03 agosto, 2019

Socialismo e Eficiência: de S a Z


Ontem vivi uma experiência extraordinária. Fui tomar uns tragos com três casais de amigos naquele proverbial Bar Pedrini de Petrópolis. Falo de Porto Alegre, Brasil. Os assuntos mais interessantes pouco tinham a ver com minha filosofia política... Mas é dela, de um traço dela, de um pedacinho dela que desejo falar nesta postagem.

Aquele S de socialismo também é um S de Sabino, meu querido amigo e eterno professor Sabino Porto Jr. Já não lembro como o assunto de que tratarei lá adiante iniciou. O fato é que eu fiz uma afirmação com aquele canto da boca que não se ocupava de destrinchar um pedaço (muito do saboroso) de polenta frita coberta com neves queijolinas.

AFIRMAÇÃO:
O problema do capitalismo é sua ineficiência distributiva, embora suas demais dimensões (produtiva e alocativa) sejam irreprocháveis.

Ok, ok, não falei bem assim, pois isto atemorizaria o garçom e precisávamos de renovar alguns pedidos, chamando-o.

Mas a ideia está dada. Só que não, só que precisamos dimensionar adequadamente o significado do termo eficiência. Acabo de olhar a Wikipedia aqui. E vim a entender haver-me enrustido num tema muito maior que a montanha de paralelepípedos de polenta queijolina. Mas nem li tudo e abandonei a empreitada, atendo-me a conceitos que nem estão explicitados adequadamente naquele verbete. E fiquei com meus conhecimentos anteriores ao bar e à Wikipedia, no nível em que volta e meia venho falando aqui neste blog.

Minha referência para discutir eficiência é o modelo de concorrência pura. Bem sei que tem uma turma que odeia esta expressão, por não entender tratar-se de um modelo e não de concorrência pura. Sabidamente, concorrência pura não existe, da mesma forma que tênis Olympicus ou unicórnios não existem. Quero dizer, o unicórnio é mais fácil de ter sua existência negada. Mas um tênis também é meio estranho. Refiro-me à filosofia de Platão, com aquelas encrencas sobre o coelho ideal e o coelho real. Parece que comecei a modelar estas coisas com base nas leituras do livro de introdução à filosofia de Carlos Roberto Cirne-Lima. Quando vejo um coelho, estou inspirado na realidade realmente real para capturar algo na minha realidade imaginada. Quer dizer, existe um mundo real que não nos é acessível e outro ao qual temos acesso truncado e um tanto esmaecido. Mas ainda assim conseguimos viver adequadamente (most of the time) nesses contornos pluridimensionais.

Um modelo ainda mais abstrato que o tênis Olympicus de que falei lá atrás é o da concorrência pura ou perfeita. E a diferença entre 'pura' e 'perfeita' é que na segunda supõe-se que os agentes relevantes detêm informação completa sobre os eventos relevantes. Se bem lembro das aulas de microeconomia que preparei em 1979, o gráfico que agora exibo representa os dois casos, além -se bem entendidos- o caso do unicórnio e o do tênis Olympicus.
abcz
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abcz

Começa que não sabia bem o que é "paned", pensei que fosse "pannel", uma figura com dois painéis. E é algo parecido. No dicionarinho Oxford que me foi dado pelo Conselho Britânico em 1977, lemos: "pane - n. single sheet of glass in a division of a window." Dei-me por satisfeito: é painel mesmo... Então temos na parte (a) a modelagem da lei da oferta e procura aplicada ao mercado de -pura coincidência- tênis Olympicus. Tem uma curva de oferta, outra de demanda e sua interação gera o preço de equilíbrio daquele mercado específico. E serve para milhares de outros mercados em que as curvas D - de demanda - e S - de oferta - estão modeladas. E temos no painel (b) várias estilizações. A primeira é a da curva de receita média (bem naquele nível do preço de equilíbrio P apontado no painel (a), aliás, curva que é reta, dizendo que, qualquer que seja o nível de produção que lemos no eixo horizontal, o preço daquele mercado tal como aparece para a empresa retratada no painel (b) será aquele mesmo P. Então vemos por ali uma turma de signos: P = D = AR = MR (preço = demanda = receita média = receita marginal).

Podemos ver que é tudo igual: o preço, a curva de demanda daquela firma, sua receita média e sua receita marginal. Depois temos uma curva chamada de ATC, que é a que nos interessa para falarmos do conceito de eficiência que adoto . Vemos que ATC é tangente a P no ponto Q1, isto é, quando a empresa produz a quantidade de tênis Olympicus Q1, digamos 250 mil pares, seu custo médio é de P (digamos, D$ 95). E também vemos que a curva MC passa precisamente por esse ponto. E as demais curvas da figura gentilmente cedida pela sra. Internet não nos interessam.

Com isso nosso circo está armado:

.a aquela interseção entre a curva de custo médio de longo prazo e o custo marginal informa que a quantidade Q1 é produzida ao menor custo médio possível, id est, estamos observando uma situação em que há eficiência produtiva. Claro, pois produz-se com o melhor aproveitamento dos recursos possível.

.b aquela tangência entre P e ATC (o preço e o custo médio total) diz-nos que, em concorrência pura, também observamos eficiência distributiva, pois não há lucro extraordinário, isto é, a empresa está recebendo apenas (mas todo) o lucro que lhe permite pagar o custo de oportunidade pelo uso do capital que possui.

.c por fim, aquela secância, isto é, o ponto em que a linha do custo marginal intercepta a linha do preço, está apontando para a existência de eficiência alocativa: a sociedade está pagando um preço P exatamente para cobrir o custo em que a empresa incide para produzir um par de tênis a mais do que vinha produzindo.

Melhor dos mundos. Só que não: este mundo não existe, aliás, nem o coelho ideal, nem o tênis ideal, nem o unicórnio, nem a linha reta, nada dessas coisas existem. O mundo da realidade imaginada é um mundo de areia movediça: por instantes pensamos que estamos capturando a realidade realmente real, mas é tudo tão fugidio quanto a água morro abaixo. Mas é bem para isto que serve um modelo: leva-nos a ter a sensação de que dominamos a realidade realmente real, quando temos apenas compreensão fugidia do mundo da realidade imaginada por nós. E, como sabemos, nós não aguentamos nem um segundo sendo a mesma pessoa: no segundo t + 1, já somos mais velhos que em t. E aí tudo da realidade realmente real também terá mudado, inclusive o coelho ideal lá do velho Platão.

Pois agora volto ao prof. Sabino. A certa altura, tentando conseguir a simpatia do dr. Mauro Sálvio para me passar aquele pratão de polenta queijolenta, disse-lhe ter abjurado o socialismo há mais de 30 anos. Ele indagou: "só 30?", passando-me o prato. Confirmei e disse ao prof. Sabino que o capitalismo é maravilhoso, exceto no que diz respeito à eficiência distributiva. Nosso professor paraibano bem sabia sobre o que eu falava e manifestou todo seu apreço a este tipo de visão de mundo.

Entendo e acho que ele também entende que, com este tipo de visão, ao abjurarmos o socialismo, somos levados a aceitar que o capitalismo é a formação econômico-social que melhor pode servir a humanidade no presente momento de sua/dela/humanidade evolução institucional. Ainda não foram criados (e talvez não sejam nunca, mas acho que poderão ser criadas um dia) arranjos institucionais que favoreçam a produção eficiente (custo médio mínimo e preço igual ao custo marginal) num regime de inexistência de propriedade privada dos meios de produção. Ou seja, não estamos falando de meios de consumo, tal como é o caso da escova de dentes que o prof. Sabino carregava no bolso e, fui lembrando, daquela que guardo em casa. Ele não empresta a dele para ninguém e tampouco eu o faço: como dizia meu então próximo amigo Hermes Aquino, são bens amplamente individuais.

E aquele "Z" de zocialismus? (???). É minha homenagem ao prof. Zander Navarro que, há 35 anos, me contou uma história sobre escovas de dentes. Para impedir que o Algoritmo saiba mais detalhes sobre a vida de nosso valente sociólogo, metade do que segue é ficção, mas trata-se de ficção comprovável. Pois digamos que Zandão tenha ido a um congresso de sociologia, em 1985, realizado na cidade de Brno, na então Tcheco-Eslováquia. Por que Brno? Pois lembro que não era Praga, nem Bratislava, mas não lembro o canto interiorano. O fato é que Brno é a cidade que deu nome à cadeira que nos encima, projeto de Mies van der Rohe, o carinha que disse ser mais fácil produzir um bom arranha-céu do que uma boa cadeira. Ok: Zandão está na soi disant aldeia Brno.

Coça o bolso da calça, não dá por sua escova de dentes, nem deveria... Mas vai às malas, bagagem de mão, bloco de notas, pilha de transparências, olha e reolha. Não encontra sua propriedade privada: a escova de dentes. Desespera-se, pois é um homem de hábitos de boca limpa. Já instalado em seu apartamento do hotel de Brno, as malas abertas sobre a cama, tudo de uma limpeza exemplar, desce à recepção e indaga onde pode adquirir uma escova de dentes. Informam-no que deve dirigir-se a uma das farmácias desta cidade.

Ok, ok. Minha história não está sustentada por minha imaginação: Brno hoje é dada na Wikipedia como tendo 400 mil habitantes. Acho impossível que não tenha mais de uma farmácia. Mas sigamos, mudemos: Zander não encontrou escova de dentes naquela aldeia, embora tivesse um quarto limpo, perspectivas de um bom café-da-manhã e outras amenidades compatíveis com a vida moderna.

Ele queria porque queria escovar os dentes, lembrando-se com saudades daquele espécime que ele esquecera no transbordo do avião entre Paris e Brno. Fato verídico: ele me contou que, já espicaçado por curiosidade sobre o modo de vida na sociedade socialista, decidiu caminhar até a cidade mais próxima, pois duvidava de que lá tampouco haveria escassez de escovas de dente. Abreviando a história: não encontrou nada. E ficou preocupado com este tipo de deficiência da economia tcheco-eslovaca. E eu também, tanto é que, anos depois do incidente e do relato, vim a entender que o verdadeiro problema econômico do socialismo é mesmo a ineficiência alocativa: há setores produtores de bens de consumo corrente muito do triviais que não conseguem prover as necessidades de toda a população.

No capitalismo, um indício de ineficiência alocativa é a existência de lucros extraordinários, isto é, lucros que não seriam obtidos em aplicações alternativas e se devem -quase sempre- ao poder de monopólio da firma ofertante. E no socialismo, aquela equação de Lange-Taylor dizendo que a variação de estoques dos produtos prontos é um razoável indicador do excesso ou da escassez de oferta.

Concluo: por que desprezar as melhores virtudes do capitalismo por causa de uma deficiência que talvez até seja intrínseca a seu modo de funcionamento? Falo na linha daquelas leis da centralização e concentração do capital. Por que não corrigir o problema precisamente onde ele se encontra? No caso, se o problema é da dimensão distributiva, a solução é re-re-distribuir. Aliás, hoje em dia, está na cara que o mercado de trabalho já deixou há muito tempo de ser o principal elemento da distribuição da receita total dos compradores.

DdAB
P.S. O prof. Flávio Comim, que não se escondia, portanto a tudo assistia.
P.S.S. às 23h20min deste domingo, corrigi um lapsus linguae e outros errinhos de digitação.

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