Querido diário:
Por razões que nem eu mesmo entendo bem, decidi publicar notas que fiz para uma aula que dei ainda em meus tempos na UFSC, para o Pós-Graduação em Economia em 17 de abril de 1997 (quinta-feira). Se bem lembro, era uma disciplina que deveria ter sido dada por Edvaldo Alves Santana, meu ex-aluno e primeiro lugar no concurso para professor titular em que me classifiquei em segundo. Por razões que agora não lembro, a fim de não prejudicar os alunos, assumi o papel de "regente", organizando aulas dadas por diferentes professores, cada um tratando de um tema relevante e compatível com o título da disciplina que agora também me foge. E tenho anotado: aqui falta atualizar dados e também expandir as seções E e F. Então lá vai, sem essas correções, como no original:
INTRODUÇÃO
Grande prazer poder discutir algumas ideias [naquele tempo, se escrevia 'idéias'...] concernentes à reestruturação produtiva mundial. A distância entre microeconomia e macroeconomia, tão clara nos livros-texto, ficou obscurecida nas aulas do prof. Jesiel [de Marco Gomes, meu finado e inesquecível amigo desde 1971, falecido em 2015]. A grande pergunta dessas aulas foi: Convergência do País do Sol-Nascente é o Ocaso dos Estados Unidos?
Penso que manterei a junção micro-macro nestes dois encontros [ou seja, foram duas aulas minhas]
.a convergência da produtividade global e setorial
... os ciclos sistêmicos
... macroeconomia do crescimento
... indústrias específicas
.b comércio intra-indústria: a microeconomia das relações econômicas internacionais.
Roteiro das duas aulas:
A. Quatro ciclos sistêmicos
B. O longo século XX
C. Lema: o conceito de produtividade
D. As leis de Kaldor e a desindustrialização
E. Convergência internacional
F. Convergência setorial
G. Traços da literatura sobre desindustrialização
A. QUATRO CICLOS SISTÊMICOS (Giovanni Arrighi, minha melhor leitura de 1996)
.a ciclo genovês: 1450-1650 - lógica territorialista (Troca T, mercadoria M fazem T-M-T')
.b ciclo holandês: 1550-1800 - lógica capitalista: (Dinheiro D, mercadoria M fazem D-M-D')
.c ciclo britânico: 1750-1920: T-M-T' e D-M-D'
.d ciclo americano: 1920-... - empresa multinacional
Cada um deles começa com a expansão comercial e territorial e culmina na hegemonia financeira.
E o Japão?
Não há dúvida de que existe um milagre econômico na Ásia. Este parece estar associado à expansão capitalista (troca - T) a todas as esferas da vida social: a sub-contratação é espantosa.
. devemos registrar a relação [um tanto polêmica na época da aula, mas hoje aparentemente de conhecimento comum] entre dinamismo e igualitarismo.
B. O LONGO SÉCULO XX
. do início até 1920, hegemonia britânica
. herança com a Grande Depressão de 1873 a 1896
. segunda Grande Depressão: 1929 a 1936 (aproximadamente)
. ameaça de colapso que não se realizou: 1987 [depois veio a crise de 1997 e ainda a de 2008]
. três fases do século XX:
... expansão financeira de fins do século XIX e início do século XX, ocorrendo a transição do regime britânico ao americano
... expansão do Pós-Segunda Guerra Mundial: comércio e produção, hegemonia americana até 1973
... atual expansão financeira com a crise de 1987, sendo filha da Conferência de Bretton Woods e da de 1973, com seus petrodólares
C. LEMA: O CONCEITO DE PRODUTIVIDADE
. questão da eficiência no uso dos recursos
... produzir mais com os mesmos os recursos
... produzir o mesmo com menos recursos
. eficiência leva à produção de excedente e, como tal, à troca
... a troca nos últimos cinco mil anos, civilização como a conhecemos, capitalismo, crescimento econômico
. basicamente, o conceito de produtividade do trabalho deriva-se do fato mais importante do capitalismo, nomeadamente, a realização das vendas da produção. Esta expressão esconde por trás dela o conceito de valor adicionado e suas três óticas de cálculo: produto, renda e despesa (demanda final). Afirmo que o valor adicionado é determinado socialmente, o que deixa minhas simpatias pelo monetarismo às claras. Associando a primeira dessas óticas, o produto ou PIB, com o emprego temos precisamente o conceito de produtividade do trabalho.
. neste contexto de discussão do conceito de produtividade do trabalho, precisamos apelar para a heterodoxia, de sorte a compreender amplamente o que está ocorrendo. Por que conhecer os níveis e crescimento da produtividade do trabalho? Qual o sentido de tal decisão das firmas que intentam aumentá-la, considerando que a concorrência fará com que a queda nos preços se reflita em custos menores e preços mais baixos para o consumidor das mercadorias efetivamente vendidas?
. Minha visão é que elas precisam incorporar progresso técnico poupador de trabalho vivo (por contraste às máquinas e equipamentos, o trabalho morto), a fim de sobreviver (Maurice Scott, New theory, p. 125). Em boa medida podemos lembrar o que Richard Dawkins diz sobre a "corrida armamentista" entre a gazela e e a leoa: a gazela precisa correr mais, a fim de, pelo menos, manter a distância que a separa da leoa.
. conceito de produtividade:
... partimos de uma função de produção simplificada:
Q = f(K, L),
para não falar em terra, água, meio ambiente, etc.
Essa "teoria" permite montarmos um tradicional modelo empírico com a equação de Cobb-Douglas:
Q = A * K^a * L^b,
cuja anamorfose logarítmica permite escrevermos:
ln Q = ln A + a * ln K + b * ln L.
Com os valores de Q, K e L para diferentes países ou vários anos de um ou mais países, obtemos estimativas de A, a e b.
A partir da primeira equação, podemos também calcular
Q/K - produtividade do capital
Q/L - produtividade do trabalho
Q/(K + L) produtividade total dos fatores, ou produtividade multi-fatores.
Nesse K + L, há que contornar o problema das unidades de medida, o que se resolve com o cálculo de taxas de crescimento de K e de L e combinando-as de alguma forma (Laspeyres, Paasche, etc).
D. AS LEIS DE KALDOR E A DESINDUSTRIALIZAÇÃO
Qual o objetivo da empresa? É maximizar a taxa de lucro, que chamarei de P/K, com P de 'profit'.
E por que os capitalistas têm interesse em manter a participação dos lucros no PIB? É que podemos decompor a taxa de lucros, originalmente dada por
tx P = P/PIB,
que pode ser multiplicada por um daqueles números 1 sabidos
tx P = P/K = P/K * PIB/PIB,
e, reordenando, vem:
tx P = P/PIB * PIB/K
onde vemos que tx P varia diretamente com P/Y, ou seja, a participação dos lucros no PIB (e também que ela varia diretamente com a relação produto/capital, e inversamente, como tal, à relação capital/produto).
. Há algumas leis que tratam destes desdobramentos.
Primeira: lei da concorrência, que já referi, mas agora quero falar que os salários, de acordo com esta "lei", tendem a equalizar-se intersetorialmente. Logo a produtividade deve crescer intersetorialmente para que a relação salário/médio (W/L), sendo o complemento da unidade da participação dos lucros no PIB, permaneça constante:
W/L : (1 - PIB/L)
. Mas há outras leis mais específicas sobre a questão da produtividade, que obedecem à seguinte análise lógica: a produtividade pode crescer, estacionar ou decrescer
No primeiro caso, haverá leis que expliquem esse crescimento?
No segundo, há estagnação - e talvez a convergência - das/nas rendas per capita
No terceiro, decrescendo, a produtividade pode levar o sistema econômico à decadência.
. interessa-nos agora em particular saber quem explica o que a faz crescer.
. autores envolvidos no tema: Adam Smith, Alyn Young, Verdoorn, Fabricant 1942), Kaldor, Denison, Rowthorn & Singh, Paul Romer.
LEI DE FABRICANT (1942)
. ver no Maurice Scott, p. 340
. a taxa de crescimento da produtividade do trabalho nos diferentes ramos da indústria de um mesmo país em dado período depende da taxa de crescimento do produto.
LEI DE VERDOORN (Maurice Scott, p. 337):
A taxa de crescimento da produtividade do trabalho na indústria entre diferentes países e períodos depende da taxa de crescimento do produto:
g - gL = a + b * g
gL = -a + (1-b) * g
Scott na p. 341
g - gL = f(g), com 12 países,
achando
g - gL = 0,0052 + 0,77 * g,
com r^2 = 0,91 e os erros padrão de estimativa dos parâmetros sendo Ea = 1,2) e E(1-b) = 9,8.
[Se bem lembro, â não difere significativamente de zero, ao passo que (1- ^b) é super significativo.
LEIS DE KALDOR
. Maurice Scott, p.340, seguindo Thirwall
1. a indústria de transformação é a locomotiva do crescimento, pois induz o crescimento dos demais setores da economia nacional
2. o crescimento da produtividade do trabalho na indústria de transformação gera crescimento da produtividade (é a Lei de Verdoorn)
3. crescimento rápido na indústria de transformação também gera crescimento rápido na produtividade de toda a economia, e isto também é função do grau de maturidade da economia: quanto mais madura, menos cresce, daí o catching-up e daí o Paul Romer (em 1986) e sua teoria do progresso técnico ilimitado
4. o crescimento rápido na indústria de transformação depende do crescimento global, inclusive no mercado externo
5. acrescentada depois do primeiro artigo: sucesso gera sucesso e fracasso gera fracasso.
E. CONVERGÊNCIA INTERNACIONAL
A grande questão sobre a convergência das rendas per capita dos diferentes países é se os Estados Unidos receberam o troco do Japão sobre o que fizeram para a Inglaterra e esta fez para a Holanda. [Não sei por quê omiti a Coreia e nem falei na China, pois ela ainda não tinha despontado em minha cartilha]. E a discussão centra no papel do crescimento do estoque de conhecimento disponível para a sociedade..
Paul Romer, em 1986, desenvolveu um modelo em que diz que o crescimento da produtividade do trabalho não tem limite, dado que o aumento do conhecimento humano tampouco é limitado. [Ver para crer; até agora parece que isto é verdade e o dia que a produtividade estancar, o capitalismo quebra, de acordo com a lei do valor, essas coisas]
De qualquer modo, coloca-se a pergunta: Os Estados Unidos perderam a liderança na geração de novas tecnologias? E a resposta é de Nelson e Wright (1992]: a internacionalização da economia reduziu a importância dos sistemas nacionais de inovação, pois a tecnologia de ponta é hoje disponível a todos os países do mundo.
Mas que dizer da hipótese da convergência? Desenhei no quadro-negro [era assim naqueles tempos] a estilização de um gráfico cartesiano, associando, no eixo dos xx, a produtividade do trabalho medida em homens por hora e, no eixo vertical, o dos yy, a taxa de crescimento da economia. Meu desenho no quadro-negro estiliza uma correlação linear com valores decrescentes para, respectivamente, Japão, Suécia, França, Alemanha, Itália, Estados Unidos, Reino Unido, Austrália. Que diz isto? Quanto maior a produtividade em 1870 (ergo século XIX), menos foi o crescimento econômico. Pura convergência! Os autores mostram a equação
g = 5,25 - 0,75 ln Y1870, com r² de 0,88. [Olhando agora, acho que eu disse uma bobagem na aula, se é que não foram esses autores. Disse eu que, deslogaritmando, teríamos g = 190,6 * Y^-0,75. Parece-me agora que eu deveria ter dito g^e, não é isto?]
F. CONVERGÊNCIA SETORIAL
Na visão de Dollar e Wolf, outra grande questão é saber se os movimentos da produtividade agregada têm origem em divergências ou convergências setoriais.
. Claramente a produtividade agregada é uma média das produtividades (PIBi/Li) setoriais do país ponderadas pela participação de cada setor i no emprego total Lt, o que chama a atenção para dois fatores influenciando a produtividade total da economia:
... as produtividades setoriais
... a estrutura setorial do emprego
Agora desejo fazer um breve referência ao Modelo de Hecksher-Ohlin do comércio internacional, caracterizado pelos seguintes contornos:
...... se os preços dos fatores de produção são equalizados entre diferentes países, então suas produtividades em cada indústria específica também serão idênticas
......isto implica que os países terão a mesma produtividade do trabalho nas diferentes indústrias
...... países com diferentes níveis do estoque de capital terão diferentes frações do PIB setorial mundial do setor
...... voltamos a ver que as diferenças na produtividade agregada se devem a diferentes composições industriais.
Os resultados de Dollar e Wolf são que os USA têm mantido a liderança na produtividade do trabalho, embora esta liderança venha sendo reduzida (novamente a convergência)
... Mas já em 1982, os USA, não tinham liderança mundial na produtividade de alguns setores
...... Estados Unidos lideravam em: química industrial, outra química, papel e papelão, borracha, vidro, mecânica, material de transporte, material elétrico, alimentos, indústrias de precisão.
...... Outro líder: aço-Japão, Metais não-ferrosos-Austrália, Editorial-UK, plástico-UK, Cerâmica-Itália, Produtos de minerais não metálicos-UK, Bebidas-UK, Refino de petróleo-Alemanha, Produtos do carvão-França. E a Itália liderando nos seguintes setores:
Produtos metálicos, Têxteis, Vestuário, Couro, Calçados, Mobiliário e Madeira e Diversas.
...... Mais recentemente, tem-se sugerido que os USA têm-se destacado na informática, nos armamentos e no material de transportes (automóveis).
G. TRAÇOS DA LITERATURA SOBE DESINDUSTRIALIZAÇÃO
. Appelbaun e Schettkat (página 621)
. a desindustrialização tem causas endógenas: "... as elasticidades da demanda pelos produtos industriais com alto crescimento da produtividade declinam com as rendas crescentes e a acumulação de duráveis de consumo nas economias industrializadas. [...] De acordo com este modelo de desenvolvimento pós-industrial, o crescimento do emprego depende da expansão de indústrias com baixo crescimento da produtividade." E nas de alto crescimento da produtividade, gera-se pouco emprego.
. [o texto que estou traduzindo agora pode ou não ser de minha autoria, pois perdi o controle. Tem uma citação entre aspas que, em qualquer caso, não é minha.]
A experiência internacional foi demarcada, de uma parte, pela chamada hipótese de Clark-Fisher relativamente às previsões feitas em 1939-40 no sentido de que os serviços viria a ser o setor dominante no que diz respeito à formação do valor adicionado, tendo em vista o funcionamento da Lei de Engel concernente às indústrias produtoras de bens de consumo tradicionais. Park e Chan (1989: 200-211), lidando com uma matriz de insumo produto para 26 países no início dos anos 1970, permitiu-lhes concluir:
"[...] o papel catalítico da indústria poderia desempenhar um papel na expansão das oportunidades de emprego por meio da demanda inter-industrial por insumos dos serviços e a demanda induzida por vários tipos de serviços."
No entanto, o artigo clássico de William Baumol (1967) mostrou que a dificuldade do setor serviços em gerar ganhos de produtividade tão importantes quanto os setores produtores de bens tem uma tendência ao estagnacionismo.
DdAB
.a a saída para a nivelação dos níveis de produtividade do trabalho é mesmo a social-democracia. E a luta intransigente pela implantação do governo mundial, financiando a renda básica universal com o imposto de Tobin, 5% do volume diário de transações financeiras inter-fronteiras nacionais.
. aquela turma que acha que o nacional-desenvolvimentismo tem algo a ver é porque não assistiu a minha aula nem seguiu a minha lista de leituras. Se em 1992, poderíamos pensar em repensar o conceito de sistema nacional de inovação, que dizer em 2019, quando ainda tem gente chorando a desindustrialização do Brasil.
. mesmo sem a China, eu entendi isto há 30 anos. James Clifton é um dos milagrosos, além de meu orientador do doutorado, o finado Mr. Andrew Glyn.
. a imagem lá de cima é minha homenagem aos esgotos, que ainda fazem falta a mais da metade da população brasileira. No mínimo a indústria dos minerais não-metálicos teria um impacto positivo, pois os canos são produzidos por ela. E a indústria 4.0 não é um delírio, pois tem a consequência prática de desviar a atenção de muitos economistas do problema da desigualdade e de uma dinâmica da sociedade igualitária com a produção pública de bens públicos (segurança, o próprio saneamento) e bens meritórios (educação, saúde). Vê-se cada uma!