19 outubro, 2017

Eu, Pedro Fonseca e a Desindustrialização


Querido diário:

Como é sabido, o burro sempre vem na frente (da carroça e sua preciosa carga...). Então, pelo eco, o segundão é o prof. Pedro Cézar Dutra Fonseca, que só não foi meu professor, pois não aceitou dar-me aulas particulares, eis que o conheço desde 1979. E agora? Ainda falta falar em desindustrialização, outra tripulante da carroça que, com galhardia, propus-me a puxar.

É que ele, Pedro, tem um artigo sobre ela, a desindustrialização. Publicou-o em sua já tradicional e quinzenal coluna em Zero Hora. O trabalho de hoje ocupa o canto superior esquerdo da página 18. Intitulando-se "Indústria em Marcha a Ré", comenta o fato de que a indústria brasileira teve sua participação no PIB mergulhando de 32% para 10%. O autor lamenta que

[...] mudança estrutural de tal vulto seja negligenciada tanto pelos sucessivos governos quanto nos debates, inclusive por associações empresariais. Há quem considere o fato normal, pois no mundo inteiro se verificaria tal tendência. O chavão é que a economia do futuro é a dos serviços, como se estes não dependessem de bens industriais intensivos em alta tecnologia e pudessem ocorrer sem inovação e maior produtividade no setor industrial. 

Essa encrenca de tendência mundial não é bem assim: interessa-nos falar nos países ricos, pois ninguém aguenta pensar em Angola (e a extração de minerais, o petróleo), esses paisecos de baixíssimo desenvolvimento institucional. Aliás, chamar o que está ocorrendo no Brasil de "desindustrialização" (ignorando o termo "precoce", como aliás foi o caso da própria industrialização brasileira: precoce, pois a participação do setor no PIB não era compatível com igual fenômeno dos países originalmente industrializados com seu grau de renda per capita muito maior que o de cá). Pois bem, já contei na literatura que costumo compulsar mais de 250 milhões de conceitos de desindustrialização, eu mesmo sendo responsável por uns 1.000. Mas atenho-me, neste tipo de discussão, ao conceito de Bob Rowthorn e John Wells:

.a o PIB setorial cresce (o brasileiro o fez)
.b o emprego cai (o brasileiro caiu de forma super dramática)
.c a participação no comércio exterior aumenta (mas mas mas o brasileiro mergulhou no abismo, como vemos nas cifras citadas no artigo: de 2,6% do comércio mundial em 1980 para 1,4% "hoje").

Essa encrenca de chavão esdrúxulo não é bem assim: não é assim que o Brasil alcançará virtudes econômicas no futuro. Mas os serviços de fato reservam importante recompensa para quem neles aposta. Não, talvez, o que o prof. Pedro está mentalizando. Queremos educação, saúde e segurança, os dois primeiros classificados de bens semi-públicos (com incontestes méritos atribuídos a eles) e o segundo claramente um bem público puro (portanto, sem possibilidade de exclusão dos consumidores, uma vez prestado, não podendo ser racionado e, principalmente, não podendo excluir ninguém de seu consumo).

Indo aos detalhes: claro que os serviços de refrigeração doméstica de alimentos requer a prestação do serviço de uma frigidaire (no dizer gaúcho do refrigerador). Mas não se encontra no décimo primeiro mandamento das leis digitadas por Moisés que o refrigerador precisa ser made in Brazil. Ou que o computador, ou que o avião a jato, ou que a bomba atômica... E, cá entre nós, não se precisa de grandes tecnologias para produzir domesticamente um refrigerador. Aliás, nem para processar dejetos urbanos, na forma de lixo ou esgoto.

Ok, mas dei um salto quântico: agora estamos falando da indústria, especificamente, os serviços industriais de utilidade pública. Como falar em robótica ou indústria 4.0 quando o Brasil não dá conta nem de prover esgotos para toda sua população? Metade ainda não é servida pelo serviço. E o lixo urbano? O governo promoveu uma terceirização paralela, delegando a trabalhadores informais e precaríssimos a coleta de parte substantiva dele lixo.

Qual é o problema de irmos comprando essa ideia de que é melhor produzirmos refrigeradores em detrimento da produção de escolas e seu uso para prestar serviços educacionais? Gosto de meu chope gelado, bem admito, mas detesto ser servido por um serviçal semi-analfabeto. Gosto de ir ao banheiro depois das drummondianas 11 rodas de chope. E aí já me defronto novamente com o problema da falta de mão de obra: um banheiro que é uma banheira, com frequentes entupimentos e vazamentos. Cá entre nós: produzir bisturis atômicos quando não produzimos boas manilhas? Querer que nosso garçonzinho analfabeto torne-se programador de máquinas da indústria 4.0... Só bebendo...

Mas tem mais:

   Mais dramático é pensar que se está depreciando o esforço que foi feito por mais de uma geração, principalmente entre 1930 e 1980, inclusive o trabalho incessante de homens como Euvaldo Lodi, Roberto Simonsen, Rômulo de Almeida e Oziris Silva em prol do sonho de um país com alto patamar de industrialização e liderança tecnológica.

Aqui estamos quase no fim do artigo e de meu tema. E faço este parágrafo rimar com aquela citação lá de cima, quando o autor fala em "sucessivos governos". Cá entre nós, um governo que produz aviões a jato, como o brasileiro já o fez, mas não provê serviços de esgoto, educação, segurança, saúde, aquelas coisas dos bens públicos ou de mérito só pode ser considerado uma excrescência erguida à margem dos interesses da sociedade. Creio que a maior prova do erro estratosférico dos rapazes citados por Pedro Dutra Fonseca e por ele mesmo himself é que não entenderam que não adianta industrializar com enormes subsídios governamentais e deixar a negadinha ao deus-dará em matéria de educação, moradia, alimentação, uma série de bens e serviços que não caem do céu. E que surgirão ainda menos da terra, se os recursos terráqueos forem usados para atendimento de um enclave populacional. Quer uma economia de massas? Pois crie bens e serviços que atenderão às massas.

Quer uma sociedade igualitária? Tribute os ricos e dê o dinheiro para os pobres na forma de renda básica e de outros gastos governamentais que gerem capital humano!

DdAB
P.S. A imagem da foto lá de riba veio daqui. Neguinho, para tacar fogo no mato, não precisa de escola, não é mesmo? Só dá pra ver que é pós-cabralino por causa do boné, do cinto e da bermuda.
P.S.S. Que é indústria 4.0? É a que não é nem 1.0, nem 2.0, nem 3.0. Pois voltemos: a indústria que agora, por piada, estou chamando de 1.0 é a tradicional indústria forjadora da revolução industrial na Inglaterra e daí se generalizando, inclusive no subúrbio tipo Brasil. É a revolução da incorporação à fábrica, à indústria têxtil, da geração de energia por meio do vapor gerado a partir do carvão de pedra, tipo 1780. E a 2.0? É a do final do século XIX, especialmente nos Estados Unidos, mas também fortemente na Europa, da geração de energia a partir do motor a explosão e do motor elétrico. Gerou-se o automóvel e o refrigerador. E a 3.0 é a chamada revolução da informática que alguns datam a 1973, por razões ainda a serem amplamente divulgadas e aceitas. E que é a quatro ponto zero? Diz-se hoje das novas tentativas de incorporação de mais e mais tecnologia informacional dentro da fábrica. Esta deve ser avaliada de acordo com o modelo alemão, que prevê a produção de automóveis e refrigeradores praticamente com zero trabalho, ergo, pronta para aniquilar o modelo chinês, que -cá entre nós- foi quem aniquilou o modelo do fordismo.
P.S.S.S. Quando se clama por mais organização, por inveja aos alemães que fizeram aquele 7x1 fraudulentamente, pois criaram dezenas de escolinhas de futebol em todo seu território, penso que deveríamos começar com escolas, enrustindo nelas e não o contrário, escolinhas de futebol.
P.S.S.S.S. Claro que minha visão do que faz a renda crescer é a população (lembrar aquele VAdic = f(População) da postagem de 18 de setembro (aqui)? Esta visão não chega a contrariar aquela que diz que o valor da produção (ou mesmo a oferta total) é função do uso dos fatores de produção, trabalho qualificado e não-qualificado, capital físico, capital humano e capital social, além das matérias primas). Mas minha visão daquele VAdic = f(População) tem a vantagem de mais facilmente substituir a variável explicativa População por, por exemplo, demanda efetiva, demanda agregada. Com isto, chegamos a Keynes e, o que dá na mesma coisa, a Marx e Engels. Keynes tem seu modelo popularizado com o dístico "quem manda é a demanda". Para Marx, o produto que não dá seu salto mortal, ou seja, o produto que não é vendido, não pode nem mesmo ser chamado de mercadoria. E, se nada viesse a ser vendido nunca, o que aconteceria seria o colapso da sociedade capitalista. Em outras palavras, se garantimos o salto mortal (absorção pela demanda final), então também estamos garantindo a geração e a apropriação do valor adicionado.
P.S.S.S.S.S. E ainda tenho mais registros:
.a crescimento eterno por meio do setor serviços: transportes (lua de mel nos anéis de Saturno) e saúde (alcançar 1 bilhão de anos de idade, para começar)
.b a impressão em 3D: ela sim, mais que a indústria 4.0, é a verdadeira ameaça ao emprego, mas a salvação. Basta dizer que haverá moradores de plataformas espaciais que serão impressas e colocadas em outras órbitas espaciais.
.c o lag tecnológico do Brasil pode virar virtude, pois poderemos viver com o prazo do esgotamento das patentes de atraso: ou seja, quando vencer a patente da produção, digamos, de um iPad, metemos a criatividade dos capitalistas brasileiros a construí-lo, sem pagamento de royalties.
.d mas nem tudo são flores: ou melhor, no dia em que o deserto do Sahara for domesticado, as flores chilenas e até a soja mato-grossense estarão ameaçadas em suas exportações para a Europa.
P.S.S.S.S.S.S. Pra não dizer que meu artigo teve custo zero:
fora o título.

4 comentários:

Roger disse...

Contador de palavras é do Ubuntu, gostei mais ainda!

... DdAB - Duilio de Avila Berni, ... disse...

Pelo que vejo, Roger, és um praticante do mundo Linux/Ubuntu. Eu sou um novato, pouco mais de um ano. Mas a opção é irreversível, ainda que eu pague um preço desagradável. Por exemplo, não sou bom em fazer gráficos ou na álgebra das matrizes que são muito necessárias para minhas investidas na modelagem não-econométrica.
DdAB

Unknown disse...

Duilio,
tens toda razão quando dizes que indústria sem os serviços públicos básicos é quase uma piada. Há um modo de pensar que é capaz de enfocar um tema/problema separando-o do todo. Claro que assim, tanto a análise quanto a "solução" ficam mais fácil. E o todo? Bem, esse permanece nas sombras, como todo/as aquele/as que não dispõem dos bens públicos e semi-públicos a que te referiste.
Forte Abraço!

... DdAB - Duilio de Avila Berni, ... disse...

Pois então, Pedro! Claro que meu modelo não falou explicitamente na origem do dinamismo que pode fazer o sistema evoluir e modificar-se. Não sou especialista em teoria do crescimento, mas não posso deixar de conjeturar que mais educação e mais esgoto certamente contribuirão para uma força de trabalho mais treinada e mais apta, ela mesma, a incorporar progresso técnico, elevando a produtividade do trabalho e, com ela, a produtividade geral da economia. Há anos li o livro biográfico de Akio Morita (o neguinho da Sony) e ele fala que na Nissan recolhiam-se mais de um milhão de sugestões de melhoria de serviço por ano. Aquilo marcou-me. Imagino quantas sugestões aparecem no Brasil e se haveria qualidade para processar um número tão fantasmagórico.
Abração.