28 maio, 2021

Plágio sem Plágio: Borges, Graciliano e Calvino

 

Durante este ano longo de pandemia, li meia dúzia de romances/novelas novos, pois, para um negão nada especializado na literatura literária, é difícil, sem ir à livraria, achar títulos interessantes. Em compensação, reli -talvez- dezenas de títulos de minha biblioteca, fora aqueles browsings que faço regularmente nas obras nela residentes. 

Parece que nem mencionei por estas bandas que reli os dois livros memorialísticos de Graciliano Ramos, nomeadamente, 'Memórias do Cárcere' e 'Infância', duas obras de arte. Depois delas, andei relendo outras ficciones, e voltei ao velho Graça, tentando fazer a volta em todos os livros de ficção (ver mais sobre ele aqui).

Em pleno dia de hoje, estou relendo

GRACILIANO RAMOS (2OO6) Vidas Secas. 99a. ed.. Rio de Janeiro: Record. [Original de 1938, pouco depois de ter sido libertado da prisão perpetrada pela ditadura Vargas].

Esta é a terceira ou quarta vez que leio/releio as Vidas Secas. Baleia, Fabiano, Sinha Vitória, os dois filhos sem nome. Em plena página 14 do primeiro capítulo (Mudança), o velho Graça está falando em Fabiano, já tendo registrado seu analfabetismo e seus horizontes linguísticos super-limitados, aliás, não apenas linguísticos, mas também aritmetísticos:

[...] Saciado [depois de fartar-se de uma água barrenta], caiu de papo para cima, olhando as estrelas, que vinham nascendo. Uma, duas, três, quatro, havia muitas estrelas, havia mais de cinco estrelas no céu. [...]

Em compensação, quando li essa contagem de estrelas em que cinco equivale ao infinito (ou quase), evoquei leitura mais antiga ainda, identificada com uma monstra duma referência bibliográfica:

BORGES, Jorge Luis (1996) El informe de Brodie [conto]. In: El informe de Brodie [livro]. In: Obras completas, v. 1. Buenos Aires: Emecê. p.449-454. [Impresso en España].

Cito agora um trechinho da página 451:

   He hablado de la reina y del rey [de Uqbar]; paso ahora a los hechiceros. He escrito que son quatro; esse número es el mayor que abarca su aritmética. Cuentan con los dedos uno, dos, tres, quatro, muchos; el infinito empieza en pulgar. [...]

Plágio? Quem de quem? E Borges pontifica sobre plágio:

   En los hábitos literarios [de Tlön, país que abarca Uqbar] es todopoderosa la idea de un sujeto único. Es raro que los libros estén firmados. No existe el concepto de plagio: se ha estabelecido que todas las obras son de un solo autor, que es intertemporal y es anónimo.

BORGES, Jorge Luis (2004) Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. [conto]. In: El jardin de los senderos que se bifurcan [livro]. In: Obras completas, v. 1. Buenos Aires: Emecê, 15a. edición. p.439.

Pois então. Não referi que também estou relendo os contos de Insônia:

GRACILIANO RAMOS (1997) Paulo. In: Insônia. 26a. ed. Rio de Janeiro: Record. [Original de 1947]

Lemos na página 51:

[...] Por que não me levam outra vez para a mesa de operações? Abrir-me-iam pelo meio, dividir-me-iam em dois. Ficaria aqui a parte esquerda, a direita iria para o mármore do necrotério. [...]

E que tem essa encrenca de dividir o neguinho em dois com plágio? Basta citar o título de um livrinho de origem italiana:

CALVINO, Italo (1996) O visconde partido ao meio. São Paulo: Companhia das Letras.

Visconde partido ao meio? Esse visconde tem uma metade malvadona e outra metade boníssima. O narrador e Paulo divididos em duas partes no mundo gracilianesco e também no calvinesco. Ou seja, o narrador quer perder uma de suas metades, a qual vem sendo identificada como Paulo, o título do conto.  

Felizmente, para os sábios de Uqbar, não existe plágio. E, se eu quisesse argumentar em alguma revista literária, teria que investigar precisamente quem escreveu antes de quem. E anular os vereditos dos literatos dessa região do universo borgeano. 

DdAB