Querido diário:
Pois então. Desde as 5h30 da manhã, pisando solo brasileiro em São Paulo. A partir das 10h00, solo porto-alegrense. Em outras palavras, dei adeus à Catalunha ontem mesmo. E saí lembrando de coisas do Brasil. Lá pensei montes no Brasil, coisas que li, outras que lerei e terceiras que menti que li e quartas que mentirei que lerei. Uma das que parece que realmente li nos últimos anos é "O Resto é Silêncio", de Érico Veríssimo e de 1943. Não tenho o livro à mão agora, mas preciso postar neste solene instante. Então seria: Tonho, o escritor autobiográfico (???), sua família, destacando-se o filho, estudante de medicina, que usava chapéu, como todo mundo de seu tempo. Não lembro do nome do filho, chamemo-lo de Vasco.
Acabo de olhar a wikipedia, fala em Tônio Santiago, chamemo-lo Tonho mesmo, não tem o nome dos filhos, da esposa. Érico viu um corpo caindo de um edifício na Rua da Praia, em frente à Praça da Alfândega. Tônio Santiago também iria vê-lo. E tem outras testemunhas, cabendo-me destacar o "vendedor de jornais, 'Chicharro'". E é dele que quero falar. Tudo vai sendo falado se a memória não falha, claro, pois -se falha- o assunto é outro, que não sei qual seria. Ou seja, lembro que havia esse menino jornaleiro que caiu nas boas graças do estudante de medicina que já foi logo diagnosticando-lhe tuberculose, algo assim.
Esse guri amaldiçoado, fumante e ladrão, que levou pancada de amigos, inimigos, pai, mãe, irmãos, vizinhos, condutores de bonde, cobradores da mesma viatura, do mundo inteiro, só andava de carona, pingente de bonde, até que caiu e -pimba!- morreu. Ainda em vida, entendia sua mala suerte e, filosófico, exclamava: "Me canharam". Queria dizer: Eles 1 x 0 Eu, lá ele, o Chicharro, se é que era ele, se é que era este seu nome.
Impossível não nos comovermos com triste sina desse menino, a pobreza, a miséria. Ao mesmo tempo, fiquei imaginando aquela turma contra o Programa Bolsa Família, aquela outra que nem sabe que existe uma lei federal garantindo uma renda básica de cidadania a todos os brasileiros. Fiquei imaginando que eles nunca devem ter tido contato com este "O Resto é Silêncio". Nem com "Vidas Secas" e a batida em retirada de Fabiano, Siá Vitória, os dois meninos e Baleia. E que dizer de "Morte e Vida Severina", com seu Severino Retirante cantando e chorando (na verdade, José, o mestre carpina)? Há corações tão empedernidos que nem a tragédia os leva a simpatizar com os menos aquinhoados.
Em Barcelona, já devidamente invadida por trabalhadores informais, de rua, vendendo bolsas, tênis, relógios e centenas de outras mercadorias, dispostas em, digamos, toalhas contendo cordas em suas quatro pontas, permitindo o recolhimento rápido à aproximação de policiais suspeitos, vi esse mundo precário, mundo destituído de trabalho decente...
E, claro, lembrei do Brasil, lembrei novamente, lembrei, lembrei. Do Chicharro, do Fabiano, do Severino, de gente que vejo nas ruas daqui. E pensei em duas fraudes. A primeira foi-me aplicada ("me canharam") por minha própria família, por seus amigos, amigos dos amigos, pelos professores, pelos livros de economia brasileira. Mentiram-me que o Brasil é o país do futuro. A segunda fraude foi aplicada por mim mesmo (agora "eu canhando eles") a minha própria família, a seus amigos, a amigos dos amigos, aos colegas professores, aos alunos, centenas de alunos que tive durante minha carreira. Eu também lhes menti que o Brasil é o país do futuro. Vendo aquela amostra europeia, vendo o censo brasileiro, faço como as ciganas do Egito: prevejo a manutenção do status quo. Acho que tão cedo não muda nada, nem lá nem aqui.
DdAB
P.S. Parece que "canhar" até pode existir no VOLP, mas não com o sentido que lhe dá Érico Veríssimo.
P.S.S. Para lembrar meus tempos de ilusão, olha aqui o que escrevi como último parágrafo de minha tese de doutorado. Vinha embalado na viagem do carpinteiro José e do bebê anunciado:
P.S.S.S. Lê-se mais sobre esta encrenca da tese aqui.
P.S.S.S.S. Butxaca, em catalão, quer dizer "bolso": bolsos vazios fazem maus cidadãos, não é mesmo? Pois cá entre nós os tais vendedores ambulantes barcelonenses, o Chicharro, essa turma toda detentora de postos de trabalho precário não podem ser declarados bons cidadãos, não é mesmo?
P.S.S.S.S.S.: Mas não posso terminar esta postagem sem retificar o tom pessimista de tudo. Estamos mesmo condenados ao subdesenvolvimento eterno? Eu tenderia a dizer que não, não estamos, não. Também já falei por aqui em "tunelagem". Quer dizer, uma conjunção desfavorável pode sair-se com uma solução favorável. Milagre? Não, just non-zero probability. E daí? Governo mundial, claro, um governo promotor da sociedade igualitária e não um governo que referende a desigualdade e -como tal- baixe caceta nos descontentes.
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