13 fevereiro, 2020

Ulysses: a magia da tradução e/m meus livros


Como sabemos, sou doctor of philos... Epa, como sabemos sou metido a ler traduções do "Ulysses", festejado romance do irlandês James Joyce. Tenho um (um, apenas um!) amigo que revela ter lido o original. Como sabemos, até aí há problemas, pois há uma bruta divergência sobre quem é a verdadeira edição prínceps: a Bodley Head de 1960 idêntica a da Random House de 1961 ou a de Hans Gabler, de 1984 e publicada em 1986 pela Vintage Books de Nova Yorque:

JOYCE, James (2000) Ulysses. London: Penguin. With an Introduction by Declan Kiberd, 1992. 933p.
 [Esta edição Penguin reproduz o texto que se tornou princeps a partir de 1960, com a editora Bodley Head, de Londres e, de 1961, com a editora Random House, de Nova York.]
Edições relevantes: 1922, 1937, 1968, 1984].
e
JOYCE, James (1986) Ulysses; the corrected text. New York: Vintage (Random House). 644p. (Edição coordenada por Hans Walter Gabler, cuja primeira edição é de 1984. Esta edição chegou a ser considerada princeps, mas pouco durou e hoje os especialistas têm-na como variorum).

Selecionada a edição em inglês, vamos deparar-nos com a chamada fixação do texto, o que me parece um conceito irrelevante para o caso. E o caso é "James Joyce e seu Ulysses", contexto em que parece que falar em edição princeps é prematuro. Estou certo de que num futuro próximo alguém vai retomar a ideia de fixação de texto, compulsando todo o material disponível para os scholars. E lançando nova e sensacionalizada edição.

A outra questão é a tradução. Tomado de curiosidade, eu não era mais que um pós-adolescente quando a editora Civilização Brasileira lançou no Brasil a tradução de Antônio Houaiss e eu a adquiri. Foi quando, nos anos subsequentes, comecei a leitura umas 200 vezes, o que me fez decorar a primeira sentença. Como eu achava o tradutor meio pernóstico, meio empolado e meio ininteligível, ia parando pro aí mesmo, até chegar-me às mãos a tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro. Não nego a possibilidade de que Houaiss tenha "afofado" o texto de Bernardina para mim. Aqui estão as traduções em meu poder:

PORTUGUÊS BRASILEIRO E D'ALÉM MAR

JOYCE, James (1966, 2003) Ulisses. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 13a. ed. 957p. Tradução de Antônio Houaiss.

JOYCE, James (2007) Ulisses. Rio de Janeiro: Alfaguarra/Objetiva. 908p. Tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro.

JOYCE, James (2012) Ulysses. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras. 1106p. Tradução de Caetano Waldrigues Galindo.

JOYCE, James (2013). Ulisses. Lisboa: Relógio D'Água. 730p. Tradução de Jorge Vaz de Carvalho.


TRADUÇÕES EM ESPANHOL

JOYCE, James (1988) Ulises. Barcelona: Debolsillo. 963p. Tradução de José Maria Valverde.

JOYCE, James (2008) Ulises. Mexico: Tomo. 728p. (na verdade, "Grupo Editorial Tomo, S. A de C. V."). 1a. edición, noviembre. Tradução de J. Salas Subirat reproduzindo o original argentino.

JOYCE, James (20011) Ulises. Madrid: Cátedra. (Tradução de Francisco Garcia Tortosa e María Luiza Venegas Lagüens em 1999). 908p.

TRADUÇÃO ITALIANA (minha cópia em PDF)

JOYCE, James Ulisse (2013). Torino: Giulio Einaudi. 500p. Tradução de Gianni Celati,

A tradução tem uma enorme capacidade de ser copiada. E suponho que cada tradutor procurará trabalhos anteriores em sua própria língua para ver como o fulano disse coisas complicadas. Como sabemos, a primeira palavra do romance é "stately". Vejamos em minhas quatro traduções para o português, minhas três para o espanhol e meu PDF para o italiano:

Português brasileiro
Houaiss: sobranceiro
Bernardina: majestoso
Galindo: solene

Português europeu
Relógio D'Água: Soberbo

Espanhol
Salas-Subirat: imponente
Valverde: solemne
Garcia-Tortosa: majestuoso

Italiano (PDF)
Celati: imponente

Por falar em italiano, é de lá que vem a boutade de afirmar que "traduttore traditore". Mas não esmoreçamos. Além de darem margem a diferentes abordagens por diferentes tradutores, uns podem copiar dos outros. Com efeito, neste sentido, Salas-Subirat deve ter sido consultado por todos os demais, por ter sido o primeiro a colocar numa língua  irmã do português. Nesta linha, vemos que "majestoso" e "imponente" encontram-se em mais de um livro. É interessante e deixo para as novas gerações avaliar quantas palavras comuns encontram-se nas diferentes traduções, tarefa hercúlea, admito, pois imagino que, nos próximos 100 anos, haverá mais 100 traduções nessas quatro línguas com que hoje estou lidando. Por enquanto, na linha da declaração de Gabler como edição princeps e depois seu impeachment, imagino que também os tradutores poderão retratar-se e fazer novo trabalho. No caso, a turma que traduziu de Gabler e não de Penguin há de estar com a cabeça quente.

Nessas traduções do "Ulysses" que me chegaram ao bolso..., há milhares de observações a fazer. Por exemplo, eu mesmo fiz uma direto na segunda frase do primeiro parágrafo. Dona Bernardina fala em "peinhoar" (isto é, aportuguezou do francês), mas meu ponto é sugerir que o velho James, nos esquemas produzidos para Carlo Linati (1920) ou Stuart Gilbert (1921) diz que a viagem começa às 8h00 a.m., o que é compatível com a indumentária de Buck Mulligan ao chegar-se ao topo da escada... Mas o que mais interessa são as gralhas (termo que aprendi com Galindo, parecendo ser jargão dos literatos e gráficos, mas não comprovei, querendo dizer dizer aquilo que inocentemente ouço designar como erro de imprensa).

Li que a edição feita por Hans Walter Gabler constatou cinco mil problemas pequenos ou grandes, corrigindo-os. O próprio Joyce corrigiu milhares de vezes os originais da editora de 1922, deixando as correções posteriores ainda mais confusas. Consta que o autor irlandês fez as últimas correções nas edições supervenientes do "Ulysses" até 1937, ou seja, quatro anos antes de morrer e já envolto tanto quanto pôde no "Finnegan's Wake". As correções nunca pararam e eu mesmo até no original acho que há encrencas. No outro dia li, e infelizmente não gravei a origem nem a autenticidade, mas não interessa, que a ideia é boa por si mesma. Um estudioso irlandês (precisa sê-lo?) diz que o "Ulysses" é maravilhoso, e tudo aquilo, mas lhe faltou um bom editor. Ou seja, aquela sra. americana, a mrs. Sylvia Beach, deveria ter trabalhado mais ou contratado alguém para fazê-lo. Mas também estou certo de que Joyce iria montar num porco, se o fizessem.

É que o próprio autor, além das gralhas, algumas das quais ele próprio inseriu (claro que involuntariamente), tem citações em milhares de línguas e a invenção de palavras, além de fusão de outras, como andei vendo ser mania de Mia Couto.

Tempos atrás, eu me diverti intensamente (aqui) comparando James Joyce e John Maynard Keynes, na broma com a língua alemã, que já fora objeto de brincadeira por Mark Twain, ao elogiar a língua de Goethe, sugerindo que é necessário ter um telescópio para identificar o substantivo no final da palavra que vai abarcando milhares de outras, tudo sem separação de um espaço, como o texto que agora chega aos olhos do leitor. Keynes fala que "cálculo de probabilidade", em alemão, se escreve como Wahrscheinlichkeitsrechnung.

E depois falei nas páginas 361-2 do capítulo 12 - Os Cíclopes da edição Alfaguarra, na tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro, aquele capítulo do "diz Joe, diz Bloom, digo eu..." O paragrafão começa na página 360. Diz ela: "O último adeus estava afetando ao máximo". Digo eu: afetando quem?, diga lá, James. É tudo assim... Depois de um monte de informações relevantes e irrelevantes, chegamos à frase cujo final transcrevi por outras paragens:

A delegação, toda ela presente, consistia no commendatore Bacibaci Beninobenone (o semiparalisado doyen do grupo que tinha que ser içado ao seu assento por meio de uma grua a vapor poderosa), monsieur Pierrepaul Petitépatant, o grandegozador Vladinmire Pokethankerstcheff, o arquigozador Leopold Rudolph von Schwanzenbad-Hodenthaler, a condessa Martha Virága Kissazonhy Putrá-Baba Backsheesh Rahat Lokun Effendi, señor Hidalgo Caballero Don Pecadillo y Palavras y Paternoster de la Malora de la Malaria. Hokopoko Harakiri, Hi Hung Chang, Olaf Kobberkeddelsen, Mynheer Trik van Trumps, Pan Poleaxe Paddyrisky, Goosepond Prhklstr Krqatchinabritchisitch, Borus Hupinkoff, herr Hurhausdirektorpresident, Hans Chuechli-Steuerli, Nationalgymnasiummuseumsanatoriumandsuspespensoriumordinaryprivatdocentegeneralhistoryspecialprofessordoctor Kriegfried Ueberallgemein. Todos os delegados sem exceção se expressaram nos mais fortes termos heterogêneos a respeito da barbaridade inominável que tinham sido convidados a testemunhar [...].

Não vou alongar-me, mas comentarei as primeiras autoridades. Começamos com o título que possivelmente se deve a um italiano ("commendatore"), mas o nome já vai retirando qualquer seriedade do 'delegado' meridional. Pelo que entendo, versado em italiano, Joyce meteu o nome do cara como Beijosbeijos. O sobrenome já me deixa patinando: Beni vai bem, mas nobenone não sei o que é. E assim por diante, até aquele prenome de um alemão mais longo que a esperança de todos os pobre de Jaguary encordoada, chegando até Santiago. Lá no finalzinho, Kriegfried faz guerra e paz, mas fried é frito em inglês. E o ueberallgemein não pode ser sobrenome nem aqui nem na China.

É complicado. E, para facilitar, eu tenho um projeto de pegar a tradução feita por John Gledson para o inglês do Dom Casmurro, de Machado de Assis, e trazê-lo de volta ao português brasileiro. Já achei algo que oferece garantidamente uma nota de rodapé: Gledson traduz Central do Brasil para Central Line do metrô de Londres.

DdAB
Imagem: "edição econômica" do Ulysses anunciada na Amazon. Para mim aquelas duas figuras masculinas da capa estão muito longe de representar a dupla Stephen Dedalus e Leopold Bloom. Ao contrário, lembram-me algo parecido com Ringo Starr e Peter Ustinov.

P.S. Minha biblioteca ulysseana.

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