolou e começou a atirar com uma pistola, mas foi detido antes que atingisse alguém por um colega da Polícia Civil.

Às 19h45, a polícia conseguiu finalmente invadir a Rodoviária, por cima e por baixo. Com muita bomba, tropas de Polícia Militar e do batalhão do choque expulsaram os manifestantes, que correndo subiram em direção à torre ou escaparam pelos lados. Na plataforma superior, a polícia obrigou todos os carros a saírem, e os PMs ficaram de prontidão enquanto a confusão não acabou. 

Que posso dizer? A confusão ainda nem começou! Tentemos pregar que a melhor maneira de evitá-la é apelar para a racionalidade, o maior antídoto para a violência já concebido pela humanidade.

DdAB

09 abril, 2020

Ideologia e Paradigma: a definição do conceito + Comim e Piketty

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Estava eu calmamente preparando esta postagem quando tudo se acelerou. Vi uma postagem no mural de Flávio Comim no Facebook informando (e eu não sabia) que acaba de sair o novo livro de Thomas Piketty intitulado "Capital and Ideology". Não li o livro, mas pude ler uma resenha bastante cáustica que foi recomendada pelo prof. Ronald Hillbrecht lá no mural do prof. Comim mesmo. Então aquilo que seria apenas uma viagem sobre conceitos passou a centrar-se na dupla ideologia-paradigma.

Durante muito tempo, eu achava que "definir um conceito" era tão abstruso quanto, digamos, o presidente Bolsonaro e seus miquinhos amestrados. Até que cheguei a um desses livros de introdução à filosofia que venho consumindo desde que me dei conta de que devo falar algo nesta linha, por ser um Doctor of Philosophy. Então já falei em

ALMEIDA, Aires e MURCHO, Desidério (2014) Janelas para a filosofia. Lisboa: Gradiva. (Coleção Filosofia Aberta, 26).

e postei sobre ele aqui. Na página 247, Almeida e Murcho dizem-nos que devo reproduzir aqui para conveniência do leitor diligente (mas sem tempo para dirigir-se à postagem citada):

 Um conceito não é uma palavra; é o que as palavras exprimem. Há muitos casos em que uma palavra exprime diferentes conceitos: a palavra 'papel', por exemplo, tanto exprime o conceito de pasta fibrosa de origem vegetal com que fazemos livros, jornais, etc., como o conceito de um dos povos da Guiné-Bissau. Quando queremos definir um conceito [DdAB com o negrito], não é porque estamos interessados em palavras, mas antes porque estamos interessados no que as palavras exprimem.

Pois então: nem sempre conseguimos ser felizes a ponto de, com esta distinção em mente, atijolar adequadamente os conceitos. Exemplifico com os dois que citei anteriormente: ideologia e paradigma, o que me leva a descambar para concepção de mundo. Um mundo nada mundano, como percebemos. Então começo:

IDEOLOGIA
Ideologia é o título de uma canção de Cazuza: "ideologia: eu quero uma para viver". E, ao mesmo tempo, é um festejado termo da sociologia, chegando também a outras ciências sociais. Diz o dicio.com.br:

Ideologia: reunião das certezas pessoais de um indivíduo, de um grupo de pessoas e de suas percepções culturais, sociais, políticas etc: sua ideologia é fazer bem ao próximo.
[Política] Reunião das ideias características de um grupo, de um período, e que marcam um momento histórico: ideologia capitalista.
Ciência da origem das ideias; estudo das ideias de modo abstrato; doutrina das ideias.
[Sociologia] Organização de ideias fundamentadas por um determinado grupo social, caracterizando seus próprios interesses ou responsabilidades institucionais: ideologia cristã; ideologia fundamentalista; ideologia nazista etc.
[Filosofia] Marxismo. Aquilo que abarca o sistema de ideias, tanto autorizadas pelo poder econômico da burguesia, quanto àquelas que expressam as preocupações revolucionárias do proletariado; consciência social.
[Filosofia] Atribuição da origem das ideias às noções sensoriais do indivíduo a partir de sua compreensão do mundo externo.

Nesse verbete, há várias acepções interessantes, cabendo-me destacar as "certezas pessoais de um indivíduo [...] e suas percepções culturais, sociais, políticas". Ou seja, de minha parte, nada fica de fora. Por exemplo, olhar jogos de futebol na TV faz parte de minha ideologia, pois vinculam-se a minhas percepções culturais. E que dizer do igualitarismo? Agora falamos de minhas percepções políticas: na sociedade igualitária todos seremos felizes!

PARADIGMA
Definir o conceito de paradigma é tão árduo quanto deixar claro o que é ideologia. Inicio começando novamente (como é que se começa novamente, pois -se era começo- nada havia antes?), e voltando a usar o dicio.com.br:

Paradigma: substantivo masculino. Exemplo ou padrão a ser seguido; modelo: paradigma político.
[Por Extensão] Padrão já estabelecido; norma: paradigma de mercado.
[Gramática] Cujas formas vocabulares podem ser usadas como padrão ou modelo: o verbo amar segue o paradigma da primeira conjugação porque termina em "ar".
[Linguística] Conjunto dos termos que podem ser substituídos, entre si, na mesma posição da estrutura da qual fazem parte.

Essa dos paradigmas usados como padrões ou modelos naqueles tempos eram os verbos cantar, vender e partir. Também tinha o "pôr", que perdeu o lugar, o acento... Esses gramáticos... Para esquecê-los, abandono o mundo dos paradigmas e passo a falar em outro livro de introdução à filosofia que já citei aqui:

ALCHIN, Nicholas (2003) Theory of knowledge. London: Hodder Murray.

Então começo e ele me guia a fazer reflexões sobre "concepção de mundo", uma parenta afastada de ideologia e paradigma. No passado muito remoto, em torno de 50 anos atrás, li haver três e apenas três concepções de mundo. Acho que era um livro de Roger Garaudy de meu rebanho ora distante por causa do confinamento a que estou sendo submetido voluntariamente. A leitura do mr. Alchin marcou-me sobremaneira. Mas troquei o fascínio dessa ideia de conhecer um conceito que abarca todos os demais conceitos (estilo do Aleph de Jorge Luis Borges), como é o caso da concepção de mundo pelo de paradigma, lá no sentido de Alchin. Vejamos.

O capítulo 9 do livro tem o título quase em português: Paradigms and culture. Lembra do General George Patton? Não sei se é o mesmo daquele filme, meio louco. No filme, ele diz algo interessante, filho dileto do pragmatismo americano: "Não quero que meus soldados morram por nosso país, mas que façam os soldados inimigos morrer pelo país deles". E daí? Virei belicista? Claro que não. É que Nicholas Alchin, que tem sempre um monte de frases instigantes no início de cada capítulo, exibe neste capítulo 9 outra frase daquele Patton, agora com o sobrenome Jr. e que cito em minha tradução: "Se todo mundo está pensando da mesma forma, então alguém não está pensando." Um breve contra o puxa-saquismo... Mas quem não é puxa-saco? Eu mesmo, há anos elogiava Richard Stone, acrescentando-lhe Samuel Bowles com seu livro de microeconomia e, mais recentemente, passei a idolatrar o livro The idea of justice, de Amartya Sen. Seja como for...

Pois Nicholas Alchin começa definindo paradigma, com tradução da Wikipedia revisada por mim:

A noção de paradigma é, em certo sentido, bastante trivial - paradigmas significam que diferentes pessoas interpretam as coisas de maneiras diferentes. Mas, em outro sentido, a noção é profunda, porque muitas vezes esquecemos que estamos operando sob nossos próprios paradigmas e pensamos que temos algum canal especial para 'a verdade'. No sentido que usaremos o termo aqui, um paradigma é uma construção mental pela qual organizamos nosso raciocínio e classificamos nosso conhecimento. Pessoas que possuem paradigmas de redes diferentes podem ver exatamente a mesma cena, mas a interpretá-las de modo totalmente diverso.
Nas páginas 170 e 171, Nicholas Alchin conta uma história de Mark Twain e
segue:

Twain sugere que ele e seus amigos [que viajavam de barco, DdAB] veem coisas diferentes quando olham para o rio. Isso diz muito mais sobre os observadores do que sobre o que está sendo observado, e mostra como os paradigmas afetam nossa percepção. Mas o impacto dos paradigmas vai muito além da percepção - eles também impactam nosso raciocínio. Os paradigmas são importantes porque desempenham um papel central em ambas as formas de aquisição de conhecimento.
Claro que isto me deixa nervoso quando lembro que vivo fazendo ardentes defesas da economia política do igualitarismo, para não falar em filosofia política. Ao mesmo tempo, o que vou falar levou-me a formular meu próprio paradigma, ou melhor, a partir da agora falo em Alchin, mas me aproprio dos conceitos e chamo-os de concepções de mundo.

CONCEPÇÃO DE MUNDO
(Achei melhor seguir com ele, falando em paradigmas, mas meu leitor, minha leitora, hão de entender que eu quero dizer mesmo é concepção de mundo)

PARADIGMA CLÁSSICO
Humanos estão no centro do Universo.
Humanos foram colocados nesse centro por Deus.
A finalidade da vida humana é a adoração a Deus(es).

Diz ele: "Esta concepção dá suporte a uma visão de humanidade mais ou menos como:
Deus(es), humanos, animais, todo o resto.

PARADIGMA ILUMINISTA
O homem é racionalmente superior a todo o resto.
A razão é uma dádiva de Deus(es).
A finalidade da vida humana é investigar o Universo.
A ciência é a fonte da verdade.

E agora temos alinhados: Deus, mente, projeto, ordem, caos, nada.

PARADIGMA MODERNO
Os seres humanos vêm de um acidente que evoluiu por acaso.
A humanidade é uma entre bilhões de espécies biológicas.
Não existe Deus.
Não existe uma finalidade definida para a vida.
Não há caminho que leve à verdade.

POIS ENTÃO MEU PARADIGMA
Os seres humanos resultam de um processo evolucionário causado por mudanças incrementais e sucessivas.
Os seres humanos são gregários.
Os seres humanos são livres.
Os seres humanos são proprietários.
Os seres humanos não gostam de desigualdade.

Então, pois então, com este meu quinteto, estamos falando em concepções de mundo, em paradigma ou em ideologia.

DdAB
Patton, p.168: If everybody is thinking alike, then somebody isn't thinking.

Alchin 1, p. 169: The notion of a paradigm is in one sense quite trivial - paradigms mean that different people interpret things in different ways. But in another sense, the notion is profound because we often forget that we are operating under our own paradigms and we think that we have some special channel to 'the truth'. In the sense that we shall use the term here, a paradigm is a mental construction by which we organize our reasoning and classify our knowledge. People holding different paradigms may see exactly the same scene, but interpret is completely diffently.

Alchin 2, p.170-171: Twain suggests that he and his friends see different things when they look at the river. This says far more about the watchers than it says about the thing being watched, and it shows how paradigms affect our perception. But the impact of paradigms goes much further than perception - they impact on our reasoning too. Paradigms are important because they play a central role in both our ways of acquiring knowledge.
[Fiquei devendo aquele "in both our ways".]

P.S. Depois de tudo dito e feito, achei por bem colocar a grande epígrafe de todo o livro do prof. Nicholas Alchin:
Português (Google e eu)
Você é um ser humano. E assim você tem uma visão filosófica da existência - quer você perceba quer não. Sobre isso, você não tem escolha. Mas há uma escolha a ser feita sobre sua filosofia, e isso pode ser colocado nesses termos: sua filosofia é baseada em uma reflexão consciente, ponderada e bem informada? É sensível, mas não constrangida pela necessidade de consistência lógica? Ou você deixou seu subconsciente acumular uma feia pilha de preconceitos não examinados, intolerâncias injustificadas, medos ocultos, dúvidas e contradições implícitas, reunidas ao acaso, mas integradas por seu subconsciente a uma espécie de filosofia híbrida e fundidas em um único e sólido peso, como uma bola-e-corrente no lugar onde as asas da sua mente deveriam ter crescido?
   Não é a resposta que esclarece, mas a pergunta.

DdAB retoma a pena: Que posso dizer? Digo que, se somos capazes de modelar "como se" fosse racional o comportamento de, digamos, dois passarinhos disputando um território, por que não poderíamos modelar circunstâncias similares envolvendo o processo decisório de um açougueiro, de um cervejeiro ou de um padeiro?

Inglês (Eugène Ionesco)
You are a human being. And so you have a philosophical view of existence - whether you realize it or not. About this you have no choice. But there is a choice to be made about your philosophy, and it can be put in these terms is your philosophy based on conscious, thoughtful and well-informed reflection? Is it sensitive to, but not chained by, the need for logical consistency? Or have you let your subconscious amass an ugly pile of unexamined prejudices, unjustified intolerances, hidden fears, doubts and implicit contrdictions, trown together by chance but integrated by your subconscious into a kind of mongrel philosophy and fused into a single, solid weight, like a ball and chain in the place where your mind's wings should have grown?
   It is not the answer that enlightens but the question.
Eugène Ionesco

P.S.S. A capa do livro que vemos é muito mais bonita que a de meu próprio livro. E aqui temos a da dupla Almeida e Murcho:
questões básicas: 2014

07 abril, 2020

Um Trilhão de Árvores


O prof. Adalmir Marquetti e eu escrevemos um artigo diretamente pensando no blog da Faculdade. Pois dito e feito: o diretor daquele ambiente que formou a ambos os agora autores do site aquiesceu em publicar, como podemos ver clicando no link dado logo após o proêmio.

E agora o vemos duplicado aqui:

Proêmio do prof. Carlos Henrique Horn, o diretor
Do artigo "Um trilhão de árvores", do professor aposentado Duilio de Avila Berni, da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, em parceria com Adalmir Marquetti, docente na PUCRS:
"No presente estágio da vida planetária, a OMS está funcionando como um verdadeiro avatar do governo mundial, ainda que essa tendência à universalização já se perceba em experiências correntes, com a Interpol, o BIS (e a lavagem de dinheiro), a Comissão de Energia Nuclear, a ONU, a federação internacional das confederações nacionais de futebol, e outras iniciativas no campo esportivo, sem falar nas atividades ilegais."
Leia o texto completo: www.ufrgs.br/fce/um-trilhao-de-arvores.
Foto: Martin Sanchez/Unsplash






Um trilhão de árvores


Por Duilio de Avila Berni e Adalmir Marquetti, respectivamente, professor aposentado da FCE/UFRGS e professor da PUCRS
Em janeiro do ano corrente, os potentados mundiais presentes na reunião de Davos cogitaram de encaminhar a solução para os problemas ambientais planetários com a plantação de um trilhão de árvores. Projetos semelhantes ainda mais ousados falam em 1,2 trilhões. Não sabemos se esses dirigentes corroídos pelo vírus da crença no estado mínimo teriam estofo para falar num projeto desta envergadura, dadas suas enormes implicações sobre o emprego, ou seja, sobre a desigualdade econômica. Ainda assim, tal empreendimento mostra-se cada vez mais urgente e, nos dias que correm, corroídos que somos pelo vírus COVID-19, pode ser que a virada estrutural que leve o planeta para uma relação mais amigável com seu meio-ambiente, inclusive a fauna humana, esteja mesmo prestes a iniciar.
Há inúmeras questões econômicas que a agora fora de moda análise de custo-benefício deveria enfrentar. Mas, mesmo sem ela, podemos compulsar meia dúzia de cifras, a fim de dar uma ideia da enorme abrangência e determinadas consequências de tal empreitada. Obviamente a muda de cada árvore é uma teia de relações biológicas e, até mais importante, de trabalho social cristalizado nessa forma. Enorme quantidade de trabalhadores e de outros insumos serão requeridos para o sucesso, orientando o viés igualitarista do projeto, uma vez que o emprego é a variável chave da sociedade igualitária. Além do trabalho, o recurso mais evidente é o próprio solo onde as mudas serão plantadas. A fração do planeta a ser ocupada montará a qual cifra?
Para balizar a discussão, vamos considerar esses 1,2 trilhões referidos pelo Instituto Brasileiro de Florestas. Para responder a questão, precisamos saber qual a área que cada árvore vai ocupar. Ficando em nosso tradicional eucalipto, uma árvore adulta irá ocupar uma área de cerca de 20 m2. Se essa flora trilionária requeresse a mesma área, seriam utilizados 24 milhões de km2. Mesmo os maiores países do mundo, Rússia, China, Estados Unidos, Brasil, não dispõem individualmente de território para tal demanda. Em particular, seria necessária a área de quase três Brasis para dar conta dessa carga preciosa.
Há, entretanto, boas notícias no front, como é o da ocupação dos desertos, destacando o Saara, que tem 9 milhões de km2, caso seu lençol freático seja acessível. Maior que o Brasil, apenas ele já encaminha mais de um terço da questão. Então há saídas, haveria saídas mesmo sem usar as terras hoje ocupadas, descontadas as terras devolutas e outras frações que não são, mas deveriam ser ocupadas, como é o caso das matas ciliares. Além delas e do deserto do Saara, há outros mais distribuídos por outros locais, como o de Alegrete, da Ásia, da Austrália e dos Estados Unidos. No caso do Alegrete, fala-se em uma área deserta de cerca de 200ha. Esses 2km² dão uma contribuição importante, importantíssima, no nível dos afetos telúricos. Além dela, o Brasil tem boa contribuição a dar, inclusive refazendo a Floresta Amazônica, do mesmo jeito que a Alemanha refez a Floresta Negra depois da II Guerra Mundial e implementando projetos de recuperação-implantação da mata protetora de suas águas internas. De fato, talvez gastando boa parte desses 24 milhões de km2, destacamos a arborização da mata ciliar de todo o planeta, ao lado da consorciação com cultivos vegetais e animais.
Diz a professora Cristina Bonorino em fascinante defesa da Amazônia que:
As árvores da Floresta Amazônica funcionam como gêiseres. Elas retiram a água do solo e a transportam por seus finos capilares para as folhas, que a devolvem para o ar. Esse processo de vaporização cria um rio flutuante, que é maior que o próprio Rio Amazonas. Ele pode ser visto do espaço – são 20 bilhões de toneladas d’água. Seriam necessárias 50 mil Itaipus para gerar a energia capaz de realizar esse feito.
Multiplicando esses 20 bilhões de toneladas d’água pelo fator adequado, podemos imaginar o manancial que se distribuirá praticamente por todo o planeta. Com efeito, parece haver consequências impressionantes do plantio das 1,2 trilhões de espécies que deverão ocupar mais de quase cinco vezes a área da Amazônia, ou 200 bilhões de toneladas d’água. A mudança planetária poderá ocorrer num sentido muito mais benévolo que o hoje associado à defesa do estado mínimo. Esta visão de mundo, com efeito, vem sendo sepultada depois da rebelião epitomada pelo povo chileno e, especialmente, nos dias que correm, da ameaça do novo corona vírus (o Covid-19).
Dada a dimensão e implicações ciclópicas do projeto, a questão central diz respeito à origem dos recursos monetários para financiar toda a atividade. Felizmente, um projeto desse alcance pode ser implementado com tecnologias intensivas em mão-de-obra, aliás, uma consequência benévola para a transformação de um enorme estoque de trabalhadores precários em trabalhadores formais. Usando um coeficiente estimado de R$ 9.000 para o plantio e os cuidados pela mão-de-obra durante o primeiro ano, vão-se montes de recursos, em torno de R$ 21,6 trilhões de reais, uns 40% a mais que o PIB brasileiro medido em paridade do poder de compra.
Sorte que não é responsabilidade brasileira o financiamento exclusivo de todo o trilhão de árvores. Dada a magnitude do volume de recursos necessários a esse reflorestamento e a sua inevitável propriedade coletiva, chegou a hora da criação e implementação da chamada Taxa Tobin, digamos cinco por cento do PIB mundial, com as contribuições de estados nacionais e cobrança sobre as movimentações financeiras internacionais.
Parece mesmo que o mundo estava esperando amadurecer para poder implementar políticas tributárias associadas a outras que sejam geradoras de trabalho decente, voltadas a absorver os enormes excedentes populacionais detentores de escasso estoque de capital humano. Nesse projeto, obviamente, tem-se a oportunidade de adensar esse estoque por todos os rincões do planeta.
Dada a crescente possibilidade de novas pandemias, parece óbvio que pessoas levando vidas decentes terão mais saúde e educação, mais serviços de saúde pública e expansão das redes hospitalares. O planeta enfrenta, mais que nunca, a necessidade de ações voltadas à promoção da saúde cuidando da água potável, do saneamento, das favelas e outras moradias precárias, além de acabar com os maus tratos hoje dispensados a doentes e presidiários.
Na lapela do blog Planeta 23, assinado pelo primeiro autor deste artigo, lê-se que uma saída para o reaproveitamento ocupacional das massas de desvalidos distribuídas por todo o planeta e incrementar-lhes o conteúdo de capital humano, emerge de um programa de treinamento que contemple:
_1 três horas de ginástica por dia (para manter a coluna ereta),
_2 três horas de aula por dia (para manter a mente quieta) e
_3 três horas de trabalho comunitário por dia (para manter o coração tranquilo).
Uma pegada um tanto budista, admitimos, que tem a vantagem de oferecer um tipo de ocupação fadada a varrer o excedente de oferta de mão-de-obra em todos os segmentos do mercado de trabalho.
Esses empregos de expedientes de nove horas diárias claramente devem associar-se à instituição da renda básica universal, que tem recebido crescente adesão por alguns países. O Brasil, em 2004, criou a lei 10.835 instituindo-a, mas terríveis circunstâncias impediram-lhe a implementação. Uma vez que, como a verdadeira renda básica não se chama nem mesmo de bolsa família, é razoável pensarmos que as atividades produtivas, em particular, a plantação e os cuidados com a flora, requerem uma remuneração adicional, engajando os interessados num serviço municipal planetário.
No presente estágio da vida planetária, a OMS está funcionando como um verdadeiro avatar do governo mundial, ainda que essa tendência à universalização já se perceba em experiências correntes, com a Interpol, o BIS (e a lavagem de dinheiro), a Comissão de Energia Nuclear, a ONU, a federação internacional das confederações nacionais de futebol, e outras iniciativas no campo esportivo, sem falar nas atividades ilegais. Dando um mergulho mais frontal na economia normativa, devemos concluir expressando o sonho que faça essas iniciativas de universalização prosperar e também que uma social-democracia de novos contornos sepulte para sempre o pensamento defensor do estado mínimo.
DdAB
P.S. A foto foi recolhida por nós da ilustração feita pelos revisores da FCE lá no site a que endereçamos quem quiser ver o original.
P.S.S. (escrito em 31 de maio de 2023). Ouço que aquela cifra do trilhão de árvores nada mais faria que reparar o dano que o homem provocou na natureza.
Erratum: Naqueles dados "uns 40% a mais que o PIB brasileiro medido em poder de paridade de compra", leia-se "uns 140%...". Falha nossa...
Post Scriptum: Em torno de 10 de junho de 2023, estive patinando na esteira e, para entreter-me, liguei a TV na Netflix, iniciando a ver uma série sobre a baixaria terráquea, que ele não me ouça, narrada e talvez produzida por David Attenborough. A certa altura, ele diz que a humanidade (pobres famintos da África) já derrubou três trilhões de árvores. Segue-se logicamente que plantar aquele 1,2 trilhão é uma modesta reparação de danos.

02 abril, 2020

Uma (estranha) Entrervista

IRRATIONALITY: THE ENEMY within by Stuart Sutherland (Paperback ...

ENTREVISTA
Cronista B.de.B. entrevista A.de.A., que mentia ser italiano.
B.de.B: por que estes escritos inserem-se num livro que se chama “O Hai-Kai e a Trova”, sendo que a instalação que foi proposta para ressumá-lo nada diz sobre esferofometria?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: que significa o signo hermético de seu nome?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: de onde o senhor tirou que “Trovas e Monólogos” poderá ser classificada (CDD e CDU) como livro?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: o prefácio é uma crônica?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: por que a numeração das páginas é um submúltiplo potenciado do dote do número de palavras de cada crônica, exceto o prefácio, que não se parece com crônica?
A.de.A.: chi lo sa?
A.de.A.: onde o senhor aprendeu a escreverdes?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: quais são as três partes em que se costuma dividir o corpo humano?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: e por que seu livro pouco refere a Mendeleief?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: qual dos hai-kais millôrianos o senhor mais gosta?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: fale sobre a gerativa e a escolha da gramatura do papel.
A.de.A.: chi lo as?
B.de.B.: se gente fala, então animal orneja?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: é verdade que foi o senhor que comprou esse lindo castiçal?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: seu número de sapato preferido é qual?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: -
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: para o senhor, ‘pipa’ é cachimbo ou pandorga?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: por que o senhor usa gravata em forma de sino?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: na sua opinião, Noel foi compositor ou distribuidor de brinquedos?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: a égua Bibelotte falava inglês?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: mercúrio pode ser transportado numa nave espacial?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: o senhor gostaria de ver a noiva da vesga de Vega?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: os versos dos servos da nave que vaga por Vega navegam aos sorvos?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: seu trabalho exala psicanálise. o senhor já foi submetido a tratamento psiquiátrico?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: em sua opinião, macaco é gente ou bicho?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: o que o senhor ouviu de resposta quando falou com a árvore?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: duro com duro dará bom muro?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: com quantos paus se faz uma canoa?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: rabo de gato, cinquenta e quatro?
A.de.A.: chi lo sa?
B.de.B.: adeus (aqui nunca mais volto).

NOTA DE DdAB
A imagem que nos encima -pode-se ver- é do livro de Stuart Sutherland, "Irrationality; the enemy within us", um Penguin que muito me divertiu (e preocupou) a uma década (ou foram-se duas?). Achei apropriado para o contexto.