29 setembro, 2017

Piketty, Marx e o Trabalho Morto


Querido diário:

Tudo começou quando, hoje de manhã, olhei o mural de Gláucia Campregher no Facebook. Não fui ver a conferência de Thomas Piketty num seminário aqui em Porto Alegre, mas escrevi alguma coisa sobre seu anúncio aqui. Nem precisava ir, pois o resumo feito por Hermógenes Saviani que reproduzirei lá no P.S.S., fala melhor do que o próprio autor da conferência.

Piketty tem no título de seu livro, O Capital no Século XXI, uma alusão ao título da obra prima de Karl Marx e Friedrich Engels, claro. E andei me entusiasmando e cheguei a pensar em escrever um livro a intitular-se O Capital no Século XXII, pois parece que mesmo o século XXI já está totalmente perdido. O estrago feito pelo neoliberalismo foi tanto que não vai dar para consertar tão cedo. Mas tem conserto. E ele começa com o combate à desigualdade. E Piketty e Hermógenes dão dicas seguras sobre como acabar com ela, abjurando o estado promotor do neoliberalismo, como é o caso do brasileiro contemporâneo. E não falo apenas do desastrado governo desse senhor Michel (Fora) Temer.

Volta e meia, procuro enaltecer as virtudes da sociedade igualitária, sociedade capitalista igualitária, se comparada com outros sistemas econômicos já realizados ou prometidos. Meu principal argumento é aquele círculo virtuoso encapsulado pelo emprego: o médico que me retira um apêndice inflamado, com seu dinheirinho, manda o filho estudar inglês, o filho do professor de inglês estuda clarinete. O professor de clarinete pode pagar seu dentista cujo filho tem aulas de caratê, e por aí vai.

Mas hoje quero fazer outras reflexões sobre as virtudes do capitalismo, o capitalismo igualitário. Primeiro, quero dizer claramente que o problema não é o capitalismo, mas algumas instituições que nossos amigos Acemoglu e Robinson chamam de instituições destrutivas. Parece que foi o Douglas North que falou que boas instituições são mais escassas que os demais recursos produtivos da sociedade. Se tem neste preciso instante alguém seviciando um mendigo, algum mendigo seviciando um animal, algum animal (rotevailer) seviciando um guri, e assim por diante, devemos divisar formas de acabar com isto. A que me ocorre é criar empregos decentes para todos, o governo assumindo o papel de empregador de última instância, aproveitando para agilizar seu sistema judiciário, de sorte a botar o algoz do mendigo na cadeia, o mendigo na escola, o cavalo nas pradarias abastecidas do melhor capim, o rotevailer em treinamento para socorrer velhinhas na rua, o efebo na aula de clarinete, e por aí vai. A renda básica universal, por exemplo, é um mecanismo extra-mercado que pode incumbir-se de corrigir as distorções no mercado de trabalho e sua eterna escassez de demanda por trabalho. No capitalismo igualitário, posso garantir com base em alguma estimativas que andei realizando, a fonte da juventude será criada em menos de 1.000 anos a partir de agora, garantindo a todos eterna jovialidade.

E por que faço tão escabelados elogios ao capitalismo igualitário, ou seja, adjetivo igualitário, substantivo capitalismo? Estou pensando em Piketty, na conferência da quinta-feira que passou, na alusão ao Capital de Marx e Engels que lhe inspirou o título e nos elogios que ele faz à sociedade igualitária, ou por outra via, à mazelas que resultam da enorme e crescente desigualdade que se observa no mundo inteiro, especialmente, naquele que já foi chamado de Brasil dos Estados Unidos.

De minha parte, fico abraçado com a primeira parte da interpretação e das previsões feitas pelo be-a-bá da economia marxista. Em particular, a proposição de que o valor das mercadorias decorrer da comunalidade entre todas elas, a saber, serem todas fruto do trabalho humano, ou tê-lo em alguma instância de sua vida mercantil (por exemplo, um lote de terra tem preço mas não tem valor, pois não foram trabalhadores que o produziram, embora possam cercá-lo). Dela decorre que, quanto mais trabalho, mais valor. E aí é que vem o aspecto interessante que não é compartilhado em nenhuma medida por uma economia socialista. Ao mesmo tempo, quanto maior a produtividade do trabalho, mais o preço cobrado pela empresa típica ficará acima do valor por ela criado, dando-lhe vantagens na geração de fundos pecuniários para expandir-se.

Vemos o que me parece a maior explicação derivada da economia marxista: as empresas têm vantagens ao economizar trabalho, ou seja, em elevar sua produtividade do trabalho. Mas com isto elas favorecem seus consumidores, pois a concorrência leva-as a reduzir preços de insumos ou produtos que vendem. O progresso tecnológico torna-se um imperativo do desenvolvimento capitalista, levando o empresário a querer incorporá-lo de modo a ter custos menores que a média (ou criar valor num montante abaixo da média, com preço superior à concorrência). Elevando a produtividade do trabalho, caímos naquele escaninho da redução do preço.

Mas o que pode acontecer com os ganhos sucessivos e seculares da produtividade do trabalho? Seus frutos podem ser retidos monopolisticamente pelos capitalistas ou pelos trabalhadores, e aí começam os problemas, com a redução do emprego. Quer dizer, o próprio capitalismo, com seu jeito de se reproduzir e ampliar sua escala de reprodução, gera preços mais baixos mas também desemprego mais alto. Episodicamente há escassez de oferta de trabalho, mas a regra absoluta em todas as latitudes e cronologias é o desemprego.

Mas, ao falarmos de desemprego, talvez estejamos falando apenas em "economia". Por contraste, ao falarmos em fome e miséria, estamos falando nas instituições deficientes que cercam a maioria dos países capitalistas mundiais, que não são capazes de garantir um bom nível de vida a todos os cidadãos. Por isto é que tomou papel secundário, mas naquela formulação da língua inglesa que fala no "last but not the least", ou seja, o aspecto econômico é secundário para minha condenação do socialismo. O principal é a objeção política da centralização excessiva resultando no poder do estado (o governo dos homens).

Parece-me que a solução, pelo menos por alguns séculos, a melhor solução para a solução do problema da desigualdade não é implantar o socialismo, mas criar instituições mais intensamente promotoras do aumento da produtividade do trabalho e ao mesmo tempo promotoras de distribuições de renda mais igualitárias. Os mecanismos são conhecidos: política fiscal (gasto regressivo, impostos progressivos) e política monetária (crédito fácil).

A frase isolada de Marx que mais cito, especialmente neste Brasil de políticos ladrões do início do século XXI, é que "no capitalismo, tudo vira mercadoria, inclusive a honra". Mas a frase que considero derivada de sua intuição mais aguda sobre o funcionamento do capitalismo é que este sistema tem por tendência intrínseca a seu modo de funcionamento a transformação do trabalho vivo (trabalhadores empregando sua força-de-trabalho) em trabalho morto (as máquinas, equipamentos, instalações, ou seja, meios de produção produzidos). Quanto mais trabalho morto por unidade de produto, maior tenderá a ser a produtividade do trabalho, menor o emprego, maior o lazer, etc., se a sociedade criar instituições que promovam as redistribuições que o sistema sozinho não é capaz de engendrar. No socialismo, ganha-se talvez, e eu disse talvez, mais facilidade distributiva, mas perde-se a centralidade da busca de progresso técnico que é a marca registrada do capitalismo e que foi magistralmente capturada por Marx e Engels.

Piketty, Marx e eu temos mais pontos em comum do que parece.

DdAB
P.S. a imagem é uma besta desenhada por Leonardo Da Vinci e retirada da Wikipedia.

P.S.S: Tá assim lá no mural de Gláucia Campregher:
Pikety pra quem não foi ontem, bem resumido pelo Hermógenes Saviani.
"Piketty em noite de Ali!
O economista francês Thomás Piketty, autor do clássico e best-seller 'O Capital no Século XXI' teve sua noite de Mohamed Ali, nesta quinta-feira, no Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre. Inspirado e sem pisar em casca de banana como na primeira vez que esteve por estas plagas quando, ao fim de uma palestra, alegou não saber que teria que se encontrar com homens de negócios. Referia-se a André Lara Resende e a Paulo Guedes após debater com ambos, quando do lançamento no país pela sua editora em 2014.
Ontem, ele fez uma palestra clara e objetiva. Mostrou o crescimento da desigualdade que o mundo vem apresentando desde os anos 1980. A desigualdade cresce não apenas pela globalização, justificada por diversos autores estadunidenses, mas por causa de uma combinação de outros fatores. Dito isto começou a disparar seus jabs, cruzados e diretos. A desigualdade cresce, por exemplo, nos Estados Unidos desde que Ronald Reagan assumiu o poder em 1980 e passou a desregulamentar a economia e a reduzir os impostos dos mais ricos.
O mundo apresentou redução da desigualdade no século passado após crises econômicas, como a de 1929, e guerras. Segundo o economista seria possível reduzir a desigualdade de forma muito mais racional ao taxar a renda e riqueza do 1% e, principalmente, do 0,1% mais rico da sociedade. Além de impor um pesado imposto sobre a herança.
Ao apresentar um gráfico que denominou como 'O Conto de Cinderela da Meritocracia' mostrou que um dos motivos do aumento da desigualdade nos EUA também ocorreu porque houve uma redução no acesso à educação e que os filhos dos 50% das famílias mais pobres têm apenas 20% de chance de entrar na universidade; enquanto os que se encontram entre o 1% mais rico tem 95% de oportunidade de estar dentro de uma faculdade. Além disso, os filhos destas famílias mais ricas estudam nas melhores universidades, enquanto os mais pobres ficam com as piores.
Na última parte falou sobre os recentes estudos em relação ao Brasil. Mostrou que temos a pior desigualdade de renda do mundo, apenas estamos à frente dos países do Oriente Médio e da África do Sul, fazendo ressalvas a estes, o que nos levaria a uma condição inferior, e que acha um absurdo taxarmos as heranças em apenas 3% ou 4% enquanto que em países como EUA, França, Alemanha e Japão os valores variam entre 35% e 55% e houve época em que foi de de 90%. Afirmou que a melhora da redistribuição da renda no Brasil foi menor que a divulgada, pois houve um aumento da concentração com o 1% mais rico e, ainda mais no 0,1%, aumentando sua fatia no bolo. Ressaltou, entretanto, que os 50% mais pobres apesar de apresentarem uma melhora de apenas 1% na renda foi melhor do que se nada tivesse ocorrido, mas ela se deu em detrimento das camadas intermediárias. Acrescentou que os imposto aqui são indiretos onerando mais os mais pobres e, em sequência, a classe média. Ou seja, as classes pobres, que muitas blasfemam afirmando que são beneficiados e não pagam impostos é um mito; a classe dominante é que praticamente não paga imposto e é subsidiada pelas demais.
Na parte final, o mediador, que é secretário da fazenda do RS, retomou o tema acima e, mais uma vez, Piketty foi incisivo. Arrancou aplausos em diversos momentos da plateia, que chegou a puxar um Fora Temer. A ironia foi que num evento que consta com diversos patrocinadores que defendem o liberalismo exacerbado, com um governo estadual trágico, fosse demolido pelo entrevistado que defendia uma Reforma Tributária de caráter progressivo, onde ao fundo estava o logotipo de um grupo midiático que é acusado de sonegação s subúrbio no CARF, que criticou pesadamente a ideia de meritocracia, defendeu a taxação das grandes fortunas e ainda elogiou programas como o Bolsa Família. Finalizou afirmando que ao longo da história a elite dominante sempre procura arrumar formas para justificar a concentração da renda e de evitar ser taxada.
Foi uma daquelas noites memoráveis de quando eu era apenas uma criança de sete anos e torcia para Mohammed Ali massacrar, com sua classe habitual, seus adversários. Piketty me fez voltar a uma dessas noites mágicas com um nocaute demolidor na hipocrisia de uma sociedade, em pouco menos de duas horas."

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