Querido diário:
Eu e Shakespeare: pouco ou nada sei. Mas tenho uma história. Minha irmã mais velha, com seus 23 anos, fazia-se acompanhar deste humilde criado de meus leitores lá com seus 15. A família voltava de seus dois anos de Jaguari, após o olímpico retorno da estada de quatro anos em Campo Grande do Matto Grosso. Quando ela abandonava seus aposentos e a casa que nos abrigava, eu fazia incursões em seu quarto, sua escrivaninha, seus armários. Pois foi uma destas invasões que deparei-me com o livro "Cimbelino. Péricles", de um certo Chaquespeare, como vim a pronunciar, para receber consequências hoje chamadas de bullying. Era em português, não o li. Nunca li Shakespeare, to be true. Na verdade, há anos, li os "Contos de Shakespeare", de editores o casal britânico Charles e Mary Lamb. E sei de cor aquele "O Romeo, Romeo, wherefore art thou Romeo?", pulando para o famoso "What's in a name?" Mas sei muito sobre ele, pois a negadinha não cessa de citá-lo. E tem Woody Allen com uma filmagem sui generis do Sonho de uma Noite de Verão. E várias outras obras me chegam, também por citações e comentários. Hamlet? Romeo? Sei que nada sei... Sei que é um vexame, sei que morrerei com ele...
Érico foi selecionado por mim para ser um de meus amados. E o foi durante um bom tempo. Mas digamos que desde 2008 tenho lido-o com regularidade. Selecionei-o como leitura/s de outono. Retomei-lhe a leitura em 2001, quando de minha visita aos Estados Unidos. Por que o fiz? É que, no final da adolescência, eu lia muito depois da aula na biblioteca do Colégio Júlio de Caudilhos. E vai-de-cá, vem-de-lá, caiu-me na fuça o "Gato Preto em Campo de Neve", não que não me tivessem caído outros, como os da Coleção Catavento, da Editora do Globo. Pois decidi reler o "Gato Preto...". E, tendo-o feito em 2001, decidi ler o "A Volta do Gato Preto" ainda nos tenros anos zeros.
E decidi reler "O Senhor Embaixador". E tomei o primeiro ciclo e li quase todo: "Clarissa" (Clarissa em POA), "Música ao Longe" (Clarissa e Vasco, as preliminares), "Caminhos Cruzados" (Fernanda e Noel) e "Um Lugar ao Sol" (Clarissa e Vasco, Fernanda e Noel). Aí acabou o ciclo da Clarissa e entrou a história de Eugênio e Olívia, Érico conseguiu desprender-se daquela literatura inicial. Era o "Olhai os Lírios do Campo". Desprendeu-se, è vero, mas -no finalzito do "Um Lugar ao Sol"- deixou um laço para o seguinte:
Fernanda lembrava-se vagamente duma parábola que o rev. Bell vivia a citar, a propósito dos homens cobiçosos que só cuidavam de guardar dinheiro: 'Considerai os lírios do campo'. Eles não se preocupavam com roupas e andavam mais bem-vestidos que o rei Salomão. Salomão - pensou Fernanda -, Salomão. Não paguei a última prestação dos móveis. Diabo!
Talvez Érico estivesse a viver sofrimentos atrozes por abandonar aquela turminha dos romances iniciais. Tanto é que, no "Olhai os Lírios do Campo" regressa um personagem interessante, rimando com médico e fumante, o dr. Seixas que segue, altaneiro, o mesmíssimo doutor aparecido amplamente em "Um Lugar ao Sol":
-Bom - fez Fernanda. -Deixem ela dormir agora quanto tempo quiser. Se as dores voltarem, botem mais gelo. Hoje o doutor Seixas vem ver seu Orozimbo: a gente aproveita e pede pra ele receitar alguma coisa.
"O Resto é Silêncio", segundo o próprio Érico, é uma frase de Shakespeare e cuja inserção não lembro agora. O que temos no prefácio deste livro solteiro, isto é, sem continuação e sem ser continuidade, é nova chamada, no prefácio, à próxima grande obra, uma negadinha que o acompanhará por vários anos, como o fizeram Fernanda, Clarissa e sua turma:
Para que se tenha uma ideia de como ao tempo em que escrevi O Resto é Silêncio eu já estava sendo solicitado por outros temas, basta prestar-se atenção às reflexões de Tônio Santiago nas últimas páginas do volume, quando, no teatro, ele contempla a platéia e pensa nos primeiros povoadores do Rio Grande do Sul, nas suas lutas com os índios, as feras e os castelhanos; na solidão das fazendas e ranchos perdidos nos escampados; nas mulheres de olhos tristes a esperaram os maridos que tinham ido para a guerra ou para a áspera faina do campo; nos invernos de minuano, nas madrugadas de geada, nas soalheiras de verão e na glória das primaveras; nas lendas que iam surgindo nos matos, nas canhadas, nos socavões da serra, nos aldeamentos dos índios e nas missões; nas povoações que surgiam e nas antigas que cresciam, transformando-se em cidades; nos imigrantes europeus e nas povoações que eles criaram e assim por diante, até aquele momento ali no teatro, onde, numa espécie de milagrosa soma, se via aquela rica diversidade de tipos humanos, nomes e almas.
Um assunto puxa outro. Já vou falar, precisando antecipar essa nova dupla de livros independentes, "O Sr. Embaixador" e "Incidente em Antares". Achei agora por bem, ao transcrever as reflexões de Érico sobre os antecedentes de "O Tempo e o Vento", citar também o que ele diz sobre a criação de "Incidente em Antares". Na verdade, é a prefaciadora Maria da Glória Bordini que cita uma entrevista dada por Érico Veríssimo "aos jornalistas gaúchos Ney Gastal e Susana Przybylski, em 1971":
Dia oito de maio de 1970. Andava caminhando com minha mulher pelas colinas do Alto Petrópolis quando a ideia [de uma greve de coveiros em Nova York] me voltou com tanta força que comecei a trabalhar nela mentalmente [...] Quando cheguei à esquina da Carlos Gomes com a Protásio Alves, o livro já estava estruturado. E o título me veio como que soprado pela brisa daquele belo outono.
E já que Érico falou em "minha mulher" na entrevista, evoquei que ele a designou como "Mariana" lá naquele "Gato Preto em Campo de Neve". E parece que a encrenca, a citação, uma puxa outra, e não acabaria por aqui, pois eu precisaria dizer que "Adeus, Mariana" é o nome da tradicional canção de Pedro Raymundo e por que Mariana faz parte de meu lexicon, minha querida sobrinha Abegg.
DdAB
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