Nesta postagem lembro meus dotes de leitor, muito antigos, já. E de comentador. Sobre minha condição de leitor, vou citar quatro testemunhos. O primeiro deles, e que motivou esta postagem, é
KAPUSCINSKI, Ryszard (1994) Imperium. São Paulo: Companhia das Letras.
Dele farei três citações e tecerei comentários, o terceiro destes preparando-nos para maiores associações, quando vou citar, do jeito que posso, Curzio Malaparte (seguindo Kapuscinski) e Umberto Eco, seguindo minha memória.
Então, Kapuscinski na página 121 dá algumas dicas sobre instituições, centrando sua reflexão no colapso da União Soviética:
Tudo era absolutamente subordinado [ao estado monopolista soviético], os outros interesses eram combatidos e eliminados de forma radical. E eis que o Estado monopolista desaparece de repente, se desagrega de modo irreversível. Imediatamente centenas de milhares de interesses econômicos diversos, maiores e menores, de grupos privados e nacionais erguem a cabeça, identificam-se, definem-se e reivindicam com firmeza seus direitos negados há tanto tempo. Evidentemente países democráticos também convivem com milhões de interesses distintos, mas suas contradições e conflitos são resolvidos ou atenuados por meio de experientes e experimentadas instituições públicas e estatais. Aqui, no entanto, tais instituições não existem (e tão logo não existirão). Como então resolver os naturais conflitos de interesses, já que não se pode mais apelar para o chicote nem para a deportação?
Claro que fiquei pensando no império brasileiro contemporâneo. A incapacidade do sistema judiciário (do policial de rua (rua???) ao juiz de 'salário' milionário é patente quando vemos tantas situações de injustiça. Não falo apenas das liberdades pessoais, do morador da periferia, mas de todos, fazendo-se observar especialmente nos pequenos municípios. A palavra chave é a impunidade. E "tão logo não existirão" soluções para este problema. Se houvesse punição ao crime, os primeiros a serem abalados seriam precisamente os poderosos: judiciário e legislativo. E, naturalmente, os altos escalões também do executivo. Mas não fiquemos adstritos à esfera governamental, pois também no chamado setor empresarial há escalafobéticas fraudes. Concluo dizendo que também nas organizações não-governamentais a impunidade é a mãe do crime.
Mudo de assunto e falo da dupla nacionalidade, inspirando-me da página 128 deste livro de Kapuscinski. O autor está conversando com uma "mulher", cujo nome não saberemos, e que já lhe identificou um estado febril ao chegar em Baku, capital do Azerbaijão, localizada à beira do Mar (Lago) Cáspio. Imagino que a conversação está ocorrendo em russo, quando "a mulher" volta a falar:
Ela pergunta qual a minha nacionalidade.
No mundo todo, os camponeses iniciam uma conversa ponderando sobr a colheit, e os ingleses, trocando ideias sobre o tempo. Já no Império [isto é, na URSS], o primeiro passo para travar conhecimento é a apuração recíproca da nacionaliddade de cada um. Disso irá depender muita coisa.
Na maioria dos casos, os critérios são claros e legíveis. Este é russo, este cazaque, este tártaro, este uzbeque. Mas existe uma porcentagem grande de cidadãos desse país para os quais a forma de se identificarem é um problema sério, ou seja, não se sentem parte de nenhum povo. Eis o exemplo do meu amigo, Ruslan, engenheiro de Tcheliabinsk. O avô era russo, a avó georgiana. O filho do casal e pai de Ruslan, decidiu ser georgiano, mais tarde casou-se com uma tártara. Por amor à mãe, Ruslan se considera tártaro. No empo de estudante em Omks, Ruslan casou-se com uma colega do Uzbequistão. Têm agora um filho, Mutar. Qual a nacionalidade de Mutar?
Às vezes estas árvores genealógicas são ainda mais intricadas e complicadas, de modo que muitos não se sentem ligados a nenhuma nacionalidade - e o homo sovieticus. Ele não é fruto de um processo de conscientização ou desejo de expressar de uma determinada postura. Simplesmente, sua única identidade social é a cidadania do Estado soviético. Com a queda do Estado soviético, estas pessoas estão à procura de novas formas de identidade (isto é, aqueles que se preocupam com isto).
Já falei algumas vezes no lar, no bar, em outro lugar, que lamento contar apenas com duas nacionalidades neste planeta que por enquanto tem 200 países. Queria ser cidadão do mundo, com essas 198 que ainda me faltam. Mas penso na Comunidade Europeia, tão tristemente abalada com a saída do Reino Unido, ele que já não se integrara à moeda comum. Dizem que são conservadores. Tem gente que pensa diferente, mas -da mesma forma que o desafortunado Brasil, angariando 57 milhões de votos para um projeto escalafobético- o que interessa mesmo, sob o ponto de vista democrático, é qual coalizão partidária faz a maioria para controlar o executivo e, naturalmente, o congresso. Claro que um cidadão europeu pode bem ter um avô marroquino, a avó indonésia, outra avó boliviana e um avô final do quarteto avoengo também estrangeiro, digamos, de Jaguary... E ainda mais, o pai neo-zelandês e a mãe, escocesa. Então por que este cidadão não pode ter essas seis nacionalidades? Mesmo no Brasil, depois da constituição da república de 1988, ele teria direito a apenas aquela da Nova Zelândia e à da Escócia, o que o credenciaria à cidadania europeia.
Claro que, na finada União Soviética, o chamado "problema das nacionalidades", acomodado exemplarmente por José Estaline, torna-se mais momentoso, pois são dezenas de repúblicas e centenas ou até milhares de idiomas. Seja como for, quero minhas 198 faltantes para aquele mundo em que
Imagine there's no countries
It isn't hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion, too
E aí a religião já entrou de barato... Aliás, logicamente falando, se não houver "countries", tampouco haverá nacionalidades. E todo dinheiro que hoje se gasta na produção e consumo (e uso!) de armamentos poderá ser dedicado à fabricação e desenfreado consumo de bebida! Pois bem. Vamos adiante. Vem mais uma citação de Ryszard Kapuscinski, nosso polaco preferido. Agora vamos ao mundo literário. Citação de citação de citação: Kapuscinski citando o xará e "historiador americano Richard Pipes" que cita o italiano Curzio Malaparte que evocou-me Umberto Eco. Vejamos. De Pipes não li nada, a não ser fumar cachimbo há muitos anos (hehehe). De Curzio Malaparte, li dois romances, até que poderia ser naquele tempo em que andei fumando cachimbo... Se os livros foram editados no Brasil, como o foram, em 1966, devo tê-los lido não adiante de, digamos, 1970. Ambos foram editados pela Civilização Brasileira, ambos com capas exemplares de Eugênio Hirsch, um genio da arte gráfica. O primeiro foi "A pele" (1949) e o outro foi "Kaputt" (1944), que até imagino terá inspirado Moacyr Scliar e outros a escrever uma coletânea de título "Pega pra Kaputt", na linha daquele "pega pra capar", das criações caseiras de suínos dos tempos ainda mais longínquos que os referidos como leituras e cachimbadas talvez inspiradas em Mário da Silva Brito.
Pelo que andei lendo na Wikipedia, Malaparte foi fascista e comunista e católico, uma vez a cada tempo e levando cadeia correspondentemente aos humores da época, nosso conhecido Zeitgeist. Lá na Wikipedia infiro que o texto que já vou citar vem do livro A revolução russa, de Malaparte (e não de Pipes, ou este fez outro livro com o mesmo nome). Mas não esqueçamos que estamos citando Pipes que fala em Malaparte:
Curzio Malaparte descreve a desorientação e o espanto do escritor inglês Israel Zangvill em visita à Itália no momento em que os fascistas tomavam o poder. Surpreso com a falta de barricadas, lutas de rua e cadáveres nas calçadas, Zangvill não queria acreditar estar testemunhando uma revolução. Na verdade, como afirma Malaparte, o traço característico da revolução contemporânea consiste na ocupação de pontos estratégicos, de forma sorrateira e sem derramamento de sangue, por grupos paramilitares bem treinado. O ataque é conduzido com tal precisão cirúrgica que a sociedade nem se dá conta do que acontece a seu redor.
Claro que lembrei de Bolsonaro, seus 57 milhões de votos com todas aquelas fraudes e farsas que acompanharam as eleições de 2018, destacando-se o juiz Sérgio Moro, o velho Antônio Palocci e muita outra gente de estirpe golpista. E também lembrei daquela eleição em que foi eleito George Bush Fo. Parece que, graças ao fato de seu irmão ser governador da Flórida e ter enviesado as eleições, Al Gore poderia ter-se rebelado e anulado a eleição ou conseguindo nova rodada, mas ele nada fez. Entendi na época que ele preferiu ser cordato a ver os Estados Unidos envolvidos numa contenda sobre fundamentos de democracia.
Falta-me falar em Umberto Eco, autor que admiro tanto que pensei em eu próprio adotar o pseudônimo de Humberto Ecco, mas felizmente minha astróloga disse que isso daria azar e fiquei mesmo na minha. Em novembro de 1985, em outras palavras, 35 anos atrás, fiz uma negociação com a profa. Maria Lucrécia Calandro e tornei-me proprietário de
ECO, Umberto (1984) Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Não faz muito tempo que, emocionado, sustentei que o livro "A ideia de justiça" de Amartya Sen teria sido o melhor livro que li em minha existência. Claro que é difícil dizer o primeirão, também o é dizer os 10 melhores, os 100, e assim por diante. O que quero dizer é que essa "Viagem na Irrealidade" é certamente um dos livros que me fez mudar de fase. E agora desejo apenas trazer uma curta passagem que evoquei com aquela viagem em torno de Curzio Malaparte. Vou citar o primeiro parágrafo do capítulo intitulado "Guerrilha Semiológica", localizado na página 165 do livro. No primeiro rodapé, diz-se que o texto foi uma comunicação em um congresso realizado em Nova York em 1967, quando eu ainda fazia vestibular para o curso de arquitetura. Pois vamos ao parágrafo que deve rimar com aquela ideia de que as revoluções modernas prescindem de "barricadas, lutas de rua e cadáveres nas calçadas". Essas revoluções de nosso tempo precisavam apenas de controlar os meios de comunicação social. Hoje em dia, tais meios são importantes, mas talvez, naquela linha de Steve Bannon, devam controlar, como na China, as redes sociais. Ok, ok, tudo menos "barricadas, lutas de rua e cadáveres nas calçadas". O parágrafo de Umberto Eco diz:
Não muito tempo atrás, se quisessem tomar o poder político num país, era suficiente controlar o exército e a polícia. Hoje é somente nos países subdesenvolvidos que os generais fascistas, para dar um golpe de Estado, usam ainda os tanques. Basta que um paíse tenha alcançado um alto nível de industrialização para que o panorama mude completamente: no dia seguinte à queda de Krushev os diretores do Pravda e do Izvestria e das cadeias radiotelevisivas foram substituídos: nenhum movimento do exército. Hoje um país pertence a quem controla os meios de comunicação.
Claro que isto cobre golpes e contragolpes, como Krushev, Yeltsin e mesmo nossos parlapatões Bolsonaro e seu duplo Trump. E qual a conclusão? Parece que adivinhei, pois andei postando no Facebook de 29/set/2020 o seguinte mutatis mutandis:
"Tudo isto dá um desalento desalentador. Mas trago nas fímbrias do coração um otimismo associad à conclusão de meu livro cujo título será "O que fiz para salvar o mundo". Talvez seja melhor fazer apenas como subtítulo. E nas primeiras páginas, depois que o livro foi comprado, o leitor vai ler: "O que fiz para salvar o mundo não deu certo. Espero que este livro ajude meu querido leitor a fazer novas tentativas." Espero que as lições desta postagem, instituições, governo mundial (e a dupla nacionalidade, as ameaças à liberdade, ajudem ao leitor a fazer novas tentativas.
DdAB
P.S. A imagem é minha sentida homenagem ao gênio criativo de Quino, falecido no dia de ontem.
P.S.S. E não falei em "conflito de baixa intensidade". Ver na Wikipedia.