Querido diário:
Nos tempos em que eu exercia o magistério em sala de aula, era mais certo que o crescimento das crianças ou que a soberania popular em transformar a linguagem que eu desse como exemplo de bem de demérito a maconha. Desfeitos certos mal-entendidos, eu podia rugir a consigna que desenhei para a ocasião: "Adoro drogas", mas esclarecia que meu programa de legalização da encrenca deveria ser implantado passo-a-passo em um desenvolvimento de 20 anos. Hoje, mudei minha compreensão sobre o tema: em 20 anos, o governo absorverá a oferta (provisão) de todos os tipos de droga. Quem quer crack deve procurar o governo, as enfermeiras das salas de consumo criadas para a ocasião. Cocaína, idem, lança-perfume, santo daime, sei lá que mais. Com oferta grátis, é impossível surgirem concorrentes de respeito. Acaba-se o tráfico.
Em tempos recentes, na condição de aposentado que não vê jeito de jogar bocha ou fazer palavras cruzadas convencionais ou diretas, li:
SOUZA, Jessé (2015) A tolice da inteligência brasileira; ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa.
Emocionei-me quase às lágrimas, pois era isso o que eu queria dizer: o verdadeiro problema do Brasil é a desigualdade e é simples tolice achar que o problema é o patrimonialismo, a cordialidade, a casa e a rua, sei lá. Exemplo meu: a violência que hoje vivemos neste país é fruto da desigualdade (não há emprego nos setores de formação de capital humano) e não será resolvido, a não ser com mais emprego (sistema judiciário, educação, saúde, aquelas coisas).
Tolice é não entender que a desigualdade atua como um aríete contra as instituições. E que dizer, então, dessa louvação nacional ao fetiche industrializante? Tá na Carta Capital -que, carinhosamente, designo como Capital dos Carta e que faz parte da mesma penitência que jurei pagar ao ler Zerro Herra-, com o título de "O debate interditado; política industrial. Principal resposta do mundo à crise, a dinamização da indústria não é um tema importante no Brasil".
Pois é, pois não é que não é mesmo? Estamos nas páginas 32 a 35 do número 946, de 5 de abril, quarta-feira vindoura. Fala-se na preocupação que países tão díspares quanto:
.a Reino Unido
.b Holanda
.c França
.d Itália
.e Estados Unidos
.f China
.g Índia
estão super-atentos às ameaças à indústria:
Novas estratégias para a indústria são a reação mais importante da recuperação após a crise de 2008, gerada por políticas que entregaram ao mercado e ao sistema financeiro a condução da economia e se encarregaram de desqualificar a manufatura, apesar de não existir nação avançada sem indústria desenvolvida.
Quando li este paragrafinho fiquei pensando: começa tudo de novo: quem causa e quem segue o ímpeto desenvolvimentista? Costumo citar um trecho do livro "Mesoeconomia; lições de contabilidade social", (orgs. Bêrni & Lautert) da Editora Bookman, 2011, páginas 314-315:
Quando nossa preocupação diz respeito às condições de vida de uma população, passamos a falar em desenvolvimento econômico, um processo de transformação da sociedade envolvendo nações, economias, alianças políticas, instituições, grupos e indivíduos. Este processo envolve transformações na família, na empresa rural ou urbana, iniciando na comunidade local e culminando com a transformação global planetária. Como tal, o desenvolvimento econômico difere substancialmente do simples crescimento, que pode ocorrer em segmentos específicos, como regiões ou setores institucionais e econômicos. Assim, o crescimento, por um processo quantitativo, pode promover transformações que, ainda que modificando a estrutura econômica, criam obstáculos à emergência do desenvolvimento econômico, caso inviabilizem ou excluam transformações em uma ou mais das áreas recém‑citadas. Neste sentido, podemos definir o desenvolvimento econômico como o crescimento econômico, dado pelo aumento do PIB per capita, acompanhado pela melhoria do padrão de vida da população e por alterações fundamentais na estrutura econômica. Portanto, ele envolve, além do crescimento econômico, a melhoria dos indicadores sociais como a redução do analfabetismo, a queda da mortalidade infantil, o aumento da expectativa de vida, o aumento da disponibilidade dos serviços de saúde, a diminuição do déficit habitacional, o aumento da disponibilidade das redes de saneamento básico, etc.
Citei? Agora vou recitar, para tentar espantar o fantasma fetichista, o santo padroeiro da tolice, os adoradores da indústria:
a melhoria dos indicadores sociais como a redução do analfabetismo, a queda da mortalidade infantil, o aumento da expectativa de vida, o aumento da disponibilidade dos serviços de saúde, a diminuição do déficit habitacional, o aumento da disponibilidade das redes de saneamento básico, etc.
Quem comanda quem? É o trator que produz o engenheiro ou é este último que produz o trator? Em outras palavras, quem vem primeiro, o capital humano formando instituições sólidas ou o desenvolvimento econômico? Ou seja, parece constituir completa insanidade dizer que o Brasil pode dar os mesmos passos que os cinco primeiros países listados. Para podermos pensar em ações assemelhadas, precisaríamos ter, no Brasi,l o PIB per capita parecido, a melhoria do padrão de vida. E alterações fundamentais na estrutura econômica. Parece que, dada a confluência da divisão internacional do trabalho dos dias que correm, o Brasil deveria pensar em impulsionar seu crescimento por meio de sua agroindústria e dos serviços formadores de capital humano. Melhorar seus indicadores sociais, como a erradicação do analfabetismo, quedas ainda maiores na mortalidade infantil, aumento da expectativa de vida, mais serviços de saúde, redução do déficit habitacional, água e esgoto.
E que podemos esperar da inteligência brasileira? Postura arraigada sobre o fetiche industrializante.
DdAB
P.S. e num ioiô de dar gosto, escrevi isto lá e voltei pra cá e colei aqui e vou voltar lá e depois retornar pra cá, ad nauseam:
Minhas leituras de "estar mais ou menos ao par do que ocorre no mundo" são o jornal Zero Hora e a revista semanal Carta Capital. Tantas e tão frequentes são as 'aprontações' de ambos que costumo designá-los, respectivamente, por Zerro Herra e Capital dos Carta, neste caso, dada a propriedade e dominância do jornal. Pois, ao ler a revista de Mino Carta, deparei-me com uma catilinária contra a política econômica do Brasil não por criticar a desigualdade (ver Jessé Souza), mas por requerer mais ação para recuperarmos o "parque industrial". Imagino que, depois de recuperado parque, a turma iria sugerir mais gastos em bens públicos (segurança, saneamento) e meritórios (educação, saúde).
E que fiz? Fiz esta postagem, pois -ao ler a encrenca- dei-me conta de que os adoradores da indústria tanto citam os paradigmas dos países industrializados- veio-me à telha novo argumento: como é que esperam que o Brasil tenha o mesmo dinamismo industrial dos países ricos, quando é pobre, analfabeto, vive no lodo, essas coisas?