Epígrafe para um novo livro:
O atributo de distribuição mais equitativa no Terceiro Planeta de Sol é o bom-senso: ninguém se queixa de ter pouco. (Blaise Pascal transmitido por Flávio Spanhol)
Nota ao que segue:
Se falarmos sobre a morte, não há como deixar de pensar nos sentimentos "de última hora": do medo do devir ao cansaço com o que veio. Mas está implícito que não morremos sozinhos, aliás, menos ainda, vivemos sozinhos. A crônica que veremos a seguir, em transcrição integral, foi retirada do livro:
PAPINI, Giovanni Gog. (c.1970) Rio de Janeiro: Nova Fronteira. (Coleção Universo. Tradução de Marina Colasanti.) Páginas 99-100.
Nada é meu
Arosa 18 de setembro
O maior problema do homem, como das nações, é a independência. Há solução?
O que possuo parece meu, mas sou sempre possuído, pelo que tenho. A única propriedade incontestável deveria ser o Eu - entretanto, procurando bem, onde está o resíduo absoluto, isolado, que não depende de ninguém?
Ausentes ou presentes, os outros participam da nossa vida interior e exterior. Não há salvação. Mesmo na solidão perfeita sinto-me, com horror, átomo de uma montanha, célula de uma colônia, gôta de um mar. No meu espírito e na minha carne trago a herança dos mortos: meu pensamento é devedor a vivos e defuntos: e mesmo contra a vontade, meu comportamento é guiado por sêres que não conheço ou desprezo.
Tudo o que sei aprendi de outros. Tudo o que eu uso é obra alheia - que importa se paguei? Sem o operário, sem o artesão, sem o artista estaria mais nu do que Caliban ou Robinson. Se quero me locomover preciso de máquinas que não fabriquei e que não dirijo. Sou obrigado a falar uma língua que não inventei; e os que vieram antes de mim me impõem sem que eu o saiba, seus gostos, seus sentimentos, seus preconceitos.
Ao desmontar o Eu peça por peça encontro sempre pedaços e fragmentos que vêm de fora - em cada um poderia colocar um rótulo de origem. Êste é da minha mãe, êste do meu primeiro amigo, êste de Emerson, êste de Rousseau ou de Stirner. Se levo a fundo o inventário das apropriações o Eu torna-se uma forma vazia, uma palavra sem conteúdo próprio.
Pertenço a uma classe, a um povo, a uma raça - não consigo, por mais que faça, evadir-me dos confins que não tracei. Tôda idéia é um eco; todo ato um plágio. Posso afastar a presença dos homens mas grande parte dêles continua vivendo, invisível, em minha solidão.
Se tenho empregados devo suportá-los e obedecer-lhes; se tenho amigos, tolerá-los e servi-los - e o dinheiro deve ser olhado, cultivado , protegido, defendido Poder equivale a escravidão. Nada, na realidade, me pertence. As poucas alegrias de que desfruto devo-as à inspiração e ao trabalho de homens que já não existem e que nunca vi. Conheço o que recebi mas ignoro o que dei.
Consegui juntar algumas dúzias de bilhões. Não o teria podido fazer se milhões de homens não tivessem trabalhado para mim, se milhões de homens não tivessem precisado daquilo que eu podia vender, se milhares de homens não tivessem inventado as fórmulas, as máquinas, as regras sôbre as quais se baseia a vida econômica da Terra. Abandonado a mim mesmo teria sido um selvagem, comedor de raízes e de cães mortos.
Onde está, então, o núcleo profundo e autônomo do qual ninguém mais participa, por ninguém mais gerado, e que eu possa verdadeiramente chamar meu? Sou, na realidade, um coágulo de dívidas, a molécula escrava de um corpo gigantesco? E a única coisa que acreditamos realmente nossa - o Eu - é, talvez, como todo o resto, um simples reflexo, uma alucinação do orgulho?
É isto, era isto, isso tudo. É que nada é meu. É de Giovanni Papini.
DdAB
P.S. Mantive a grafia do livro original. Aqueles "sôbre", "êsse", "idéia" são daquele tempo que atribuí a 1970. Bons tempos, péssimos tempos: nem sabíamos que a ditadura militar seria tão longa.
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