Os novos edis estavam desgostosos com um dos versos do hino xaropão que afirma: "povo que não tem virtude acaba por ser escravo". Implicação lógica (a afamada backward induction): o escravo origina-se de um povo que não tem virtude. E um político já aproveitou a situação e sugeriu um escalafobético meio de consertar esse disparate poético-patriótico. Eu mesmo desgostoso com a solução oferecida pelo político, aproveitei e dei algumas sugestões de mudar o conteúdo e a métrica do verso tido por negros como racista (aqui).
Com essa encrenca toda rodando na cabeça, desde aquele mundo eivado de julgamentos sobre o que é e o que não é politicamente correto -expressão que, pela primeira vez, vi pronunciada num noticiário da BBC-TV por Jeremy Paxman tipo em 1992, no máximo)- obviamente voltei a pensar no termo "mulato".
A memória retinha um resultado da pesquisa que fiz à época daquela conversa inteligente, como defini. Olhando alguns anos atrás, lembro de ter procurado em meu velho (comprado de segunda mão) dicionário Webster. Só não lembrava bem o que encontrara. Dias atrás voltei a consultá-lo, ao Webster, e descobri a origem da palavra: o espanhol. Então percebi que não foi lá que eu vi a negação de tratar-se do homem das mulas. Mas veio-me a dica: é uma palavra incorporada à língua inglesa, escrita "mulatto" originária do espanhol.
Fala aí, Webster:
mulatto, n,. pl, mulattos [Sp, mulatto, a mulatto, of mixed breed, from mulo, a mule]
1. a person one of whose parents is a Negro and Causasian, or white.
2. popularly, any person with mixed Negro and Causasian ancestry.
Então ontem, ou ante-ontem, dei uma olhada em meu velho dicionário de espanhol. E encontrei:
MULATO, TA adj y s. Nacido de negra y blanco o al contrario. De color moreno. M. Amer. Mineral de plata obscuro o verdoso.
Ou seja, por este lado, nada existe de "homem das mulas". E o interessante é que não fala de negro e branco, mas negra e branco. Este fato vernáculo interessante leva-me a evocar que, no Brasil, a maioria dos descendentes de pret@s ou pard@s tem -pelo que dizem os especialistas e guardo na memória- mais ascendência feminina que masculina. Óbvio que esta prática de "produção de mulatos" remonta aos colonizadores portugueses.
E aquele "ideal de branqueamento" da população não nega o que Richard Dawkins escreveu sobre a Inglaterra: a cor dos escravos negros foi, ao longo do tempo e sucessivos caldeamentos, absorvidos pela população. Hoje existiria no país de Elisabeth uma enorme proporção dos afro-descendentes que se pode imaginar pela avaliação da cor das pessoas. E, no Brasil, eu, logo eu que não gosto de falar palavrões em redes sociais, lembro a frase presente lá na "Casa Grande e Senzala": "preta para trabalhar, branca para casar e mulata para f....". [sic]. Por curiosidade acrescento que, em 1964, havia intermináveis discussões entre os alunos do primeiro ano do curso científico do Colégio Estadual Júlio de Caudilhos, em Porto Alegre, sobre o livro exibir quatro pontinhos depois do 'f' ou apenas três.
Para concluir minha busca, peguei meu Dicionário Etimológico Nova Fronteira e li:
[...] mulatEIRO sm. 'orig. condutor de mulos, almocreve' XVI; 'jumento de cobrição de éguas para a produção de mus' 1899. Do cast. mulatero. [...] || mulato sm. 'ant. mulo', 'filho de pai branco e mãe preta, ou vice-versa' 1524. Do cast mulato.
E que vim a concluir? Primeiro que houve (e ainda há, lamento dizer) escravos com virtude, embora nem todos. Segundo, que a palavra mulato tem mesmo esses dois significados: rebento da união sexual entre branc@ e negr@ e homem das mulas. Para quem valoriza a problematização do que é e o que não é politicamente correto, recomendo não usar o termo que, deste modo, do homem das mulas, só pode ser ofensivo. Exceto, claro o violonista João Mulato, que ganhou o apelido na mais profunda boa-fé.
DdAB
P.S. Nota no anúncio que fiz no Facebook sobre esta postagem escrita pelo prof. Conrado Chagas:
"Mulo" vem direto do latim "mulus, i", termo com que se fazia referência ao macho, filho de cavalo com burra (asina, ae), ou de égua com burro (asinus, i). Se fosse fêmea, era "mula, ae". Parece que foram mesmo os espanhóis que primeiro usaram a denominação "mulato(a)" para refirem-se aos mestiços de europeus com povos indígenas. "Por su origen híbrido, como el del mulo, dícese del mestizo de las razas blancas y negras" (leio no Anaya). Duas observações: já sabemos que não se tratam propriamente de "raças" distintas, e o adjetivo "negro" não se refere exclusivamente aos indivíduos da África sub-saariana, já que historicamente inclui tbm os indígenas. Aliás, a mestiçagem com os indígenas foi política de Estado. Seja como for, o mestiço sofria e ainda em grande parte sofre preconceito. O termo mulato, no entanto, se impôs e vem, até onde vejo, sendo usado com certo orgulho, apesar de sua origem pejorativa.
p.A. E ainda tem oss americanos chamando as empregadas domésticas latino-americanas de <muchachas>.
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