Digamos que, em 1987 ou 1988, comecei minha trajetória na leitura da biologia evolucionária e, em menor grau, a economia evolucionária. E como é que foi meu começo? Meu amigo e colega duplo (UFRGS e UFSC), prof. João Rogério Sanson, emprestou-me um livro de Edward Wilson. Simplesmente dei uma olhada na internet, Amazon, Estante Virtual, e nada de lembrar o título. O fato é que anotei algo em meus manuscritos relativo ao que ele sugere seria uma civilização de formigas e suas "panelas". Ele fala, entre outras atividades, cabeleireiro, necrotério, restaurante, e nem lembro se é isto mesmo, e muito mais.
Depois li a biografia dele. Tem em português, mas li em inglês, naquele tempo em que eu viajava muito pra cima e pra baixo e comparei preços em cruzados, cruzadinhos, cruzeiros, sei lá, e em libras esterlinas. E era o tempo do câmbio louco do imediato pós-Plano Real.
Em compensação, semanas atrás, por influência de meu sobrinho, o herpetologista Arthur Abegg, li, assim:
WILSON, O. Edward (2015) Cartas a um jovem cientista. São Paulo: Companhia das Letras. Tradução de Rogério Galindo.
Galindo? Parece aparentado (irmão?) de Caetano Galindo, terceiro tradutor do Ulysses, de James Joyce para o português brasileiro. Eis que tem outra tradução para o português europeu.
Sigo. Vou citar, para felicidade geral da nação, duas passagens que reputo de extraordinárias. Elas se localizam nas páginas 52-53 e 74. E lá em cima, temos uma formiga argentina, a que -talvez- ainda venha a ser a única espécie terráquea.
Página 53 - ciência e sobrenatural
Houve um tempo em que as pessoas acreditavam que a raça humana surgiu, como em um evento sobrenatural, totalmente madura em sua forma presente. Hoje compreendemos, de maneira bem diferente, que a nossa espécia descendeu, num processo de 6 milhões de anos, de macacos africanos que também foram ancestrais dos modernos chimpanzés.
Como Freud observou certa vez, Copérnico demonstrou que a Terra não é o centro do universo, Darwin, que nós não estamos no centro da vida, e ele, Freud, que nós não estamos nem mesmo no controles de nossas próprias mentes. É claro, o grande psicanalista deve dividir o crédito com Darwin, entre outros, mas ele está certo ao dizer que o consciente é apenas parte do processo do pensamento.
Em resumo, por meio da ciência nós começamos a responder de modo mais coerente e convincente duas das grandes e simples questões da religião e da filosofia: de onde viemos? E o que somos? É claro, as religiões institucionalizadas afirmam ter respondido essas duas perguntas há muito tempo, usando histórias sobrenaturais de criação. Você pode muito bem perguntar, portanto, se um crente religioso que aceita uma dessas histórias pode fazer boa ciência mesmo assim. É claro que pode. Mas ele será forçado a dividir sua visão do mundo em dois domínios, um secular e outro sobrenatural, e a permanecer no domínio secular enquanto trabalha. Não será difícil para ele encontrar empreendimentos dentro da pesquisa científica que não têm qualquer relação imediata com a teologia. Essa sugestão não pretende ser cínica, nem significa um fechamento da mente científica.
Se fossem encontradas provas de uma entidade ou força sobrenatural que afeta o mundo real, o que todas essas religiões afirmam, isso mudaria tudo. A ciência não é inerentemente contrária a essa possibilidade. Pesquisadores, na verdade, têm todos os motivos para fazer essa descoberta, se ela for viável. O cientista que conseguisse fazer isso seria visto como o Newton, Darwin, Einstein, todos juntos, de uma nova era na história da ciência alegando ter provas do sobrenatural. Todos, no entanto, foram baseados em tentativas de provar uma proposição negativa. Normalmente, o formato é o seguinte: "Nós não fomos capazes de encontrar uma explicação para esse e aquele fenômeno; portanto, ele deve ter sido criado por Deus". Versões atuais ainda em circulação incluem o argumento de que como a ciência ainda não pode oferecer um relato convincente sobre a origem do universo e sobre o estabelecimento das constantes físicas universais, então isso deve ser criação divina. Um segundo argumento que se ouve é que como algumas estruturas moleculares e reações na na célula parecem complexas demais (para o autor do argumento, pelo menos) para terem sido formatadas pela seleção natural, elas devem ter sido projetadas por uma inteligência maior. E mais uma: como a mente humana e especialmente o livre-arbítrio como parte essencial da mente parecem estar além da capacidade da causa e efeito materiais, eles devem ter sido inventados por Deus.
A dificuldade em crer em hipóteses negativas para dar sustentação a uma ciência baseada na fé é que, se elas estiverem erradas, elas também estão muito vulneráveis a contraprovas decisivas. Basta uma prova verificável de uma causa real e física para destruir o argumento de uma causa sobrenatural. E precisamente isso, na verdade, tem sido uma grande parte da história da ciência, à medida que ela evoluiu de fenômeno em fenômeno. O mundo gira em torno do Sol, o Sol é uma estrela entre 2 milhões de outras ou mais em uma galáxia entre centenas de bilhões de galáxias, a humanidade descende de macacos africanos, os genes mudam por meio de mutações aleatórias, a mente é um processo físico em um órgão físico. De acordo com a compreensão naturalista do mundo real, a mão divina foi retirada pouco a pouco de quase todo o espaço e o tempo. As oportunidades restantes de encontrar evidências do sobrenatural estão se fechando rapidamente.
Como cientista, mantenha sua mente aberta para qualquer fenômeno possível restante no grande desconhecido. Mas nunca se esqueça de que sua profissão é a exploração do mundo real, sem preconceitos ou ídolos mentais aceitos, e que a verdade verificável é a única moeda nesse reino.
Página 74 em que vemos uma ironia do autor relativamente à linha de montagem na produção de artigos científicos. Ele acha que a descoberta é algo individual. E eu, em geral, discordo e bem que gostaria de estar comendo croissants acompanhando meu café de caneca... (E ganhando em dólares americanos...).
[...] há os adorados think tanks de ciência e tecnologia, onde alguns dos melhores e mais brilhantes de suas áreas são reunidos explicitamente para criar novas ideias e produtos. Visitei o Santa Fe Institute no Novo México, assim como as divisões de desenvolvimento da Apple e do Google, dois dos gigantes corporativos dos Estados Unidos, e admito que fiquei muito impressionado com o ambiente futurista deles. Na Google até comentei: 'Essa é a universidade do futuro'.
Nesses lugares, a ideia é alimentar e abrigar pessoas muito inteligentes e deixar que elas perambulem por ali, se encontrem em pequenos grupos tomando café e comendo croissants [sic, sem itálico no livro], e troquem ideias umas com as outras. E depois, talvez enquanto cruzam um gramado muito bem cuidado a caminho de seu almoço gourmet [idem], eles terão uma epifania. Isso certamente funciona, em especial se já existe um problema bem formulado na ciência teórica ou se é preciso criar um produto.
Mas o pensamento coletivo é o melhor modo de criar ciência realmente nova? Arriscando-me a uma heresia, eu discordo [...].
Uma vez que "alguns dos melhores e mais brilhantes de suas áreas" encontram-se num mundo que já estava bastante avançado cultural e educacionalmente quando nasceram e foram educados, penso que temos aí uma afirmação cabal do primeiro princípio da sociedade justa tal como apresentado por David Harvey (lá no primeiro P.S. daqui): Desigualdade intrínseca: todos têm direito ao resultado do esforço produtivo, independentemente da contribuição.
DdAB
P.S. Estas páginas 52-53 implicam necessariamente que não existe Deus? Embora eu seja da campanha "Ateus, saiam do armário", não posso deixar de colocar restrições ao materialismo absoluto, pois quem sabe lá o que houve antes do Big Bang? E quem sabe lá o que quer dizer que 85% da massa do universo é constituída por matéria escura (aqui).
P.S.S. A imagem é da formiga argentina.
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