Querido diário:
Oieeee! Prometi e ainda vou cumprir uma postagem sobre a produção privada de serviços prisionais. Mas hoje achei conveniente acicatar meus amigos neo-desenvolvimentistas. Já vou explicando: o mar é, digamos, a China e o rochedo, os USA (ou o contrário). A imagem é para colocar o Brasil entre eles, pois vou falar de uma revista brasileira, dois economistas brasileiros e o fetiche da indústria incorporado pela corja de Donald Trump.
Tudo começou no sábado, quando li -como o faço regularmente- a Carta Capital datada da quarta-feira do meio da semana seguinte. Esta, por exemplo, foi datada como 1/fev/2017. E caí assim nas páginas 22 a 25, um artigão de Gabriel Galípolo e Luiz Gonzaga Beluzzo, intitulado "Protecionismo, o retorno". Protecionismo? Juro que, em torno da crise financeira de 2008, participei de um programa na TV falando das perspectivas. Eu sugeri que o mundo não iria acabar, que a economia iria naufragar e reemergir, mas que a recuperação contaria com três traços inapagáveis: protecionismo, inflação e desemprego. Parece que não me dei conta, naquele tempo, que o protecionismo poderia assumir o papel de mar e rochedo nos Estados Unidos, desde que fosse eleita uma WP (very weird person), esse mister Trump.
Pois bem, não sei direito se Galípolo (GG) e Beluzzo (LGB) são favoráveis a politicas protecionistas para promover o crescimento econômico nacional ou mundial, isto é, não ficou claro para mim o que o artigo deseja. Vou fazer diversas citações, endereçando-lhe comentários que me parecem acicates... Eles -autores- fazem uma espécie de resenha bibliográfica do livro "Death by China", de Peter Navarro, professor da Universidade da Califórnia (campus de where?) e que foi "recentemente nomeado diretor do National Trade Council por Donald Trump [...]". Então tá:
GG e LGB:
"Navarro fulmina: 'Se você deseja descobrir o que não é o livre-comércio, tente ler qualquer um dos livros-texto de economia que nossas crianças [sic] estudam nas faculdades hoje em dia. Seus olhos vão rolar, sua cabeça vai girar e seu estômago vai torcer pelo divórcio desses textos com a realidade da arena do comércio global'."
DdAB:
Pois não entendi bem: o modelo de livre-comércio está nos livros-texto. O mundo real não está nos livros-texto. Em seu estágio atual, o comércio mundial nada tem de livre-comércio. Dado meu ideal de governo mundial, comércio mundial, fim das fronteiras nacionais, posso dizer que os modelos de livre-comércio estão logicamente corretos, as conclusões seguem-se às premissas, essas coisas. Quem está errado é o comércio mundial, claro. Mas não quero dizer que a teoria é melhor que o mundo em todos os casos, que 'na prática a teoria é outra', aquelas sandices de quem não sabe exatamente qual é o papel da teoria na tentativa feita por seres humanos de "capturar" o mundo. Quero dizer que o mundo é que está errado? Que cada ação protecionista gera distorções impactantes no próprio país que a implantou. Monopólios são perversos, diz a teoria, e a turma do Brasil, embora não saiba, boa parte não o saiba, sofre com isto. Basta evocarmos as ações dos oligopólios da telefonia, da energia elétrica, os monopólios da água e esgoto, os lucros extraordinários dos bancos e de grandes conglomerados econômicos nacionais.
E que isto tem a ver com o rochedo, ou o que seja, da China? Em minha compreensão dos últimos 70 anos do desenvolvimento mundial, a China é uma invenção de Henry Kissinger, lá no governo Richard Nixon, no país que, no caso, faz o papel de mar (parece que é o mar da China que bate nos rochedos da América do Norte, nas demais Américas, na Europa, e em tudo o mais). E como se deu aquele comércio lá nos anos 1970? Claro que aquilo não era livre-comércio, pois estavam óbvias as intenções americanas de ajudar os chineses a estabilizar sua economia, tão combalida pelos atropelos daquele comunismo oriental (grande salto para a frente e revolução cultural). Ou seja, comprar cestinhas de palha ou leõezinhos de cerâmica não configura propriamente ameaça ao poderio industrial americano.
O problema é que, mesmo comprando cestinhas e leõezinhos, os americanos passaram a avalizar as condições de dumping social vigente na China. Como desdobramento daquelas aberturinhas comerciais, o novo salto desenvolvimentista agora nos anos 1980 seguiu avalizando o dumping social, mantendo-se até hoje. As condições de trabalho na China são compatíveis com uma exploração extraordinária de sua força-de-trabalho. Além disso, como GG e LGB referem, as taxas de câmbio predatórias adotadas pelos chineses não são nada afinadas com o livre-comércio, mas o problema foi de quem negociou com eles, ou seja, todo mundo, claro. Até hoje.
Há algum tempo ouvi alguém dizendo que, uma vez que a importação chinesa destruiu a economia industrial da Holanda, a competição seria desleal, pois os chineses adoram trabalhar 70 ou mais horas por semana, enquanto que os holandeses prezam seu ociozinho. E a resposta foi: pois então não há um comércio justo, dadas as diferenças culturais tão extraordinárias.
Por que falei que o livre comércio é ótimo em teoria e o mundo não o pratica, pois sempre haverá um país caroneiro, tirando vantagem de algum outro, fechando sua economia, especialmente naqueles produtos em que suas vantagens comparativas são, er..., desvantagens? Falei porque aquela citação do prof. Navarro, no mesmo parágrafo, termina dizendo:
'[...] enquanto o livre-comércio é ótimo em teoria, ele raramente existe no mundo real."
Pois era isto mesmo: se todo mundo praticasse o livre-comércio, todo mundo sairia ganhando, se todo mundo aproveitasse suas vantagens comparativas e por elas ordenasse o comércio, todos estariam melhor. Isto não quer dizer que o mundo está destruindo a teoria, ao contrário, podemos dizer que as políticas comerciais protecionistas estão destruindo o livre-comércio, ora.
E por que GG e LGB citaram o prof. Navarro? O texto de GG e LGB deu um pulinho e chegamos à oposição que Navarro faz
"[...] ao consenso de especialistas [...] que advogam a inevitabilidade da perda de importância da manufatura na economia americana, cuja prosperidade repousaria na expansão do setor de serviços.
"O setor de manufaturas engendra a criação de muito mais empregos do que o setor de serviços. Conforme estimativas apresentadas no livro, para cada dólar gerado na manufatura, a economia americana cria quase 1 dólar e meio em serviços correlatos, como construção, financiamento, varejo e transportes."
DdAB
Então vamos. Serviços não pode liderar o crescimento? Lembram do "efeito Excel", um recurso retórico que inventei há uma década? Quantos pêssegos da Vila Nova ou cavalos dos haras de Belém Novo são produzidos por ano? E qual a participação da agropecuária no PIB municipal de Porto Alegre? Zero, zereta. Óbvio que, quando dividimos o PIB agropecuário pelo total, há um número significativo que fica fora da célula do Excel que escolhemos para fazer o cálculo, por exemplo, 0,01%, que lemos como 0,0%.. E isto não nega a existência de pêssegos. Nos Estados Unidos, ainda não se chegou a zero, mas tende para lá. Também tenho argumentado que os transportes (lua de mel nos anéis de Saturno) e saúde (viver 250 mil anos) terão possibilidades de crescimento suficientes para engendrar crescimento econômico pelo resto da eternidade (ok, ok, digamos que apenas uns 500 anos, quando estaremos todos mortos...). E tem mais: as finanças, os intermediários financeiros. Estes também podem garantir crescimento eterno, pois são cada vez mais envolventes. Mesmo que eles não gerem uma fração expressiva de valor diretamente, os seguros, os cassinos-bolsas-de-valores, essas coisas vão crescer com a renda e gerar renda eles próprios.
A indústria chinesa cresce precisamente pelas medidas protecionistas dos rapazes de Pequim, a começar com a taxa de câmbio, seguindo-se com a pirataria e andando tanto que já chega a aparecer alguma iniciativa legítima, como -dizem- há inovações importantes na indústria de armazenagem de energia solar. Claro que não estou defendendo Trump e já seria humilhação suficiente se eu viesse a saber que ele andou lendo meu blog, pois volta e meia estou falando nisto: livre comércio não é comerciar com a China nos moldes atuais.
Depois, preciso repetir a frase absurda: "O setor de manufaturas engendra a criação de muito mais empregos do que o setor de serviços." O quê? Estamos falando em termos absolutos ou relativos? Estamos falando nos Estados Unidos ou no Paraguay? Estamos falando que os empregos industriais são induzidos pelo quê/1 e os serviços pelo quê/2? Vejamos um novo parágrafo meu:
Produtividade é PIB por trabalhador e a questão é saber se os empregos que os rapazes dizem ser gerados na indústria 'over and above' os dos serviços são mais produtivos. Se são, geram menos empregos por unidade de produto, ou são menos produtivos. E somos forçados a pensar, sob o ponto de vista da sociedade, pois somos economistas políticos
Ademais, repito outra encrenca: "Conforme estimativas apresentadas no livro, para cada dólar gerado na manufatura, a economia americana cria quase 1 dólar e meio em serviços correlatos, como construção, financiamento, varejo e transportes." Parece-me que aqui o equívoco do novo diretor do NTC é não entender suficientemente se está falando no produto ou na produção. Claro que, se for na produção, o argumento não tem o menor interesse, pois o que nos atrai é o aumento no produto. e, se for no produto, para cada aumento de $1, corresponderá o aumento de $1 no resto do sistema. Ou não estamos falando de requisitos diretos e indiretos, o que seria um erro metodológico escabelado. Insisto: o que interessa é a expansão de valor adicionado (produto, renda, despesa) e não da produção (valor adicionado mais insumos, inclusive importados). Mais valor da produção por unidade de produto é menor eficiência no uso dos insumos intermediários.
GG e LGB prosseguem:
"Empregos na manufatura também pagam mais em média, particularmente para mulheres e minorias. Esse poder de compra adicional proporciona um estímulo vital para o resto da economia. Não é coincidência que, quando as fábricas fecham, os centros de varejo, consultórios, hotéis e restaurantes que cresceram em volta delas também desaparecem. Quando as fábricas se vão, as receitas tributárias de estados e municípios caem, e os empregos e serviços públicos são cortados. Uma forte base manufatureira é vital para estimular a inovação tecnológica necessária para impulsionar a economia a longo prazo. A indústria representa dois terços de toda pesquisa e desenvolvimento privado nos Estados Unidos. 'Quando essa manufatura parte para a China, leva suas despesas com pesquisas e desenvolvimento com ela - e a capacidade da América de inovar!', afirma Navarro."
DdAB:
Costumo dizer que mais vale a implantação de um supermercado em Santana do Livramento do que uma fábrica local de aviões a jato. Mania de industrializar o não-industrializável! E quando os centros de varejo, consultórios, hotéis e restaurantes fecham, chancelando estonteante desemprego, seus fornecedores industriais também fecharão, não é mesmo? Receitas tributárias: estamos pensando que o mais supremo ideal humano é o governo arrecadar os impostos indiretos do setor industrial, ou -ao contrário- guiar-se pelo princípio da capacidade de pagar e conduzir suas receitas (plano de 20 anos) a repousarem no imposto de renda, no imposto sobre a riqueza e no imposto sobre as heranças? Eu acho que imposto indireto é baixaria, a não ser que seja aplicado sobre bens de demérito. Mas como dizer que um refrigerador, um compressor de ar daqueles que zumbem no consultório de nossos dentistas, uma broca daquelas que emitem aquele som que amamos no mesmo local, e tantas outras mercadorias são bens de demérito? Até aceito que a cachaça, o cigarro, o automóvel o sejam, mas mas mas.
A base industrial serve para incentivar as atividades de P&D? Claro, só que elas não são "industriais" e sim "serviços", serviços prestados às empresas, alguns deles dentro delas e tantos outros fora, independentes, alheios a elas. Ou seja, a pesquisa e desenvolvimento é feita fora da indústria. E, aprendi com Reinaldo Gonçalves, o Brasil gasta montes em P&D, só que nos países centrais, pois a compra das empresas estrangeiras localizadas no Brasil. O Brasil quer autonomia de P&D? Então tem que gastar mais em educação, centros tecnológicos, universidades, essas coisas. Ok, sigamos com GG e LGB.
GG e LGB
"Outra razão para defender a base manufatureira está associada à forte relação entre grandes empresas que ofertam produtos finais, como Boing, Caterpillar e General Motors e o resto da cadeia produtiva. A manutenção das empresas de indústria pesada é importante, porque toda uma gama de outras companhias, grandes e pequenas, depende desses negócios. Portanto, quando grandes companhias levam suas fábricas para outros países, a perda de empregos não está confinada àquela empresa. Por essas razões, os empregos na manufatura são vitais à prosperidade de longo prazo, nos Estados Unidos, na Europa, no Japão e em todo o mundo. Tentar estimular economias sem uma base manufatureira pode resultar em vazamento desse estímulo, pois a maior parte do que é consumido é importada."
DdAB
Tá na cara que GG e LGB estão falando numa concepção de economia mundial constituída por unidades autárquicas. Estão falando em baixo nível de comércio mundial, e que isto seria bom, que o protecionismo seria bom. Não há melhor exemplo de ação de caroneiros dos países que protegem as importações e conseguem que os demais se abram a suas exportações. E sabemos que um jogo desta natureza não tem equilíbrio interessante, pois pode levar a uma série infinita de retaliações de parte a parte. E não é isto o que os Estados Unidos vão fazer? E não deveriam ter feito há mais tempo, mas poderiam começar amanhã, novas políticas comerciais justas e equânimes?
O que acho engraçado é que os três (autores da resenha e do livro) não são capazes de conceber um pais sem indústria, mas nem falam no que acontece num país como o Brasil, carente de escolas, esgotos e prisões. Queremos reformismo, atuação do governo? Como sabemos, gastar em formação de engenheiros pode levar à produção de tratores, mas a produção de tratores, até ontem, não tinha gerado nenhum engenheiro. Sigamos.
GG e LGB
"Navarro inculpa 'oito práticas comerciais injustas' chinesas pela queda na participação da manufatura no produto doméstico de 25 para 10%, cabendo protagonismo para a taxa de câmbio, 'espertamente manipulada', que equivale a uma tarifa uniforme de importação e um subsídio à exportação. 'Se o dinheiro é a raiz de todo o mal, então a manipulação chinesa da sua moeda, o yuan, é a raiz central de tudo de errado na relação comercial entre Estados Unidos e China."
DdAB
Não falei? Os chineses têm sido caroneiros do comércio mundial, especialmente com os países desenvolvidos, com esse câmbio denunciado pelo prof. Navarro, e -óbvio- com o escandaloso dumping social, além das práticas de apropriação indébita de marcas e patentes, inclusive de bolsas de senhoras de crocodilo, aquelas coisas. Agora, não podemos incriminar os livros-texto por ensinarem modelos de livre-comércio, pois apenas neste caso é que poderemos entender e avaliar as distorções introduzidas por essas práticas chinesas no comércio mundial. Se é para reformar, vou antecipando, devemos pensar naqueles avisos de John Maynard Keynes no afamado artigo "As Possibilidades Econômicas de nossos Netos", em que alerta para os limites do comércio mundial se aterem ao mínimo indispensável, indicado pelas vantagens comparativas e, no caso dos serviços financeiros, esconjurá-los.
De minha parte, doutrinado pela beleza da teoria ricardiana das vantagens comparativas e suas extensões, considero que o governo mundial precisa de uma base de relações comerciais, além das que já existem no tráfico de armas, drogas, escravos e poluições.
GG e LGB
"Nos Estados Unidos, uma pesquisa recente realizada pel economista Thomas Piketty revela que, nos últimos 30 anos, a renda dos 50% mais pobres permaneceu inalterada, enquanto a dos 1% mais rico aumentou 300%.
DdAB
Pois não é que não é? Como é que os Estados Unidos, onde -nos últimos 30 anos- a indústria caiu de 25% para 10% na geração do PIB, permitiu esse crescimento de 300% na renda dos mais ricos? A verità é que, nesses 30 anos, o PIB americano mais que duplicou, quase 3% ao ano. E precisa ser mais estudada essa relação de exploração: os americanos nos exploram e são explorados pelos chineses. Estes passaram a abrir fronts de exploração também no Brasil. O Brasil precisa de aviões ou supermercados? Engenheiros ou tratores? Endemias ou esgotos? E que fazer com a renda dos ricos, destruir ou redistribuir? Parece que precisamos de uma comunidade forte para não ser roubada nem pelos políticos nem pelos chineses e gastar mais em educação, segurança, esgoto, essas coisas, esses bens públicos ou de mérito.
Que é mesmo que quero dizer? De certa forma, alio-me aos reformistas, só que entendo que, em geral, eles querem mais participação do estado no setor industrial. Já concedi que aceito-a nos esgotos, mas devemos caprichar mesmo é na educação. E, reformista por reformista, penso que dá menos trabalho incentivar o consumo (o supermercado) do que a produção (a fábrica de aviões a jato). Quer dar uma olhada num traço muito louco daqueles que não entendem que, invertendo o lugar comum, importar é o que exporta? Cristina Kirchner disse esperar que a Argentina não importe nem um prego: http://19duilio47.blogspot.com.br/2011/12/kirchner-x-prebish.html. Neste caso, para que iriam enviar-nos bifes de boi e pãezinhos de trigo? E qual o limite para o comércio, para não ficarmos de boca aberta (duplo sentido evitado), esperando comida do resto do mundo, sem exportarmos nada? Tem pouco país burro, claro, e a chave da inteligência é o binômio taxa de juros-taxa de câmbio, que devem permitir um saldo no balanço de transações correntes que, a médio prazo, seja nulo (claro que nem a economia doméstica nem o governo nem o setor externo devem pensar que só terão superávit em seus balanços, o que é proibido pelas relações contábeis da macroeconomia).
Que fazer? Lutar pelo governo mundial. E, se a língua oficial for o inglês, seguir rugindo: education, education, education.
DdAB
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