29 dezembro, 2021

"Nada é Meu"

 


Epígrafe para um novo livro:

O atributo de distribuição mais equitativa no Terceiro Planeta de Sol é o bom-senso: ninguém se queixa de ter pouco. (Blaise Pascal transmitido por Flávio Spanhol)

Nota ao que segue:

Se falarmos sobre a morte, não há como deixar de pensar nos sentimentos "de última hora": do medo do devir ao cansaço com o que veio. Mas está implícito que não morremos sozinhos, aliás, menos ainda, vivemos sozinhos.  A crônica que veremos a seguir, em transcrição integral, foi retirada do livro:

PAPINI, Giovanni Gog. (c.1970) Rio de Janeiro: Nova Fronteira. (Coleção Universo. Tradução de Marina Colasanti.) Páginas 99-100.

Nada é meu

Arosa 18 de setembro

   O maior problema do homem, como das nações, é a independência. Há solução?

   O que possuo parece meu, mas sou sempre possuído, pelo que tenho. A única propriedade incontestável deveria ser o Eu - entretanto, procurando bem, onde está o resíduo absoluto, isolado, que não depende de ninguém?

   Ausentes ou presentes, os outros participam da nossa vida interior e exterior. Não há salvação. Mesmo na solidão perfeita sinto-me, com horror, átomo de uma montanha, célula de uma colônia, gôta de um mar. No meu espírito e na minha carne trago a herança dos mortos: meu pensamento é devedor a vivos e defuntos: e mesmo contra a vontade, meu comportamento é guiado por sêres que não conheço ou desprezo.

   Tudo o que sei aprendi de outros. Tudo o que eu uso é obra alheia - que importa se paguei? Sem o operário, sem o artesão, sem o artista estaria mais nu do que Caliban ou Robinson. Se quero me locomover preciso de máquinas que não fabriquei e que não dirijo. Sou obrigado a falar uma língua que não inventei; e os que vieram antes de mim me impõem sem que eu o saiba, seus gostos, seus sentimentos, seus preconceitos.

   Ao desmontar o Eu peça por peça encontro sempre pedaços e fragmentos que vêm de fora - em cada um poderia colocar um rótulo de origem. Êste é da minha mãe, êste do meu primeiro amigo, êste de Emerson, êste de Rousseau ou de Stirner. Se levo a fundo o inventário das apropriações o Eu torna-se uma forma vazia, uma palavra sem conteúdo próprio.

   Pertenço a uma classe, a um povo, a uma raça - não consigo, por mais que faça, evadir-me dos confins que não tracei. Tôda idéia é um eco; todo ato um plágio. Posso afastar a presença dos homens mas grande parte dêles continua vivendo, invisível, em minha solidão.

   Se tenho empregados devo suportá-los e obedecer-lhes; se tenho amigos, tolerá-los e servi-los - e o dinheiro deve ser olhado, cultivado , protegido, defendido Poder equivale a escravidão. Nada, na realidade, me pertence. As poucas alegrias de que desfruto devo-as à inspiração e ao trabalho de homens que já não existem e que nunca vi. Conheço o que recebi mas ignoro o que dei.

   Consegui juntar algumas dúzias de bilhões. Não o teria podido fazer se milhões de homens não tivessem trabalhado para mim, se milhões de homens não tivessem precisado daquilo que eu podia vender, se milhares de homens não tivessem inventado as fórmulas, as máquinas, as regras sôbre as quais se baseia a vida econômica da Terra. Abandonado a mim mesmo teria sido um selvagem, comedor de raízes e de cães mortos.

   Onde está, então, o núcleo profundo e autônomo do qual ninguém mais participa, por ninguém mais gerado, e que eu possa verdadeiramente chamar meu? Sou, na realidade, um coágulo de dívidas, a molécula escrava de um corpo gigantesco? E a única coisa que acreditamos realmente nossa - o Eu - é, talvez, como todo o resto, um simples reflexo, uma alucinação do orgulho?

É isto, era isto, isso tudo. É que nada é meu. É de Giovanni Papini.

DdAB

P.S. Mantive a grafia do livro original. Aqueles "sôbre", "êsse", "idéia" são daquele tempo que atribuí a 1970. Bons tempos, péssimos tempos: nem sabíamos que a ditadura militar seria tão longa.

23 dezembro, 2021

Investigação sobre o Conceito de Equilíbrio em Marx (Parte I)

Frases com mais de quatro linhas são proibidas, não se equilibram... Esta pérola da redação de TCCs não é de minha autoria, embora conste do livro de "métodos e técnicas" que co-organizei com Brena Fernandez. E tem mais: no livrinho sobre como fazer teses, Umberto Eco diz que parágrafos não devem ser muito grandes, a fim de "arejar o texto". Sabidos os integrantes da humanidade que nos levam a entender que estas regras não são estéreis. Seja como for, vou citar um material que meu ex-aluno e ex-orientando André Luis Contri selecionou para mim, há muitos anos.

A história é que ele assistiu a um curso que dei na graduação da UFRGS basicamente sobre economia marxista. E ao curso seguiu-se, com minha participação e incentivo, um inevitável seminário com os alunos interessados, uma boa meia-dúzia, incluindo Contri. Anos depois, conversando amigavelmente com ele, falei que Marx era equilibrista, mas não lembrava em que parte do volume 1 d'O Capital me baseei. Mas jurava que o pinta era mesmo equilibrista. 

Então agora decidi mexer naquele texto de André Contri (na verdade, citações e observações bibliográficas). Mas fui à internet para não digitar o paragrafão das páginas 246-7 do livro cujo link dou lá mais prá baixo. Contrariamete a meu hábito, o texto de Marx vai todo sem destaque, exceto o trecho citado por Contri, que vai em cor deste tipo e o negrito é dele mesmo. Marx não tinha nem coloridos nem negritados nesta parte.

[...]

But, in spite of the numerous analogies and links connecting them, division of labour in the interior of a society, and that in the interior of a workshop, differ not only in degree, but also in kind. The analogy appears most indisputable where there is an invisible bond uniting the various branches of trade. For instance the cattle-breeder produces hides, the tanner makes the hides into leather, and the shoemaker, the leather into boots. Here the thing produced by each of them is but a step towards the final form, which is the product of all their labours combined. There are, besides, all the various industries that supply the cattle-breeder, the tanner, and the shoemaker with the means of production. Now it is quite possible to imagine, with Adam Smith, that the difference between the above social division of labour, and the division in manufacture, is merely subjective, exists merely for the observer, who, in a manufacture, can see with one glance, all the numerous operations being performed on one spot, while in the instance given above, the spreading out of the work over great areas, and the great number of people employed in each branch of labour, obscure the connexion. But what is it that forms the bond between the independent labours of the cattle-breeder, the tanner, and the shoemaker? It is the fact that their respective products are commodities. What, on the other hand, characterises division of labour in manufactures? The fact that the detail labourer produces no commodities. It is only the common product of all the detail labourers that becomes a commodity. Division of labour in society is brought about by the purchase and sale of the products of different branches of industry, while the connexion between the detail operations in a workshop, is due to the sale of the labour-power of several workmen to one capitalist, who applies it as combined labour-power. The division of labour in the workshop implies concentration of the means of production in the hands of one capitalist; the division of labour in society implies their dispersion among many independent producers of commodities. While within the workshop, the iron law of proportionality subjects definite numbers of workmen to definite functions, in the society outside the workshop, chance and caprice have full play in distributing the producers and their means of production among the various branches of industry. The different spheres of production, it is true, constantly tend to an equilibrium: for, on the one hand, while each producer of a commodity is bound to produce a usevalue, to satisfy a particular social want, and while the extent of these wants differs quantitatively, still there exists an inner relation which settles their proportions into a regular system, and that system one of spontaneous growth; and, on the other hand, the law of the value of commodities ultimately determines how much of its disposable working-time society can expend on each particular class of commodities. But this constant tendency to equilibrium, of the various spheres of production, is exercised, only in the shape of a reaction against the constant upsetting of this equilibrium. The a priori system on which the division of labour, within the workshop, is regularly carried out, becomes in the division of labour within the society, an a posteriori, natureimposed necessity, controlling the lawless caprice of the producers, and perceptible in the barometrical fluctuations of the market-prices. Division of labour within the workshop implies the undisputed authority of the capitalist over men, that are but parts of a mechanism that belongs to him. The division of labour within the society brings into contact independent commodityproducers, who acknowledge no other authority but that of competition, of the coercion exerted by the pressure of their mutual interests; just as in the animal kingdom, the bellum omnium contra omnes [war of all against all – Hobbes] more or less preserves the conditions of existence of every species. The same bourgeois mind which praises division of labour in the workshop, lifelong annexation of the labourer to a partial operation, and his complete subjection to capital, as being an organisation of labour that increases its productiveness - that same bourgeois mind denounces with equal vigour every conscious attempt to socially control and regulate the process of production, as an inroad upon such sacred things as the rights of property, freedom and unrestricted play for the bent of the individual capitalist. It is very characteristic that the enthusiastic apologists of the factory system have nothing more damning to urge against a general organisation of the labour of society, than that it would turn all society into one immense factory. 

Trecho colorido é o que foi marcado por André Country. O negrito também é dele. Eu selecionei o parágrafo monstro retirado daqui. Ele dá ainda as traduções brasileiras de duas obras, mas preferi traduzir pelo Google Tradutor e revisar o trecho colorido no paragrafão: 

As diferentes esferas de produção, é verdade, tendem constantemente para um equilíbrio: pois, por um lado, enquanto cada produtor de uma mercadoria é obrigado a produzir um valor de uso, para satisfazer uma necessidade social particular, e enquanto a extensão desses desejos difere quantitativamente, ainda existe uma relação interna que estabelece suas proporções em um sistema regular, e um sistema de crescimento espontâneo; e, por outro lado, a lei do valor das mercadorias determina, em última instância, quanto de seu tempo de trabalho disponível pode ser gasto com cada classe particular de mercadorias. Mas esta tendência constante ao equilíbrio, das várias esferas da produção, é exercida, apenas na forma de uma reação contra a constante perturbação desse equilíbrio.

Assumo eu daqui em diante. Entendo que se a perturbação do equilíbrio é contínua, obviamente também sua recomposição também é. Houve construção e, como se diz modernamente, desconstrução do equilíbrio num processo interminável de busca e rejeição: desequilíbrio gera equilíbrio que gera desequilíbrio que gera equilíbrio, até o fim dos tempos capitalistas.

DdAB

11 dezembro, 2021

Os Milagres da Mão

 



Esta postagem está levando jeito de enturmada nas magias do Natal. Já na linha das promessas de amor e paz para aquele momento dos brindes familiares, falando-se em juras de amor e calando-se nos propósitos de vingança. Ora, não foi George J. Stigler que falou que a família é aquele combinado de amor, conveniência e frustração? Foi.

E também foi que sempre ouvi falar no escritor italiano Giovanni Papini* e especificamente o livro "Gog". Pois na pandemia cheguei a ele, for the first time, e estou lendo-o. Já li o terço (epa, novamente insinuações de reza e votos de amor...) inicial, que muito me fez pensar. Trata-se de pseudo-crônicas/contos cheios de citações de cidades, situações, livros, autores, pintores, um mundo cheio de mundos. 

Pela aritmética, lendo uma página de cada vez, cheguei à 47. Nela, Papini fala, pela boca de Gog, em "Thormon, o soteriólogo". E o narrador (Gog) explica que soteriólogo é o pinta que estuda "a ciência das libertações". A propósito, o amigo de um amigo disse que tinha apenas duas libertações em vista para 2022: "da caña e da muié". Nada comentei, pois estava ocupado em baixar o nível de meu próprio copo da primeira.

Vencida a página 47, aquele rigor matemático levou-me à página 48, que cito verbatim:

[..] Muitos de nossos semelhantes sofrem a escravidão da fome e do trabalho, mas pelo menos são homens. Podem falar, amar e sobretudo possuem as mãos, estes instrumentos milagrosos que nenhuma máquina conseguirá suplantar.

Primeiro: amei ouvi-lo falar em "escravidão [...] do trabalho". Quem me lê amiudadamente sabe que odeio a expressão "gerar emprego e renda". Entendo que a sociedade gosta de renda e de lazer. E que o capitalismo dá renda e desemprego tecnológico. Esta ociosidade de homens, mas não de máquinas, deveria servir para reduzir a jornada de  trabalho da moçada. Mas tem mais.

Sua definição de "mãos" é das antigas. O livro é de 1931 e já se sabia da existência e possibilidade da produção de máquinas de calcular analógicas. No outro dia, na festa de aniversário de um amigo, a mãe dele levou para a mesa um bolo decorado com tantos confeitos que achei-me satisfeito ao olhar, mas rococós e outras florzinhas e rosáceas e o amigo exclamou: "estas florzinhas e rosáceas imitam a mão humana de forma inimitável." Ou seja, instrumento 1 x 0 mão.

Sou do time daqueles que consideram que, no futuro, todas as necessidades vitais do ser humano serão atendidas por máquinas. E hoje temos clara noção do que isto quex dizer, isto é, aquele x cujas demais letras e ele x foram sublinhados em vermelho, quer dizer, foi corrigido pelo cérebro da máquina que me permite escrever o que agora digito.

DdAB

* Não confundir com Giovanni Arpini, o cara do livro que referi aqui

P.S. Avancei mais um tanto no livro de Giovanni Papini, chegando a um capítulo intitulado "Visita a Lênin". Achei uma vergonha, uma irresponsabilidade apenas compartilhada por intelectuais de direita sem noção. Não tivesse Papini mudado do materialismo para o idealismo e, politicamente, chegando a apoiar o fascismo, eu até diria que aquilo era uma crítica sibilina aos detratores de Lênin.

05 dezembro, 2021

Um Adendo Totalmente Filosófico

 


Sempre que vou falar em filosofia, já começo avisando que, embora seja um Philosophy Doctor, tenho apenas conhecimentos de nível introdutório do tema. Talvez em breve faça exame (auto-teste) para ser promovido ao nível intermediário, pois já contei mais de 100 livros emprestados (e não devolvidos...), presenteados, comprados ou roubados. Quando chegar à leitura do milésimo (que ainda vou tomar emprestado, presenteado, comprado ou roubado, aí vou passar a declarar-me um doutor em introdução à filosofia. A prova que o tema carrega o maior interesse de minha parte é esta postagem que se alcança ao clicar aqui.

No link que deixei ali, tá na cara que estamos falando da Stanford Encyclopedia of Philosophy.

Aqui temos 52 entradas em que se dividem os verbetes (verbetões, na verdade) da enciclopédia que acabo de nominar. Ler tudo isso estará dando certamente o conhecimento de um curso de introdução à filosofia de caráter avançado:

17TH CENTURY PHILOSOPHY

18TH CENTURY PHILOSOPHY

19TH CENTURY PHILOSOPHY

20TH CENTURY PHILOSOPHY

AESTHETICS

AFRICAN AND AFRICAN-AMERICAN PHILOSOPHY

ANCIENT PHILOSOPHY

APPLIED ETHICS

ARABIC AND ISLAMIC PHILOSOPHY

ARISTOTLE

BIOMEDICAL ETHICS

CHINESE PHILOSOPHY

EPISTEMOLOGY

ETHICS

ETHICS AND INFORMATION TECHNOLOGY

FEMINISM

FORMAL EPISTEMOLOGY

HISTORY OF ETHICS

HISTORY OF LOGIC

INDIAN AND TIBETAN PHILOSOPHY

JAPANESE PHILOSOPHY

JUDAIC PHILOSOPHY

KANT

KOREAN PHILOSOPHY

LATIN AMERICAN AND IBERIAN PHILOSOPHY

LOGIC

LOGIC AND LANGUAGE

LOGIC, COMPUTATION, AND AGENCY

MATHEMATICAL LOGIC

MEDIEVAL PHILOSOPHY

METAETHICS

METAPHYSICS

NORMATIVE ETHICS

PHILOSOPHICAL LOGIC

PHILOSOPHY OF ACTION

PHILOSOPHY OF BIOLOGY

PHILOSOPHY OF COGNITIVE SCIENCE

PHILOSOPHY OF LANGUAGE

PHILOSOPHY OF LAW

PHILOSOPHY OF LOGIC

PHILOSOPHY OF MATHEMATICS

PHILOSOPHY OF MIND

PHILOSOPHY OF PHYSICS

PHILOSOPHY OF RELIGION

PHILOSOPHY OF SCIENCE

PHILOSOPHY OF SOCIAL SCIENCE

PLATO

QUANTUM MECHANICS

RENAISSANCE AND 16TH CENTURY PHILOSOPHY

SOCIAL AND POLITICAL PHILOSOPHY

SPACETIME

WOMEN IN THE HISTORY OF PHILOSOPHY


Quando eu terminar de ler o 52o. item, não necessariamente na ordem alfabética, avisarei aqui mesmo.

DdAB