11 julho, 2017

Delfim Netto e a Apologia da Burrice


Querido diário:

Quando decidi expandir meu já imoderado consumo de bebida para o nível escandaloso, ainda não lera o artigo "O Estado não cria recursos", de autoria de Antonio Delfim Netto e publicado na revista Carta Capital de 5 de julho do ano corrente, aparecendo na página 38. E agora, antes de lançar-me ao consumo desenfreado desse importante item de meu orçamento caseiro, decidi fazer alguns comentários, menos com a intenção que chegue ao conhecimento do autor, mas na esperança de que possa suscitar alguma curiosidade de meu leitor sobre ideologia. Minha e do ex-ministro e ex-deputado da república. A minha ideologia, minha filosofia política, é igualitarista. A de Delfim Netto é neo-liberal.

Diz ele, abrindo o artigo:

A maior ilusão de uma 'esquerda primitiva' é que o Estado é magico e que, através de seu poder incumbente transitório, pode criar recursos. Nada é mais falso. E nada tem consequências mais deletérias sobre o processo de construção de uma sociedade civilizada, onde devem coexistir: 1. A plena liberdade de iniciativa. 2. A relativa igualdade de oportunidades, sob a coordenação de um Estado forte. 3. Um Estado forte, constitucionalmente limitado, capaz de controlar a organização da economia (difusa em toda a atividade social) para obter eficiência produtiva que permita a todo cidadão gozar os dois valores anteriores.
   É preciso insistir: o máximo que o Estado pode fazer é redistribuir, não sem antes consumir uma parte.

Primeiro devemos filosofar sobre a expressão "esquerda primitiva". Como bem sabemos, a esquerda se divide em primitiva e cerebral, à qual pertenço. Em boa medida, desqualifico-me para falar em nome da primitiva. Ainda assim, como sabemos, a mentira tem pernas curtas e rapidamente veremos traços da ideologia do autor tentando impingir-nos seus valores de maneira enrustida. Naturalmente a esquerda cerebral temos muito claro que nada é mais falso do que dizer que nada é mais falso que negar que o estado é incapaz de criar recursos. Indago-me, por exemplo, o que Delfim pensa sobre seu processo de construção de uma sociedade civilizada sem referir em primeiro lugar a educação. E que nome daríamos aos recursos empregados na construção de uma escola, com suas salas de aula, seus recursos audiovisuais, suas escadarias, seu centro esportivo, seu salão de atos, seu teatro, sua biblioteca, seus ônibus de transportes de alunos?

Com isto, já acabamos com o título que a revista que costumo designar como "Capital dos Carta" avalizou na publicação de seu cronista habitual. O estado não cria recursos, exceto tudo o que acabo de referir, tribunais de justiça, todos os bens públicos e meritórios que podemos imaginar, quando de provisão pública. Epa, esqueci de definir "recurso". Ora, digitei "dicio recursos" no Google e vi: "Faculdades, dotes: os recursos oratórios de Vieira.Bens materiais; posses: homem de recursos.Condição de riqueza, de produção de desenvolvimento econômico: país de imensos recursos."

Até o padre Vieira entrou na roda. Dotes é bom, mas tem mais, bens materiais. Então uma operação de remoção de um cálculo renal não é um recurso? Desasnar um vivente? Vamos adiante: país de imensos recursos. Ah, então podemos pensar em recursos materiais e humanos. Um neguinho que sai sobranceiro da cirurgia que lhe restituiu um rim lampeiro (para rimar), aumentou seu capital humano, não é mesmo? E a piscina aumentou o capital físico da escola, tampouco é mesmo? Cada uma desse Delfim.

Aprendi com William Baumol que podemos classificar as atividades empreendedoras como produtivas, rent-seeking ou destrutivas. O estado, diz Delfim, só se dedica às rent-seeking, ou seja, que apenas transferem a renda (o produto) criado por outrem. No mundo mundano em que habito, vejo o estado aqui e na China exercendo essas três atividades: produz, redistribui e destrói. Se produz, redistribui ou destrói, então cria, redistribui ou destrói, sô. E por que o rapaz disse este tipo de impropério?

No primeiro ano do governo Temer, o Brasil tomou conhecimento de tais dificuldades e, com a organização de um parlamentarismo de 'ocasião', ele produziu a aprovação de um número substancial de medidas micro e macroeconômicas, cujos efeitos se farão sentir no futuro. Infelizmente, os recentes eventos políticos diminuíram a capacidade do governo de prosseguir com as duas reformas fundamentais que estão encaminhadas: a trabalhista e a da Previdência.

Então a exceção de governo que produz é o velho (fora) Temer e produziu algo, algo rent-seeker, algo destrutivo, sei lá. Mas isto não é nada: efeitos que se farão sentir no futuro não são sentidos no presente. E até hoje está para ser provado que as medidas que (fora) Temer fez aprovar trarão algum benefício, por exemplo, para atenuar a desabotinada desigualdade que destruiu a sociedade brasileira precisamente porque arautos do "estado mínimo" vetam regularmente a ampliação do emprego público. E não digo naqueles ridículos 6,5 mil policiais. Para o Rio Grande do Sul, desde 1994, recomendo a contratação de um milhão de espécimes para receber treinamento mínimo de cidadania. Entre eles, deverão ser educados novos pacientes de hospitais psiquiátricos, mas também atendentes psiquiátricos, guardas de rua, motoristas, e por aí vai. E, por puro acaso, Delfim acha maravilhosos os teores das reformas trabalhista e da previdência tal como encontram-se em votação no congresso nacional. Por favor.

   [...] Quanto à reforma da Previdência, sua maior oposição vem do alto escalão do funcionalismo federal, que se apropriou do poder em Brasília. Trata-se de uma 'elite extrativista' [e aqui Delfim se refere, imagino, a Acemoglu e Robinson, por contraste a minha citação de Baumol] que 'conquistou' no grito direitos 'mal' adquiridos, desde 1988 [...]

Pensei ser de bom-tom, de minha parte, dizer que é vergonhoso que uma reforma da previdência que conta com a simpatia do articulista exiba simultaneamente tantos senões levantados pelo... articulista. Quero dizer, benesses como as do próprio articulista e minhas, aposentadorias benévolas, não foram tocadas. E milhares de exceções encontram-se excluídas do alcance do projeto que Delfim defende. É óbvio que o país precisa de uma reforma trabalhista e outra da previdência. E parece-me igualmente óbvio que a reforma econômica que deveria iniciar o rosário de queixumes do governo (fora) Temer seria mesmo a reforma tributária e não essas duas.

Mas é ainda mais óbvio que estas reformas do governo (fora) Temer são peças de escárnio, peças para cumprir um receituário ditado por algum íncubo que tem acólitos apenas do porte do Delfim, do Henrique Meirelles e de outros arautos que desconhecem que um item importante para avaliar o que quer que seja de ação governamental e comunitária no Brasil requer a pergunta: o que será da desigualdade após a implantação dessas medidas?

DdAB
Imagem: Delfim me puxando.

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