22 maio, 2018

Narcisismo e Escolha Pública


Querido blog:

Não faz muito tempo que falei em categorias classificatórias de debilidade mental, pois andei me defrontando com comportamentos compatíveis no Facebook (no blog aqui). Pensando no ocorrido, pude observar espantoso aumento da amostra que eu estava estudando (hehehe) e cheguei à conclusão que precisava também falar no narcisismo, uma possível explicação para o uso tão corrente do 38o. estratagema delineado por Arthur Schopenhauer para "vencer um debate mesmo sem ter razão". Reproduzo-o para facilidade do leitor:

Nº 38. Parta para o ataque pessoal, insultando grosseiramente, tão logo perceba que seu oponente está com a vantagem. Partindo para o ataque pessoal você abandona o assunto por completo, passando a concentrar o seu ataque na pessoa, fazendo uso de observações ofensivas e malevolentes. Esta é uma técnica muito popular, porque requer pouca habilidade para ser colocada em prática.

Comoveu-me especificamente aquela parte do "fazendo observações ofensivas e malevolentes". De onde se originam as observações ofensivas e malevolentes? Não tenho dúvida de que um dos tipos mais perniciosos para a modelagem da escolha social é o comportamento narcisístico. E não tenho dúvida de que a mudança tecnológica e comportamental que levou à criação do smartphone potencializou esse comportamento. Uma vez que nem todos podem ou querem defender-se ou polemizar sobre maus termos, ofensas e malevolências, fiquei pensando na natureza psicológica daqueles que apelam para ridicularizar postagens ou comentários de pessoas portadoras de visões de mundo diversas das suas.

Pensando neste tipo de manifestação, que vejo às mancheias no Facebook e até em outras mídias, achei oportuno associar este tipo de tentativa de modelagem do "mundo lá fora", em que pessoas de diferentes níveis culturais, educacionais ou sociais emitem opiniões mais ou menos fundamentadas sobre os diversos temas que lhes tangencia a individualidade. E fiquei imaginando que algumas dessas pessoas -de acentuado grau de narcisismo, ou seja, donas da verdade, amantes de suas próprias crenças e opiniões- poderiam estar propensas a invalidar votos nas eleições de quem não consideram qualificados para se pronunciar em sentido contrário à visão de mundo do, a seu ver, cretino, estúpido, idiota, imbecil e oligofrênico.

Então evoquei o trabalho de Paulo Trigo Pereira (baixa direto o PDF clicando aqui), que volta e meia cito e recomendo a leitura para quem deseja ter uma visão interessante num texto curtinho, digamos, de 25 páginas, se a memória ajuda. Estamos no mundo da escolha pública em que se está aplicando o teorema do eleitor mediano adaptado a um de dimensões de escolha maior que um. Trigo, na verdade, fala em duas dimensões. Mas, claro, uma eleição real, com eleitores reais, uns narcisistas e outros, não, há múltiplas dimensões a serem consideradas. No exemplo do autor, fala-se em duas, convenientes sob o ponto de vista da pedagogia voltada a transmitir a beleza do modelo.

Pois o que é o teorema do eleitor mediano? Trata-se de um teorema tomado de empréstimo pela ciência política à ciência econômica. Harold Hotteling, tentando modelar a formação de preços num oligopólio, imaginou a situação, digamos, de um sorveteiro atendendo numa praia gaúcha (ou seja, praias traçadas com régua não-rombuda, quer dizer, linhas retas perfeitas). E sua demanda é bastante boa, de sorte que ele fica pensando em abrir nova carrocinha. A realidade mostra-se ao sorveteiro com um concorrente situado a, digamos 1km de distância de outro. Parece intuitivo que cada um deles, sob certas condições de contorno, vão tentar colocar a nova carrocinha bem na metade da distância que os separa. Na política, ocorrerá a mesma solução, expandindo-se para a captura de todos os eleitores de certo ponto de vista, chegando no eleitor mediano e mais um voto. Quem o fizer estará eleito.

Então temos a representação deste modelo ao longo de uma linha (a praia, algo assim). Mas o Paulo Trigo Pereira tratou de duas dimensões, facilmente capturáveis em um gráfico cartesiano: no eixo horizontal, coloca-se a questão de mais ou menos estado e no vertical mais ou menos federalismo (o modelo foi feito pensando na União Europeia). Então pode-se ser, digamos, a favor de maior interferência do estado na economia e nada de federalismo. Ou muito estado e total federalismo, e por aí vai o voto. Claro que, se -além destas duas questões- houver dezenas de outras, renda básica, voto facultativo, reforma tributária distribucionista, gasto público em educação e saúde, apenas o narcisista estará em condição de dizer o que deve ser feito.

Moraleja: se impedirmos o eleitor mediano de explicitar suas posições sobre todas as dimensões de uma disputa eleitoral, exigindo diplomas específicos para cada uma delas, os astrólogos, os barbeiros, os cachaceiros, os diáfanos, e assim por diante, até os zeugmatizadores, poucos sobrarão com direito ao voto, cabendo ao narcisista a responsabilidade de decidir quem vencerá a eleição, a contenda, o debate, o exame, etc. Em resumo, narcismo é um inimigo não apenas dos escolares americanos, mas principalmente da democracia!

DdAB
Lá a nos ilustrar temos um trechinho do artigo de Harold Hotelling que li nos tempos em que lecionava economia industrial no PPGE/UFRGS (e até microeconomia na graduação, que eu dava um monte de modelos prévios à teoria dos jogos, especialmente Cournot e Bertrand, para o estudo da formação do preço nos oligopólios). Claro que minha cópia já dançou, com a aposentadoria. Mas a fonte do que publico hoje é um interessante artigo alcançável ao se clicar aqui. E com uma referência fácil de campear.

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