Querido diário:
Não pensemos que desisti de falar sobre privatizações de prisões, de hospitais, de pontes, estradas, arrecadação de impostos, tudo. Mas hoje quero falar de coisas diversas. Primeiro: há pelo menos 30 anos, tinha a incumbência de ler o romance:
SVEVO, Italo. A consciência de Zeno.
Fi-lo (diria o sr. F. Temer) numa edição de 2003 da Folha de São Paulo, com tradução de Ivo Barroso. O original em italiano é de 1938.
Segundo: naquele ano, já estávamos (eu, hein?) acostumados à teoria da relatividade, o cubismo (?), o keynesianismo, e tudo aquilo, inclusive a Guerra Civil Espanhola e os primeiros signos da, assim chamada, II Guerra Mundial.
Terceiro: vou transcrever os cinco parágrafos finais do livro, páginas 382-383 em minha edição. Ergo quem não leu pode ler igual, que -em boa medida- isto pouco ou nada tem a ver com a trama geral da história, a não ser que pensemos que estas reflexões do aluno/amigo de James Joyce (aliás, pelo que leio do 'Ulysses', em minha imaginação, o Svevo é a cara de Leopold Boom) têm a ver diretamente com a psicanálise, objeto indireto de todo o livro. Quer dizer, não é bem isto... Vejo previsões de tudo o que aconteceu no mundo desde então: desde as lesões por esforço repetitivo da classe trabalhadora, à degradação do meio-ambiente, com destruição de espécies animais e vegetais, a bomba atômica, e por aí vai. Tudo e até mais nos cinco parágrafos.
"A vida atual está contaminada até as raízes. O homem usurpou o lugar das árvores e dos animais. Mas o pior está por vir. O triste e ativo animal pode descobrir e pôr a seu serviço outras forças da natureza. Paira no ar uma ameaça deste gênero. Prevê-se uma grande riqueza... no número de homens. Cada metro quadrado será ocupado por ele. Quem se livrará da falta de ar e de espaço? Sufoco só de pensar nisto!
"E infelizmente não é tudo.
"Qualquer esforço de restabelecer a saúde será vão. Esta só poderá pertencer ao animal que conhece apenas o progresso de seu próprio organismo. Desde o momento em que a andorinha compreendeu que para ela não havia outra vida possível senão emigrando, o músculo que move as suas asas engrossou-se, tornando-se a parte mais considerável de seu corpo. A toupeira enterrou-se e todo o seu organismo se conformou a essa necessidade. O cavalo avolumou-se e seus pés se transformaram em cascos. Desconhecemos as transformações por que passaram alguns outros animais, mas elas certamente existiram e nunca lhes puseram em risco a saúde.
"O homem, porém, este animal de óculos, ao contrário inventou artefatos alheios ao seu corpo. E se há nobreza e valor em quem os inventa, quase sempre faltam a quem os usa. Os artefatos se compram, se vendem, se roubam e o homem se torna cada vez mais astuto e fraco. Compreende-se mesmo que sua astúcia cresça na proporção de sua fraqueza. Suas primeiras máquinas pareciam prolongamentos de seu braço e só podiam ser eficazes em função de suas próprias forças, mas, hoje, o artefato já não guarda nenhuma relação com os membros. E é o artefato que cria a moléstia por abandonar a lei que foi a criadora de tudo o que há na Terra. A lei do mais forte desapareceu e perdemos a seleção salutar. precisávamos de algo melhor do que a psicanálise: sob a lei do possuidor do maior número de artefatos é que prosperam as doenças e os enfermos.
"Talvez por meio de uma catástrofe inaudita, provocada pelos artefatos, havemos de retornar à saúde. Quando os gases venenosos já não bastarem, um homem feito como todos os outros, no segredo de uma de uma câmara qualquer neste mundo, inventará um explosivo incomparável, diante do qual os explosivos de hoje serão considerados brincadeiras inócuas. E um outro homem, também feito da mesma forma que os outros, mas um pouco mais insano que os demais, roubará esse explosivo e penetrará até o centro da Terra para pô-lo no ponto em que seu efeito possa ser o máximo.Haverá uma explosão enorme que ninguém ouvirá, e a Terra, retornando à sua forma original de nebulosa, errará pelos céus livre dos parasitos e das enfermidades."
Explosão demográfica: em 2050 a Nigéria será o terceiro país mais populoso do mundo. Que esperar de um planeta sem renda básica da cidadania? Mais migração, mais desespero migratório a qualquer custo. O ar já anda "pra cachorro" há tempos e anuncia-se com cada vez mais alarde a falta dágua.
Nossa saída são as naves espaciais, como as andorinhas que transitam no espaço sublunar. A saída que nos aguarda talvez seja reduzir a natalidade para podermos todos embarcar em tais naves, confrontando-nos com a distopia do filme "Blade Runner", pois lá a classe alta deu no pé, morando muito além do mundo sublunar. Só que, se escaparmos, e nos reencontrarmos em 100 mil anos, ficaremos surpresos com a transformação física dos demais (para não falar dos faladores), asas musculosas, olhos de lince e cascos de escol. Todas serão transformação voluntária (engenharia genética) e involuntária (viver na nave, radiações estranhas, alimentação artificial, sei lá).
Gostei daquela definição de homem, enquanto animal de óculos. Eu mesmo, neste sentido, tornei-me homem há 30 anos, ou seja, era um não-sei-quê até os 40. Aprendi com João Rogério Sanson que óculos, obturações dentárias, implante de platina no braço, coração de metal etc., que podemos designar essas maravilhas científicas como órgãos exo-somáticos, sabendo que 'soma' é corpo numa língua terráquea. Mas não estou totalmente concorde que essa exo-somatização seja malévola, menos ainda quanto à criação de artefatos que substituam a ação humana. Outro italiano, Umberto Eco, definiu (nome da rosa?) a máquina como sendo um macaco da natureza que lhe imita a ação, mas não a forma.
DdAB
Gostei daquela definição de homem, enquanto animal de óculos. Eu mesmo, neste sentido, tornei-me homem há 30 anos, ou seja, era um não-sei-quê até os 40. Aprendi com João Rogério Sanson que óculos, obturações dentárias, implante de platina no braço, coração de metal etc., que podemos designar essas maravilhas científicas como órgãos exo-somáticos, sabendo que 'soma' é corpo numa língua terráquea. Mas não estou totalmente concorde que essa exo-somatização seja malévola, menos ainda quanto à criação de artefatos que substituam a ação humana. Outro italiano, Umberto Eco, definiu (nome da rosa?) a máquina como sendo um macaco da natureza que lhe imita a ação, mas não a forma.
E depois tem a proposição central do marxismo para a salvação da humanidade e a débacle do capitalismo: substituição de trabalho vivo por trabalho morto. Um tanto hedonista, pois acho melhor capinar com enxada que com as unhas, com trator que com o indicador e o polegar. E viver mais (já pensou em 100.000 anos?), e viajar para mais longe (abandonando o mundo sublunar, por suposto, além do raio de expansão do Sol, quando tudo acabar, exceto as naves humanas e seus amigos animais e plantas).
Máquinas? E ainda tem -esta sim autenticamente- uma frase de Marx que diz que o homem é o único animal que, ao transformar a natureza, transformou sua própria natureza. Criamos navalhas e naves, garrafas e tarrafas, sei lá. Talvez a maior invenção de todas, involuntária, foram as instituições. Sem elas, não teríamos nem tribo, nem mercado, nem estado. Seria a viagem de David Hume, com aquela vida "solitary, poor, nasty, brutish, and short".
Sobre o explosivão: foi Nikita Kruschov que ridicularizou os americanos (foi?, ridicularizou?) que teriam construído bombas de hidrogênio para destruir milhões de Uniões Soviéticas (ironia que ela foi destruída sem bombas, por ter instituições extorsivas, outro dia falo mais sobre isto). E ele redarguiu que fizeram uma única bomba, pois não precisam destruir os Estados Unidos mais que uma vez.
Pois bem. Quem quiser ver como Italo Svevo chegou a essas conclusões pode ler o livro. Pode consultar a Wikipedia italiana e até a inglesa. E até a portuguesa/brasileira.
DdAB
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