Querido diário:
Às 12h25min de 8 de dezembro corrente, Moisés Mendes publicou em seu mural do Facebook a seguinte nota:
Não me convidem para o linchamento público de quem tem o direito elementar da defesa em democracias e sociedades ditas (ainda) civilizadas. Que o golpe e o fascismo não nos brutalizem e não nos igualem às hienas que tentam nos cercar.
Ao ler Moisés, 'de vereda' fiquei sem saber exatamente de que se tratava. Linchamentos públicos são prática de todo dia nos dias que correm. No caso, ao ler os comentários de seus infindáveis admiradores, tornou-se claro para mim que falavam de um caso de acusação de pedofilia feito pela mãe de uma garota de seis anos de idade a um cidadão que viajava ao lado da menina num voo entre Guarulhos e Porto Alegre.
E como vim a saber qual era o tema, a acusação, a mãe, a menina, o bebê de colo, o acusado, o marido da mãe que não está claro se entrou ou não entrou na história, mas que estava no avião juntamente com uma sobrinha? Ela, sempre ela, a inefável Zero Hora a quem, por precisamente razões deste tipo, volta e meia cognomino de Zero Herra, Zero Hurra e Zero Burra. Depois da nota do Moisés e a identificação do incidente, não consegui deixar de pensar nele e decidi escrever esta postagem.
A mãe acusou, o cara foi enquadrado, condenado, já perdeu o emprego (demitido de um CC na prefeitura), passou a usar tornozeleira eletrônica. Descontada uma propaganda, o cerne da página 22
(edição da quinta-feira passada, 7 de dezembro) é tomado pela notícia de minha Zero Burra. O jornalista que assina essa encrenca é Marcelo Kervalt (marcelo.kervalt@zerohora.com.br), que fala em Lei 217-A, bicho! Fico a indagar-me que tipo de jornalismo este profissional está praticando ao encaminhar para publicação um caso destes contornos. Cá entre nós, há milhares de possibilidades que não foram exploradas para dar algum grau de isenção ao texto que li e reli. Mas o problema não reside apenas na qualidade da seleção feita pelo jornalista, pois presumo que pelo menos o editor da seção "Notícias" ou o que seja, deve ter lido o que ele escreveu e não achou que fosse muita mirra para pouca missa. Cá entre nós, o incidente que tem milhares de possibilidades de erro de avaliação.
Estamos chegando num ponto complicado: não quero negar que o sr. Fulano de Tal, representado pelo advogado Raul Linhares, seja o que quer lá que seja, mas também acho sensato negar muito crédito à hipótese de que ele é pedófilo, cachaceiro, estelionatário, o que seja. Quero dizer, este senhor foi acusado e condenado com base no depoimento de uma senhora que diz ter "percebido a mão de um homem sobre a coxa de sua filha de seis anos", num momento em que "as luzes internas do avião estavam baixas". Viu? As luzes estavam baixas? O homem é pedófilo? Viu-lhe os olhos abertos? A mulher é que foi vítima de paralaxe?
Os antecedentes do homem não apontam nenhuma infração que leve quem quer que seja de boa índole a considerá-lo pedófilo. Olha a página 22:
O homem, natural do Rio de Janeiro, mas morador de Porto Alegre, tem 49 anos e trabalhou como professor de português em escolas da capital gaúcha. Até ontem, exercia função em cargo comissionado (CC) na Secretaria de Cultura de Porto Alegre.
Até aquele momento, um cidadão pacífico que viajava pacificamente. Talvez a polícia tenha esclarecido alguma coisa para referendar a acusação da mãe. Ou o jornal omitiu-nos informação ou a polícia tem capacidade de inferência extraordinária e, apenas com esses dados, percebeu que se trata mesmo de um "elemento feroz e nocivo ao bem-estar comum", como diz lá o Chico Buarque. Mas a matéria do jornal não dá pistas. A primeira questão que me ocorre, já que a mãe terá visto a mão na coxa, é se era a palma ou seu lado oposto. Acho que bolinar com o lado oposto à palma é menos erótico que otherwise. Mas este indício importa especialmente apenas se for associado a outros e até mais comprometedores indícios. Outro indício que nos falta para avaliar a qualidade literária da notícia, de seu autor e editor, é quanto tempo a mão (se é que caiu, se é que não houve paralaxe, se é que -mesmo sem paralaxe- o escurinho do avião não prejudicou a mãe) permaneceu na coxa da menina.
O advogado do funcionário público diz "Não houve nenhum tipo de ato libidinoso ou prática com conotação sexual [...]." Pois digamos que houvesse, que a mãe da criança estivesse realmente relatando a verdade dos fatos, não seria o caso de mudar a criança de lugar, de tentar certificar-se de que não estava ocorrendo um mal-entendido. Especialmente, não seria o caso de pensar no princípio da gradação das penas? Não pode dar pena de morte para quem rouba em supermercado, não é isto? Em particular, o homem teve sua vida patrolada com base num depoimento que o jornal leva-me a crer tratar-se de exagero da mãe da criança.
Então andamos mais para o final da notícia:
Segundo a assessoria de imprensa da Justiça Federal, o homem foi solto por possuir bons antecedentes, ter residência e emprego fixos, além de não ter passagens policiais. Mesmo assim, terá que cumprir série de medidas como uso da tornozeleira eletrônica, comparecimento periódico na Justiça, recolhimento noturno e aos finais de semana e proibição de viajar sem prévia autorização.
In dubio pro reo. Não quero dizer que a mãe da menina devesse postar-se contra a filha. Quero dizer que o jornalista, que o editor, que a polícia e que o judiciário é que deveriam pensar um pouco mais antes de condená-lo a ser chamado de suspeito. Este país é uma bagunça, o sistema judiciário é uma das vergonhas nacionais, e eu acho que o grande vilão destas plagas é mesmo a desigualdade que por aqui grassa há 517 anos, a fechar 518 a 21 de abril de 2018. Repito a conclamação do Moisés:
Que o golpe e o fascismo não nos brutalizem e não nos igualem às hienas que tentam nos cercar.
P.S. Em 20 de março de 2009, fiz uma postagem com tema assemelhado. Um rapaz foi acusado de roubar uma picanha do supermercado Carrefour (aqui). Dei uma olhada naquele longo calvário e percebi que não me caíra a ficha que aquela encrenca não é notícia digna de um jornal. Essa Zero Herra tem cada uma...
P.S.S. Aqui está a notícia inteira.
NOTÍCIAS | SEGURANÇA
Homem é detido por suspeita de abusar de criança.
CASO TERIA ACONTECIDO no trajeto Guarulhos-Porto Alegre. Suspeito foi solto ontem à tarde.
Marcelo Kervalt
marcelo.kervalt@zerohora.com.br
Às 3h30min de segunda-feira partiu do Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, o voo que levava uma família mato-grossense para passar férias em Gramado, na Serra. Na metade do caminho entre a cidade paulista e Porto Alegre, quando as luzes internas do avião estavam baixas, uma mãe diz ter percebido a mão de um homem sobre a coxa de sua filha de seis anos.
O suspeito foi preso em flagrante por estupro de vulnerável, crime configurado por conjunção carnal ou prática de outro ato libidinoso com menor de 14 anos, conforme a Lei 217-A. A detenção durou até por volta das 18h20min de ontem, quando o homem foi solto, mediante uso de tornozeleira eletrônica, pela Justiça Federal.
O homem, natural do Rio de Janeiro, mas morador de Porto Alegre, tem 49 anos e trabalhou como professor de português em escolas da capital gaúcha. Até ontem, exercia função em cargo comissionado (CC) na Secretaria de Cultura de Porto Alegre.
-Empurrei ele e perguntei o que estava fazendo. Ele se fez de desentendido, dizendo que não sabia o que estava acontecendo.
A mulher afirma que estava sentada na poltrona do corredor com o filho de dois anos no colo. ao lado, no assento central, dormia sua filha. Na janela, estava o suspeito:-Ele parecia uma pessoa muito séria. Passou por nós quieto e sentou. Não falou nada. Depois dormi, e quando acordei vi ele com a mão na coxa da minha filha. Não foi uma mão que caiu, porque ele estava bem acordado.
A mãe alertou a tripulação sobre o fato que afirma ter testemunhado. Chegando ao Rio Grande do Sul, o comandante pediu que os passageiros permanecessem em seus lugares. Apenas a família -mãe filha, filho, pai e uma sobrinha do casal- foi retirada da aeronave para prestar depoimento por volta das 5h. Em seguida, os demais passageiros foram liberados, e o homem, acompanhado, até a Superintendência da PF em Porto Alegre, onde também prestou depoimento e ficou detido.
-É inadmissível, lastimável. Não sei qual palavra usar para descrever minha tristeza. Me sinto mal por ter deixado ela do lado de um homem desses. A partir de hoje, vou tomar outras medidas para protegê-la. Ficamos até o meio-dia na Polícia Federal. Nossa filha não sabia o que estava acontecendo e imaginou que tínhamos feito algo de errado e que seríamos presos - afirma a mãe.
HOUVE UM MAL-ENTENDIDO, ALEGA ADVOGADO
O advogado do suspeito, Raul Linhares, argumenta que o caso não passa de uma confusão.
-Não houve nenhum tipo de ato libidinoso ou prática com conotação sexual - garante.
Ainda na tarde de ontem, a prefeitura da Capital informou, em nota, a demissão do suspeito:
"A prefeitura de Porto Alegre comunica a exoneração do servidor preso pela Polícia Federal na madrugada da segunda-feira."
Segundo a assessoria de imprensa da Justiça Federal, o homem foi solto por possuir bons antecedentes, ter residência e emprego fixos, além de não ter passagens policiais. Mesmo assim, terá que cumprir série de medidas como uso da tornozeleira eletrônica, comparecimento periódico na Justiça, recolhimento noturno e aos finais de semana e proibição de viajar sem prévia autorização.
-Conseguimos a soltura no sentido de esclarecimento da situação. Houve um mal-entendido. Uma situação que não foi bem compreendida - argumentou Linhares.
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