21 novembro, 2017

Consciência Negra: eu também


Querido diário:

Quando cheguei em Matto Grosso, com oito anos de idade, estudava na hoje chamada segunda série do ensino fundamental. E tinha um colega, vários colegas, sobressaindo-se, como disse, um colega que era negro. Seu nome era Valdomiro e as memórias aparecem como sendo ele um de meus amigos mais queridos. Depois disso, ao lado dele, depois dele, não lembro se havia mais negros ou se eu é que comecei a diluí-los, a branqueá-los. Na faculdade em que estudei economia, havia poucos negros. Que tenham sido dois ou três, se não exagero. No mestrado da UFRGS, não tive colegas negros, nenhum unzinho. Tanto é que, num daqueles espaços do cantinho do quadro negro, em uma aula ou de microeconomia ou de economia internacional, nosso professor David Garlow, americano bolsista da Fundação Ford (era?) falava das críticas que ouvia partindo de brasileiros sobre o racismo americano. Estufou o peito e disse não ter conhecido nenhum negro no seu período aqui no pós-graduação. Aquilo marcou-me: nenhum negro? Poucos na formatura da graduação, poucos, se tantos, nos cursos de ensino fundamental e médio. Poucos colegas de mesma hierarquia no banco, na repartição, nenhuma namorada negra, nenhum cunhado negro.

Sempre soube que vivo num enclave de "classe média" dentro de uma sociedade desabotinadamente desigual. Mas acrescentei a esta perda de inocência nova constatação. Entendi que estou a viver num enclave formado por brancos dentro de um mundo habitado por negros. Negros marginais a esse enclave, com poucos, parcos acessos. Aí vieram as quotas raciais. Nem pude pensar a respeito antes de aderir e aprová-las entusiasticamente, pois o prof. Adalmir Marquetti já foi cobrando sobre o número de negros, nossos colegas a lecionar no mestrado em economia em que trabalhávamos, ele e eu. Resposta: conjunto vazio. Achei que as quotas (infelizmente, não foram invenção brasileira, parece que aqui só se inventam novas maneiras de roubar, desde o cidadão eleitor ao cidadão econômico) iriam miscigenar os ambientes: na sala de aula, no restaurante, no avião a jato, na fila do SUS. Tem gente que acha que um programa desta natureza deve deixar bem claro o período de vigência do benefício. Eu também acho, só que considero desnecessário colocar na lei que a política de quotas não pode ser revogada por 1.000 anos.

Então, pois então. No caderno doc do jornal Zero Hora, página 21, dias 18 e 19 de novembro corrente, li um artigo de nova escritora. Júlia Dantas escreveu um artigo intitulado "O Privilégio e a Cor da Pele". Transcrevo frases e um final apoteótico:

[...]
   Não posso imaginar o que é ser vítima de racismo nem o quanto fere uma expressão que reduz um ser humano a sua pele. Não escreveria sobre experiências que não tive, mas posso falar sobre o que é estar do outro lado da equação, o lado que pode se dar ao luxo de não pensar em racismo. É muito fácil ser branco e ainda mais fácil não pensar nisso.
[...] eu também já fui das pessoas que 'não veem cor'. Pensava que bastava enxergar e me relacionar de forma igual com qualquer um para fazer a minha parte na busca pela igualdade racial. Foi apenas na faculdade que entendi que 'não ver cor' também é um privilégio.
   Porque o mundo sempre vê cor. Então os brancos que se importam -é certo que há aqueles que não dão a mínima- precisam aprender a enxergar. Temos que olhar quem é servido e quem serve quando entramos numa loja, um restaurante, um hotel; temos que olhar quem limpa e quem estuda dentro das universidades; temos que olhar quem nos filmes é protagonista e quem é melhor amigo; temos que olhar quem aparece como padrão de beleza e quem aparece como beleza exótica. E, para além de ver a injustiça sobre os negros, temos que aprender a olhar para nossos privilégios.
[...]
Então, antes de ir às redes sociais para dizer que 'nem todos os brancos são racistas', seria mais proveitoso tomar um tempo para pensar, como honestidade, em como todos os brancos são beneficiados por um país racista, queiram ou não.

E teve o Bispo Tutu que veio ao país da "democracia racial" e não demorou a ver o que a sra/srta. Júlia falou: só tinha negro de ascensorista, de garçom, de faxineiro, de manobrista. Pois eu também acho que, desta vez, consegui elaborar minha consciência do preconceito racial neste espaço em que circulo. E digo mais: com um baita dum "mutatis mutandis", tá valendo para pobres e ricos: como um branco de minha extração e inserção social beneficia-se de um país que trata pobre branco como se fosse... negro.

DdAB
P.S. Bem sei que a sociedade igualitária não é panaceia para todas as doenças, óbvio. Mas é evidente que a doença que me impede de ver que os pobres, a ralé, lá no dizer de Jessé Souza, é tão letal quanto a que me faz um privilegiado em face dos negros. Igualdade de oportunidades é a chave que só pode ser acionada com um universo de medidas igualitaristas: educação, saúde, moradia, esgoto, para todos.
P.S.S. a imagem lá de cima, que gracinha!, veio-me ao pedir o macartiano "ebony and ivory".

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