18 outubro, 2022

Silvana e Chico

 


Silvana Moura, a moura, é amiga recente, amiga virtual, realmente casada com Marino Boeira, também recente amigo virtual. Ambos a cada dia me surpreendem com tiradas e histórias. Li de Marino dois livros:

BOEIRA, Marino (2021) Aconteceu em... Porto Alegre: Digrapho. [Memórias de viagens]

que me foi dado de presente por Silvana, a moura. E

BOEIRA, Marino (2021) Brizola e eu. Porto Alegre: Kotter. [Romance histórico]

Pois então. Muito aprendi com ambos e sigo aprendendo não só da produção própria, mas também das citas a terceiros. E hoje falo de uma delas, dela, da Silvana, a moura. Silvana cita um amigo de Facebook (https://www.facebook.com/josetiaporanga) que cita uma crônica, linda crônica de Chico Buarque. Vou reproduzi-la in fine, mas agora cito uma palavra: "solaz" que me levou a viajar e não demorou para eu também cair nos encantos de um dicionário: meu amado Webster na edição de 1975, cuja ortografia mantém-se absolutamente atualizada, ao contrário da brasileira, que já mudara em 1943 e 1971, voltou a mudar em 2009. Então teriam que ter feito, se fosse o ridículo caso, três grandes reedições do Webster original. Se economês posso dizer: é queimar capital fixo.

Ao ler "solaz",  palavra que nunca ouvira (assim como outras tantas da crônica buarquiana), lembrei da palavra "solace" em inglês. No Webster, página 1725, cibsta que a origem é do Francês Antigo, que vem do latim como solatium, sendo o verbo visto como to comfort. 1. to cheer in grief or under calamity; to comfort, to relieve in affliction, to console, 2. to allay, to assuage or lessen, as to solace grief. Como substantivo, temos 1. an easing of grief, lonileness, discomfort, etc. 2. somethng that eases relief; comfort, consolation; relief. 

E que diz o dicio.com.br sobre "solaz"? Diz mais ou menos a mesma coisa que em inglês: substantivo masculino. Distração; recreio; alegria. Ação ou efeito de consolar; conforto. Adjetivo Consolador.Etimologia (origem da palavra solaz). Do latim solatium.

E que dizer de Chico Buarque? É talvez o maior gênio da língua brasileira de todos os tempos. Até Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto louvavam-lhe a genialidade. Eu mesmo, ao ler os romances e pensar nas letras das canções, pensei que ele já estava credenciado a receber o prêmio Nobel de literatura. Quando Bob Dylan recebeu, voltei a pensar: agora mesmo é que, num futuro não muito distante, vão consagrá-lo. Vejamos, pois mal se foram seis anos do menestrel americano.

E que dizer da turma do contra? Lembro de um caso: alguém reclamou que aquela rima entre "mais um copo" e "alegre, ma non troppo" era falta de vocabulário. Aqui está a resposta sobre o tamanho do vocabulário do rapaz. 

Veja a crônica publicada por Silvana. Mas antes pense que a solução ótima para o encaminhamento dos problemas de democracia e da desigualdade brasileira será votar 13 no dia 30 de outubro para presidente da república.

DdAB
P.S. A imagem é da família Geisel. Ao saber que a filha (filho faleceu em 1957) de Geisel amava suas canções, Chico escreveu aquela do "você não gosta de mim, mas sua filha gosta" (aqui).


OS DICIONÁRIOS DE MEU PAI
Francisco Buarque de Hollanda
Pouco antes de morrer, meu pai me chamou ao escritório e me entregou um livro de capa preta que eu nunca havia visto. Era o dicionário analógico de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Ficava quase escondido, perto dos cinco grandes volumes do dicionário Caldas Aulete, entre outros livros de consulta que papai mantinha ao alcance da mão numa estante giratória. Isso pode te servir, foi mais ou menos o que ele então me disse, no seu falar meio grunhido. Era como se ele, cansado, me passasse um bastão que de alguma forma eu deveria levar adiante. E por um bom tempo aquele livro me ajudou no acabamento de romances e letras de canções, sem falar das horas em que eu o folheava à toa; o amor aos dicionários, para o sérvio Milorad Pavic, autor de romances-enciclopédias, é um traço infantil no caráter de um homem adulto. Palavra puxa palavra, e escarafunchar o dicionário analógico foi virando para mim um passatempo (desenfado, espairecimento, entretém, solaz, recreio, filistria).
O resultado é que o livro, herdado já em estado precário, começou a se esfarelar nos meus dedos. Encostei-o na estante das relíquias ao descobrir, num sebo atrás da Sala Cecília Meireles, o mesmo dicionário em encadernação de percalina. Por dentro estava em boas condições, apesar de algumas manchas amareladas, e de trazer na folha de rosto a palavra anauê, escrita à caneta-tinteiro.
Com esse livro escrevi novas canções e romances, decifrei enigmas, fechei muitas palavras cruzadas. E ao vê-lo dar sinais de fadiga, saí de sebo em sebo pelo Rio de Janeiro para me garantir um dicionário analógico de reserva. Encontrei dois, mas não me dei por satisfeito, fiquei viciado no negócio. Dei de vasculhar livrarias país afora, só em São Paulo adquiri meia dúzia de exemplares, e ainda arrematei o último à venda na Amazon.com antes que algum aventureiro o fizesse. Eu já imaginava deter o monopólio (açambarcamento, exclusividade, hegemonia, senhorio, império) de dicionários analógicos da língua portuguesa, não fosse pelo senhor João Ubaldo Ribeiro, que ao que me consta também tem um, quiçá carcomido pelas traças (brocas, carunchos, gusanos, cupins, térmitas, cáries, lagartas-rosadas, gafanhotos, bichos-carpinteiros).
A horas mortas, eu corria os olhos pela minha prateleira repleta de livros gêmeos, escolhia um a esmo e o abria a bel-prazer. Então anotava num moleskine as palavras mais preciosas, a fim de esmerar o vocabulário com que eu embasbacaria as moças e esmagaria meus rivais.
Hoje sou surpreendido pelo anúncio desta nova edição do dicionário analógico de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Sinto como se invadissem minha propriedade, revirassem meus baús, espalhassem aos ventos meu tesouro. Trata-se para mim de uma terrível (funesta, nefasta, macabra, atroz, abominável, dilacerante, miseranda) notícia.

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