07 março, 2017

Machado Enxada Foice


Querido diário:

O título desta postagem tem de relevante apenas mesmo o nome de Machado de Assis. Mas evoca uma piada familiar: um parente de Porto Alegre, que cuidava de outra parente hospitalizada, enviou este telegrama aos parentes de Cacequi. Machado não era o de Assis, mas um daqueles Machado Menezes que por lá perambulou. Enxada não é enxada, mas inchada, a coroa hospitalizada tinha uns inchaços de deixar qualquer enxada vexada. E foice não é foice, mas foi-se, ou seja, a garota inchada morreu, faleceu, desencarnou: "Machado, inchada foi-se". Funéreo, como o presidente da república.

Em compensação, acabei de ler o livro

SANTIAGO, Silviano (2016) Machado. São Paulo Companhia das Letras.

que já declarei na postagem que por aqui fiz no dia 1o. deste mês que provavelmente será minha best reading do ano. O cara é um monstro, o cara Silviano e o cara Machado de Assis, mas tem mais monstros, alguns até que nem tanto, mas tem monstro para admiradores de meu porte ficar/mos feliz/es. O livro do ano. Praticamente eleito. Duvido que haja algo mais criativo. Mas em breve lerei obra assemelhada de Silviano Santiago sobre Graciliano Ramos.

Não farei digressões sobre como voltei a conviver com Machado de Assis, digamos, no ano 2000, que, em janeiro de 2001, aquele triste ano, estava eu em Nova York lendo, se bem me lembro, lendo as Memórias Póstumas de Brás Cubas. Era um momento em que eu decidi vivenciar a negadinha que escreve na língua portuguesa do Brasil com enlevado desvelo. Não demorou que caí em Graciliano Ramos, outro monstro.

Pois não é que, no livro Machado, tornei-me viajandão ao marcar de cima algumas expressões usada por Silviano Santiago que me parecem retiradas de nossa língua falada contemporânea, ele que escreve magistralmente (e como escreveria de forma diversa um monstro?). Claro que não estou fazendo uma tese de doutorado em literatura ou aritmética, logo minha caça a expressões peculiares não é invulnerável, ou seja, houve furos. Vejamos:

Páginas
37-38 a destreza visionária dos que são dotados pela natureza com o controle das sutilezas desentranhadas da análise psicológica que se detém em nonadas
. obviamente o autor do livro "Machado" leu "Grandes Sertões" de J. G. Rosa e tirou de lá a palavra "nonada", ainda que pudesse tê-la ouvido em outros contextos, pois também (como Joãozinho) era mineiro (e neste caso, da cidade de Formiga, sendo o outro caso, de Cordisburgo).

38 o monarquista [Carlos Laet] decide enfrentar abertamente os donos do poder nacional
. obviamente Silviano Santiago está citando o livro "Os donos do poder", de Raymundo Faoro, ou tu achas que nosso autor não leu o outro autor?

46 Dá de cara com a altiva e sereníssima figura de Machado de Assis a presidir os trabalhos.
. pimba: temos agora um caso em que Silviano Santiago colheu rico material etnográfico com o povo brasileiro e o homenageou pela citação em minha melhor leitura de 2017. Dei de cara com esta expressão super coloquial.

54 também somos todos, se associados uns aos outros pela cabeça, tronco e membros, pereitamente substituíveis no correr dos séculos.
. bem, aqui não me lembrei de nada evocativo de cabeça, tronco e membros, a não ser as aulas do segundo ano do ensino fundamental da profa. Abigahil, que assim dividia  (no sentido técnico e não de açougue) o corpo humano. Mas, por tabela, evoquei o que ele -Silviano- vai citar lá adiante o presente, passado e futuro, do disco de Sá, Rodrix e Guarabira.

63 Deus existe para escrever direito por linhas tortas.
. nada preciso dizer, a não ser que fui induzido por Maria da Paz Brasil a ingressar na campanha "Ateus, saiam do armário", o que fiz bem antes de começar a escrever "Fora Temer". Fora Temer, foi golpe, sim. Hahahaha.

76 O Seixas, desenho de Raul.
. temos agora uma ilustração de um Ortigão (de Walt Disney, se é que é o Hortelão), um bicho humano feio pra burro, com uma barba de dois meses, cabelo desgrenhado e olhar desabotinado. Mas, ao associar Seixas com Raul, juro que Silviano Santiago estava pensando mesmo era naquele "Toca Raul", que deve ter ouvido algumas vezes nestes últimos dez ou 11 anos.

91 Nas apinhadas matinês e soirées carnavalescas e nos elegantes e endiabrados bailes de máscara realizados no antigo Teatro São Pedro, denominado João Caetano nos anos 1950, a marchinha 'Vaga-lume' era cantada a plena voz pelos foliões:

Citação de Silviano:
Rio de Janeiro
Cidade que nos seduz
De dia falta água
De noite falta luz.

Abro o chuveiro
Não cai nem um pingo
Desde segunda
Até domingo.

Citação de DdAB
Eu vou pro mato,
Oi, pro mato eu vou
Vou buscar um vaga-lume (!)
Pra dar luz pro meu chatô.

. também do dia 1o. de março, temos na postagem a sequência do texto de Silviano.

94 na boca da petite histoire carioca, se transformou no chute inicial, ainda na corte imperial, da carreira do engenheiro Paulo de Frontin, que será aclamado definitivamente pela população da capital federal em 1904.
. o que nos interessa aqui é apenas o "chute inicial", que alguns locutores de futebol cuja cabeça porta um bola vazia, de "pontapé inicial", o início da partida do ludopédio e, por extensão, o início de qualquer atividade humana.

110 o Acaso abre para o jovem imortal um novo percurso - o da doença crônica, ou da morte sempre anunciada, ou ainda da possível sobrevivência pela cura.
. morte anunciada? Estamos falando de Gabriel Garcia Marquez, não é mesmo? O jovem imortal é, sem querer estragar a festa da leitura de Machado, Mário de Alencar, filho de José de Alencar, praticamente jogado na academia brazileira de letras por Machado de Assis, ambos epiléticos e ambos M. de A. E depois pintará outro M. de A.

152 Ao pai médico, o gestual juvenil e aloprado parece manifestação precoce do gosto adolescente pela carreira teatral.
. fala-se agora de Gustave Flaubert, também epilético, veja só a trama como se alastra. Aloprado? Conheci O Professor Aleprado", com Jerry Lewis atuando e dirigindo. O filme -dizem-me- é de 1963, ano em que concluí o ginásio no Colégio Júlio de Caudilhos. Parece que meus colegas Henrique Reguli, Carlos Leonardo Guimarães e outros já ouvíramos falar na palavra aloprado, talvez um ou outro de nós mesmos, ou algum professor, tendo recebido o epíteto. Mas o verdadeiro aloprado que levou -suponho, tudo aqui são suposições ou obviedades- Silviano a inserir este "caco" em seu texto elegante foi mesmo a referência que o presidente Lula fez aos rapazes que foram presos carregando moeda sonante (?) nas cuecas: "São uns aloprados", e encerrou o assunto.

153 Acusado pela nova amante Louise Colet de ainda amar a sra. Foucaud, Flaubert não titubeia e abre o jogo.
. Abre o jogo? e lá isto é jogo de canastra que a gente, a certa altura, deve abrir o jogo para o parceiro aproveitar e completar e poder, ato contínuo, baixar suas próprias cartas? Garanto que Silviano e a mulher dele viviam indo para Tramandaí ou Pinhal e jogado canastra com o outro casal com quem comungavam diazinhos de evasão da cidade grande. Ou muito me engano...

160 O espírito está abatido e o corpo - carcomido pelo caruncho da epilepsia - lembra esqueleto decepado de tronco de ipê, semelhante ao cantado em prosa pelo pai do romancista.
. que posso dizer? digo: "tronco de ipê escrito pelo velho José de Alencar", ou seja, tinha gente que considerava o Mário de Alencar como romancista. Nunca li nada dele, nunca li "O Tronco do Ipê" e pouco ou nada li de José de Alencar. Talvez até saibam mais sobre o pensamento de José Alencar, vice-presidente da república nos tempos do lulismo.

178 Na passagem do século [XIX ao XX], antes do bota-abaixo de 1904, compensa e muito a comodidade de morar perto dos vários locais de trabalho e a possibilidade de se socializar com parentes, amigos, colegas profissionais e clientes sem perder muito tempo nos ineficientes meios de transporte.
. puxa vida! O bota-abaixo de 1904 era o mesmo patrão de Paulo de Frontin que hoje é túnel ou viaduto no Rio de Janeiro. O Bota-Abaixo foi o prefeito Pereira Passos, pelo que lembro. Isto quer dizer que havia outro bota-abaixo em outro ano.

201 VI. A escada e o lustre: a solidariedade humana
. então este é o título do capítulo oito. E daí? Tenho algumas razões para imaginar que o velho Silviano estava citando o livro de Raymundo Faoro "O Triângulo e o Trapézio", obra faraônica que comenta o velho Machado de Assis. Escada e lustre, triângulos e trapézios, isto também me cheira ligeiramente a Clarisse Lispector...

212 a praça da Liberdade - o palácio do governo e as três secretarias de estado -, mas também as residências dos amanuenses de alto escalão, localizadas no bairro dos Funcionários.
. arrojo-me a sugerir que "O Amanuense Belmiro", de Ciro dos Anjos, tava na cabeça do Silviano ao escrever esta passagem. Ou eram os jornais da época?

232 Beatriz - se válida para um, se válida para dois, pouco importa - tem, lá nos céus, olhos humanos demasiadamente humanos.
. pois isto também é Nietzsche diretaço: Humano, demasiadamente humano.

233 Partiu desta vida e, no andar de cima, se recolhe ao seu canto, como aqui no andar de baixo os sobreviventes devem se recolher às suas residências.
. então temos agora Camões: alma minha gentil que te partiste tão cedo desta vida, descontente. Ou tu achas que seria mero acaso? O Silviano não é bobo, como já está óbvio.

242 O próprio amor matrimonial [...] é a razão do sofrimento.
. agora sou mais eu myself falando que o próprio Silviano. Evocou-me esta passagem a canção La Llorona: ayer pené por no verte, llorona y hoy peno por que te vi. É muita fumaça para uma fábrica de gelo, hehehe.

259  levando o escritor viúvo, enfermo e solitário a imaginar que as duas protagonistas [dona Carmo e Fidélia, se bem lembro do Esaú e Jacó e do Memorial de Aires. By the way, M. de A., não é mesmo?] por entre as janelas das dúvidas e hesitações, e, no pão, pão, queijo, queijo da insegurança afetiva maior, ele delira.
. aqui vemos a expressão que se dirige à concretude material da realidade tangível: pão, pão, queijo, queijo. Mexendo com a aritmética, constatei tratar-se de uma expressão coloquial que tem o maior número de vírgulas por metro quadrado da literatura latino-americana.

333 Olha a gota d'água que falta para o desfecho da festa.
. deixa em paz meu coração, que ele é um pote até aqui de mágoa: Chico Buarque e Paulo Pontes.

343 A reflexão matinal de Machado clica a fotografia esfumaçada.
. amei esta de Machado clicar algo, sua reflexão ter um mouse, sei lá.

344 Os primeiros folhetins dominicais são assinados por [Joaquim] Nabuco e cutucam com vara curta - abusando da presunção e da injustiça da mocidade, para usar futuras palavras do autor - ideias nacionalistas estreitas de Alencar sobre a produção literária do Brasil pós-Independência.
. cutucar com vara curta é coisa de quem mexe com onça, talvez coisa que todo menino mineiro deve fazer ainda na escola do ensino fundamental. Como sabemos, Silviano acaba de mostrar-nos evidência neste sentido.

344-5 Estuda e acata o pensamento germânico sobre nacionalismo e cultura universal. As recém adquiridas ferramentas críticas lhe dão régua e compasso para medir a importância da obra de Alencar no que estão oferecendo para o melhor conhecimento dos brasileiros e do Brasil.
. aqui também, quem sabe que foi a Bahia que deu régua e compasso a Gilberto Gil? Chacrinha continua balançando a pança e buzinando a moça e comandando a massa.

370 Na comicidade do discurso sem pé nem cabeça, no absurdo que se revela verdadeira por estar colado à desconstrução do saber humano pelo gestual impassível do sofredor e pelas caretas abusivas que ele arma lá  dentro, no íntimo do artista, pelo descalabro nervoso que toma o corpo convulsivo, involuntariamente.
. Sem pé nem cabeça lembra Elba Ramalho e seu bicho de sete cabeças. O que falta cá lhe sobra ulalá. Mas tem mais: Silviano é leitor de Jacques Derrida, pois -se não o fosse - não estaria a evocar o pensamento resumido em desconstrução do bom franco-argelino.

377 A troca de presentes sempre esconde alguma pilantragem arquitetada pela astúcia dos deuses.
. não apenas temos essa óbvia citação à turma da pilantragem, que envolvia dromedários do porte de Carlos Imperial e Wilson Simonal, com também deixa a descoberto a teoria de Marcel Mauss sobre a dádiva.

396 depois de assinada a Lei Áurea, Nabuco baterá de volta à porta do útero familiar. Entrará e, já lá dentro, em viagem na família, se fechara a si com um zíper.
. então. Pois então. Zíper? Olha o que diz a Wikipedia em português: "A história do zíper, fecho éclair ou simplesmente "fecho", começou em 1893 na Exposição Mundial de Chicago, nos EUA, onde esse objeto deslizante para fechar e abrir roupas foi apresentado pela primeira vez.".

401 Na impossibilidade de apreciar a Transfiguração [pintura de Rafael cuja reprodução orna a folha de rosto de Machado] com os olhos que a terra haveria de comer contentara-se com reproduções.
. os olhos que a terra há de comer: uma expressão coloquial que a gente, mortal que é, cita volta e meia. Enquanto ela não come os meus, preparo-me para visitar a pintura e examiná-la detalhadamente e, antes disso, mas nas cercanias temporais do evento, reler Machado.

412 Depois de ter surpreendido a alma e a vida que lhe são oferecidas pelo modelo-vivo, a quem ele ama de paixão, Rafael se entrega - na pintura da tela a óleo - ao trabalho de corrigir as desproporções físicas naturais.

Em compensação, talvez eu deva ler tudo novamente. E ler mais Silvianos. Tem a biografia de Graciliano e tem mais coisa. A orelha de Machado diz que Silviano tem um romance intitulado Mil Rosas Roubadas. Parece-me óbvio que está citando Cazuza. E cito, para concluir, a mim próprio: tchau.

DdAB
P.S. Lá em cima, tudo miniatura cf. aqui.
P.S.S. comentário que fiz no Facebook a uma observação de Josevaldo Duarte Gueiros:
Acho que a que mais me chamou a atenção foi mesmo Machado de Assis clicando com sua caneta de pena e tinteiro... Quando comecei a ler (depois de adulto, quase velho), comecei com o chamado pentateuco machadiano: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e finalmente Memorial de Aires, tudo da Editora L&PM. Depois disso foi-me recomendado o livro de 50 contos selecionados por John Gledson, o que li com verdadeiro prazer literário. Cheguei a espalhar que o grande Machado é melhor contista que romancista... Tempos depois, adquiri as obras completas, da Editora Aguillar. Então li ou reli os romances iniciais, menos consagrados: Ressureição, A Mão e a Luva, Helena (que referes ter lido) e Iaiá Garcia. 
Os editores das obras completas se orgulham de ter quase seis mil páginas. E eu tento ler de tudo, os contos, as crônicas, tudo, pilhas de coisas. Um dia termino...

P.S.S.S. Tá lá no Facebook: "Um dos marcadores de postagens de meu blog é "Economia Política", o que mais uso. Às vezes, uso dois ou três, mas tenho apenas uns cinco. Um deles é "Escritos". Escrevo cada coisa... Hoje fiz uma digressão sobre expressões evocativas no romance "Machado", de Silviano Santiago, que ando declarando ser o que de melhor li ou lerei em 2017. Por exemplo, como não lembrar de Cazuza, se lermos "mil rosas roubadas", que é o título de um dos romances do autor de "Machado". Quer ver? Clique ali [aliás, ele fala até que a memória de M.deA. clicou um blim-blim-blim."

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