29 setembro, 2020

Uma Fala Bolsonarista Descrita por Cristóvão Tezza

 Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico de São Pedro (RS)

(Escadaria do Hospital Psiquiátrico São Pedro de Porto Alegre, 

onde a professora Juçara deveria ser internada)


Falo mais sobre o livro de Cristóvão Tezza's "A tensão superficial do tempo". Um lindo e formalmente inovador romance do premiado lageano/curitibano. Estamos na sala dos professores do Cursinho Usina, do qual nosso herói, o professor de química Cândido, é docente e acionista. Há uma falação sobre política e impromptu ouve-se:

-E se [o bolsonarismo] der certo, professor [Mattos, que fazia uma análise da tragédia que é a civilização brasileira]? - e todos se voltaram à Juçara, que se aproximou com um sorriso irônico, cafezinho à mão, e uma tensão instantânea se instalou no silêncio. -Eu estava ouvindo a conversa sem querer. Desculpem, mas não resisto a meter minha colher. Eu trabalhei a vida inteira dando aula, tenho padrão do Estado, e nunca fiz greve. Só tinha vagabundo no sindicato. Trabalhar, que é bom, nada. Tudo gordo lá, mamando na teta do imposto sindical e mandando os otários para as barricadas. Na Federal não consegui entrar porque não tinha carteirinha de comunista. E se as tais moléculas culturais reorganizarem-se após a reforma da Previdência, o país voltar ao pleno emprego, todos os ladrões graúdos, o que inclui o seu ex-presidente presidiário, prosseguirem na cadeia graças ao ministro da Justiça, aos procuradores e à Polícia Federal, mesmo com este Supremo trabalhando contra, as ruas sendo varridas da violência, as pessoas de bem podendo caminhar nas calçadas de novo como antigamente, retomada do crescimento do PIB ano a ano, como era na suposta ditadura de que vocês reclamam tanto, valores religiosos sendo respeitados de fato, e não só no papel, assim como o direito à propriedade, o direito ao uso livre de armas (por que só os bandidos podem se armar, e nós não?), o fim do terrorismo das invasões de terras, porque sem a agricultura acaba o que sobrou do Brasil depois dos trinta anos de esquerda, o fim da mamata das ONGs que querem a Amazônia separada para eles, o espírito da Venezuela, de Cuba, da Coreia do Norte e do marxismo enfim eliminado do coitado do povo, a escola livre da doutrinação ideológica e do método Paulo Freire, a imprensa enfim dizendo a verdade em vez de só achar o lado ruim das coisas, a defesa da família normal sem essas deturpações globalistas que nem têm nada a ver com a nossa índole, e o combate ao assassinato de bebês pelos abortos clandestinos, os bons ideais cristãos dando um norte para o país? Será que exigir isso é demais? A simples decência das coisas. Há um ano eu não poderia dizer essas coisas aqui e em lugar nenhum; agora eu posso. Eu não estou fazendo uma caricatura, não me olhe com esse jeito debochado - milhões de pessoas dizem exatamente o que estou dizendo agora. Tem exageros aqui e ali, mas isso é café-pequeno. Ou vocês não tinham exagero nenhum, todo era uma maravilha e a atual maldade caiu do céu? Por que a Escola de Frankfurt, os utopistas de esquerda, por que eles saberiam o que é melhor para mim mais do que eu mesma? Sonhar com a minha liberdade é atraso? Isso é um retorno à Idade Média, professor? É isso que o senhor vai me dizer? [...]

Aquela sala virou, seguindo a narração já na página 184, um sepulcro: "Um silêncio brutal se instalou, como num jogo infantil de estátua, todos imóveis." E depois disto, ainda há algumas outras intervenções da professora Juçara, sempre defendendo o bolsonarismo. Mas esta aí só não foi do manifesto eleitoral do atual presidente da república, porque ele fugiu pela escadaria do hospital. O pior do bolsonarismo é que, naqueles 57 milhões de eleitores que o sagraram presidente no segundo turno da eleição de 2018, não há apenas imbecis. Mas claro que a professora fala como zumbi, com repetições ridículas, fora o que hoje, um ano depois da conversa de sala de professor, já tem coisa que obviamente não se sustenta em nenhum plano (moral, intelectual, jurídico, policial, etc., nenhum).

.1 "E se der certo, professor?

Tava na cara que era impossível dar certo. Como poderia dar certo com um trânsfuga da política partidária, a vida toda participando do chamado "baixo clero", e que hoje associa-se à chamada banda podre da política (o "centrão") para impedir a cassação de seu mandato?

.2 "Eu trabalhei a vida inteira dando aula, tenho padrão do Estado, e nunca fiz greve." 

Eu também trabalhei a vida inteira, 31 anos dela dando aula. Fiz greves aqui e ali e, aparentemente, todas as greves trouxeram vantagens pecuniárias e funcionais. Parece que só com greve para os professores alcançarem essas vantagens. Ela não entendeu.

.3 "Só tinha vagabundo no sindicato. Trabalhar, que é bom, nada. Tudo gordo lá, mamando na teta do imposto sindical e mandando os otários para as barricadas.

Seria um provincianismo curitibano falando? Aqui teve grandes políticos gerados na luta sindical. Na própria UFRGS dirigentes do proto-sindicato, tornaram-se diretores de faculdades.

.4 "Na Federal não consegui entrar porque não tinha carteirinha de comunista.

Eu tampouco tinha carteirinha de comunista, embora nunca tenha escondido ser "de esquerda". Entrei num departamento um tanto de direita e, naqueles meus 31 anos de trabalho na UFRGS, UFSC e PUCRS, vi os departamentos mudarem suas maiorias, privilegiando a visão de esquerda da própria vida universitária.

.5 "E se as tais moléculas culturais reorganizarem-se após a reforma da Previdência, o país voltar ao pleno emprego, todos os ladrões graúdos, o que inclui o seu ex-presidente presidiário, prosseguirem na cadeia graças ao ministro da Justiça, aos procuradores e à Polícia Federal, mesmo com este Supremo trabalhando contra, as ruas sendo varridas da violência, as pessoas de bem podendo caminhar nas calçadas de novo como antigamente [?]

A reforma da previdência foi uma farsa para cassar direitos da classe trabalhadora. Os "fat cats", como cúpulas militares, políticas, judiciárias e do próprio poder executivo mantiveram seus privilégios. Mas não sou contra privilégios, a não ser daqueles que ganham R$ 300 mil por mês por contagens estranhas de vantagens escandalosas. Pleno emprego? Os que pensam nesse jargão estão loucos, só pode. Nunca haverá pleno emprego, neste país de mais de 20 milhões de detentores de empregos precários. Quero dizer, nunca ocorrerá a criação de empregos decentes, pois a relação capital/produto para gerar um emprego decente é, digamos, indecentemente alta. Hoje o ex-presidente presidiário está prestes a ter suas sentenças cassadas, devido à sem-vergonhice que presidiu todo o inquérito da Lava-Jato, precisamente Sérgio Moro, que já não é mais ministro da justiça, por desavença com os aliados da véspera. As ruas varridas da violência botaram abaixo essencialmente pobres e negros, mas que polícia! Esses caras são incapazes de fazer uma verdadeira reforma no sistema judiciário brasileiro, um escândalo de ineficiência por si só.

.6 "[...] retomada do crescimento do PIB ano a ano, como era na suposta ditadura de que vocês reclamam tanto [...]". 

Aqueles tempos do crescimento dinâmico já estão perfeitamente explicados, pois o preço que o país pagou por ele foi aumentar a concentração da renda pessoal nas mãos das tradicionais elites. Aqueles delírios primeiro-mundistas, inclusive do General Geisel e outros abilolados, não poderiam dar certo precisamente por causa daquela legião de desempregados que hoje chegam aos tais mais de 20 milhões, contando com os empregos precários. Sem educação, sem empregos decentes, não haverá crescimento sustentado da produtividade. E menos ainda crescimento ambiental sustentado. E tem mais: eu mesmo andei investigando o que aconteceu no Brasil entre os anos 1970/1980 e constatei que o crescimento bombástico da professora Juçara foi essencialmente baseado no aumento do uso dos insumos e não, digamos, na produtividade do trabalho.

.7 "[...] valores religiosos sendo respeitados de fato, e não só no papel, assim como o direito à propriedade, o direito ao uso livre de armas (por que só os bandidos podem se armar, e nós não?), o fim do terrorismo das invasões de terras, porque sem a agricultura acaba o que sobrou do Brasil depois dos trinta anos de esquerda, o fim da mamata das ONGs que querem a Amazônia separada para eles, o espírito da Venezuela, de Cuba, da Coreia do Norte e do marxismo enfim eliminado do coitado do povo, a escola livre da doutrinação ideológica e do método Paulo Freire [...]." 

Aqui realmente a professora Juçara -pobre papagaio, no dizer, em outro contexto, de Chico de Oliveira- pegou pesado. Bandidos armados, já li no Facebook, afirmam exatamente que são bandidos. E tem muito "homem de bem" que vai comprar arma precisamente para ser assaltado e transferi-la ao bandido. Ainda se fala em invasão de terras no Brasil? Só pode ser porque os sucessivos governos odiaram fazer reforma agrária. Ou mesmo um exército de guardas florestais. A professora contou, para chegar em 30 anos de esquerda, desde Collor de Melo, um exagero, uma exagerada. ONGs querem a Amazônia? Em certo sentido, querem, sim, e em outro, querem a preservação da floresta até mais que a turma do ministério do meio-ambiente de Bolsonaro. Venezuela, Cuba e Coreia do Norte? 

.8 "[...] a imprensa enfim dizendo a verdade em vez de só achar o lado ruim das coisas [...]" 

Por razões opostas à professora Juçara, também me ressinto com a ausência de uma imprensa livre. Mas não é difícil que esta viva enfatizando "o lado ruim das coisas" neste país em que morrem 50 mil por ano em acidentes de trânsito, outros 50 mil por bala de revolver, os esgotos, sempre os esgotos, não alcançar toda a população, um espantoso número de famílias vive em moradias precárias, o meio-ambiente vai sendo destruído para além dos colapsos induzidos pelo resto do mundo. E mais: a imprensa deveria controlar a eficiência do poder judiciário, com um cadastro de crimes sem solução.

.9 "[...] a defesa da família normal sem essas deturpações globalistas que nem têm nada a ver com a nossa índole, e o combate ao assassinato de bebês pelos abortos clandestinos, os bons ideais cristãos dando um norte para o país? Será que exigir isso é demais? A simples decência das coisas." 

Eu precisaria saber mais sobre a professora Juçara, a fim de aquilatar quão decentes são suas coisas. Já cansei de ver, inclusive aquele senador Demóstenes Torres, muita gente esposar um moralismo completamente abjeto, escondendo suas índoles e práticas de crimes e mais crimes. Bem entendi que coisas decentes para a professora não nada têm a ver com meus valores. Inclusive posso rir dela ao dizer que os abortos clandestinos poderiam ser varridos da cena brasileira com a legalização da prática. Apenas gente de má fé entende que bebês podem ser abortados. Embrião, sim, feto, sim, mas nada de bebês. Na maioria dos casos de gravidez desejada, os embriões e fetos tornam-se bebês. Neste sentido, o abordo impediu o nascimento. Mas neste caso o aborto também impediu que aquele ente tenha perdido sua adolescência, vida madura, velhice, e o que mais viesse. Os bons cristão dando um norte ao país: isto já é demais. A menos que ela exclua da definição de bons cristãos essa camarilha extensa da família presidencial, dos pastores, dos auxiliares de pastores, dos religiosos pedófilos e tantas outras mazelas precisamente praticadas por essa turma de "bons cristãos." Essa professora Juçara! 

.10 "Há um ano eu não poderia dizer essas coisas aqui e em lugar nenhum; agora eu posso. Eu não estou fazendo uma caricatura, não me olhe com esse jeito debochado - milhões de pessoas dizem exatamente o que estou dizendo agora."

Foram 57 milhões a votar no PSL. Ou melhor, em Bolsonaro. E tinha mesmo mulher pela misoginia do candidato, viados, negros, índios, lésbicas, de tudo um pouco. Foi realmente uma quebra nos paradigmas de até então. Houve méritos (negativos) da turma do presidente, mas também houve terríveis deméritos das esquerdas. Primeiro não foi capaz de se unir. Segundo Lula amorcegou a eleição pensando que poderia ser candidato. E a camarilha dirigente do PT foi incapaz de argumentar que ele, para ser candidato, precisava de uma chapa com candidato a vice-presidente. Hegemonia, professora, Juçara, hegemonia. Claro que era de mau-gosto declarar-se reacionário há alguns anos. E que ganhou o Brasil com a forte posição apoiando os que estão destruindo a social-democracia? Esperam reduzir a desigualdade? Ou desigualdade não é importante? Eu olho para o discurso dela de modo bem debochadão. 

.11 "Por que a Escola de Frankfurt, os utopistas de esquerda, por que eles saberiam o que é melhor para mim mais do que eu mesma? Sonhar com a minha liberdade é atraso? Isso é um retorno à Idade Média, professor? É isso que o senhor vai me dizer? [...]

Que será que a professora Juçara lei sobre a Escola de Frankfurt? Eu li pouco, mas o suficiente para problematizar a questão da falsa consciência. E a solução que ela não conseguiu vislumbrar: o contrafactual - vamos removê-la de sua situação atual e colocá-la numa sociedade igualitária, como as do norte da Europa. E, lá inserida, indagar se ele prefere o status quo ante da inserção na sociedade brasileira.

.12 "Tem exageros aqui e ali, mas isso é café-pequeno. Ou vocês não tinham exagero nenhum, todo era uma maravilha e a atual maldade caiu do céu?

Esta observação também é de lascar o cano. Exageros aqui e ali? Sem falar no roubo, vemos o próprio presidente da república querendo fuzilar opositores, querendo fechar o congresso nacional e o supremo tribunal federal. E tem mais: que diabos é este de dizer que "vocês" abarca gente como eu que, há muitos anos, fazia a crítica ao lulismo sob uma perspectiva de esquerda. Sempre entendi que o PT poderia ser o país da social-democracia brasileira. Nunca gostei da corrupção, o que me coloca, novamente, contra os Bolsonaros. E também, devo confessar, contra a professora Juçara. Mas defenderei até a morte (ou ao fim desta postagem) seu direito de dizer bobagens.

DdAB

P.S. Achei admirável a seleção que Cristóvão Tezza fez do pensamento típico de uma bolsonarista. Para ela, não há problema de misoginia com seu projeto de Brasil. E tem mais outras passagens no romance com novas intervenções da professora Juçara. Mas eu vou ficando por aqui, pela primeira intervenção dela.

Nenhum comentário: