06 junho, 2014

A Copa do Mundo e a Desigualdade


Querido diário:

Claro que, num jogo de soma zero, queremos a desigualdade. Queremos, no caso da seleção brasileira (todos os brasileiros?), vencer, exercer a desigualdade sobre todos os demais. E Felipão já falou algo na linha antecipada pelo Planeta 23. Ele quereria pegar um latino-americano na final. O Planeta foi mais específico: 5x1 contra a Argentina. Desigualdade.

Mas o igualitarismo já começa por aí. Não falei em 5x1 contra um dos fracotes da copa. Quero um igual para deixar mais clara a superioridade do sagrado time do Brasil. Sigo a cartilha de Drummond. E milhares de outros poetas e intelectuais que se regozijam com o futebol especialmente nesta época do quadriênio.

Ocorre que o quadriênio ocorre sempre coincidindo com as copas do mundo (desde que estas passaram a ser quadrienais e as eleições brasileiras também. Estas são mais flexíveis que esses, mas ainda estamos no empate, e a dupla Aécio-Eduardo já fala em mudar tudo novamente, uns irresponsáveis, a criar-nos alternativas para votar em Dilma, uma irresponsável...). Por falar em calendário, temos, então, pelo menos temporariamente o segundo paralelismo: eleições municipais e anos bissextos. By the way, o Planeta 23 é a favor da mais desabrida reforma política (voto facultativo, parlamentarismo, extinção dos estados e senado, essas coisas), mas absolutamente contrário à mudança do calendário eleitoral. Candidato que fala em mudar a periodicidade das eleições bem pode, in due time, encantar-se com a possibilidade de infinitas reeleições.

Ok. No outro dia, li neste mesmo e carimbadíssimo jornal (a páginas tantas) declarações do filósofo americano, prof. Michael Sandel, falando na desigualdade e ilustrando com o que ocorreu nos Estados Unidos, dando um singelo exemplo esportivo: a diferença entre o maior e o menor preço para um jogo de baseball (o correlato de nosso futebol lá deles) era de três dólares (não sei se a preços daquele tempo ou atualizados. Mas ele queria dizer que era uma diferença ínfima. Em compensação, nesta copa do mundo, aliás, nem é na copa do mundo, hoje (stamped newspaper, página 22) jogam Croácia e Austrália numa competição prévia às "hostilidades" (entre amigos, claro...), os preços dos ingressos são de R$ 30 a R$ 90, ou seja, aqueles três $$$ viraram três XXX.

Ok. E na página 51 tem dois artigos assinados. Um é a favor da copa e outro é contra. Contra é a guria, estudante de medicina (Giovana dal Pozzo Sartori). Parece que tem a incapacidade de diferenciar cravo e ferradura. Mas diz verdades duras (algumas citadas literalmente e outras editadinhas):
.a. espera 40 minutos por um ônibus superlotado
.b. o lotação lhe custa R$ 17,60 por dia e os estacionamentos são caríssimos
.c. perde horas no trânsito
.d. não se sente segura para estacionar na rua nem parar em sinaleiras
.e. roubam-lhe o estepe
.f. não adianta ter carro, pois os ladrões roubam os demais pneus e o próprio carro
.g. greves de transportes públicos, ausência de mobilidade urbana
.h. declarações de Lula ("nosso ex-presidente") sustentando que metrô é "babaquice" e que brasileiro vai ao estádio a pé ou de jumento
.i. filhos morrem em acidentes nas estradas intransitáveis; alguns deles são amassados por ônibus, pelo menos um deles, sem freio
.j. trabalhamos até maio apenas prá pagar impostos (garanto que a fonte dela é o IBPT (desmascaro-o aqui), logo isto está errado, mas estou do lado da garota anyway, que um pouco de retórica não faz mal)
.k. os impostos retornam na forma de estradas perigosas, insegurança pública, educação e saúde falhas
.l. políticos roubam nosso trabalho (dela e meu, claro)
.m. nossa produção enfrenta a falta de estradas e portos
.n. "Mas financiamos a construção de portos em Cuba" [e, acrescento, pensamos em fazê-lo também no Uruguay]
.o. pacientes dormem na fila por uma consulta
.p. pacientes esperam um ano por uma tomografia pelo SUS
.q. pacientes entram na justiça e esperam mais um ano por um quimioterápico
.r. pacientes morrem enquanto rolam os itens p e q
.s. médicos fecham UTIs por falta de até mesmo luvas
.t. o governo acha melhor [do que o quê?] trazer mais médicos
.u. abri (ela) o jornal
.v. li (ela) que obras de que precisamos há tamto tempo não ficarão prontas nem pra receber turistas na copa
.w. não vejo a copa nem nas ruas nem na população
.x. passagens aéreas do período dos jogos estão em promoção
.y. será que os turistas estão com medo de vir para um país colapsado
.z. queimamos ônibus nas ruas
z1. assassinamos (ela não disse ser ela, eu é que me meti a serial killer...) 56 mil pessoas por ano
z2. talvez o dinheiro [de] que tanto precisamos para reformular elementos básicos do país não terá o retorno
z3. e aqui o parágrafo olímpico (sem trocadilho...):

Depois de tudo isso, querem que torçamos para a Seleção neste mês. Desculpa, Brasil, mas eu não consigo. E quem consegue se importar se o Brasil vencerá essa Copa, em frente à necessidade de vencer tantas outras?

Concordo com tudo o que a garota disse, exceto que quero que o Brasil ganhe a final da Argentina por 5x1, hehehe. Cada uma, e agora esta de que ela não consegue torcer para a seleção canarinha!

O segundo artigo assinado da página 51 do, já sabemos, carimbadíssimo jornal já vai revelando preferências com o título: "Porque sou a favor da copa", de autoria de Luiz Fernando Lima Albernaz. Ele é que falou naquele sr. Michael Sander que citei lá em cima, que -em sua conferência- indagou se alguém era a favor da copa do mundo neste momento no Brasil. E aquela turma foi quase unanimemente contra. Mas ele não.

Olha a diferença entre entre ele, cirurgião vascular, e a garota, estudante de medicina. Diz ele:

A corrupção, como disse o professor [Michael Sander], traz entre seus principais malefícios a destruição da confiança e da esperança nas pessoas e nos governos e isso é inaceitável. Mas, ao procurar algo de positivo na vinda da copa para o nosso país, eu vejo que ela nos obrigou a olhar no espelho. [...] Acredito que a série de reflexões sobre o nosso país e consequentemente a sensação de vergonha que está nos assolando são os principais legados da vinda da copa para o Brasil. Acredito que as lições da copa serão ainda mais proveitosas se, depois que as visitas forem embora, nós tratarmos de pôr a mão na massa e fizermos as tão desejadas reformas.
Fiasco é não celebrar uma festa, fiasco é se deixar embriagar e esquecer de tudo depois. Agora é hora de receber as visitas e curtir este momento com a devida alegria, mas não esquecer que a roupa suja deve ser lavada até outubro.

De minha parte, penso que, até outubro, ouviremos muitas denúncias e corrupção, mas lamento não acreditar que já tenhamos sofrido o bastante para que a classe política tenha entendido que a prioridade absoluta do país é a reforma política. Que todas -todinhas- as câmaras legislativas estão completamente corrompidas pelo oficialismo (altos salários, enormes volumes de CCs, diárias, viagens, corrupção, ção, ção!). E que o executivo (que venha a reforma administrativa) está forrado ainda mais perniciosamente de CCs e o judiciário... este só fechando... Parece-me que também tem gente querendo vender a ideia de que, se tivermos boa performance também nas eleições, tudo vai-se resolver. Minha visão é que precisaremos de muito mais mortes, incêndios, tumultos, assaltos, assassinatos, toda aquela lista da Giovana e, ainda assim, só com muito mais ferro e fogo é que os políticos vão-se tocar de que precisam aparentar uma fração maior de altruísmo em seu comportamento.

DdAB
Imagem: procurei o nome da estudante de medicina e vieram várias lindas imagens. Comovi-me com a que vemos lá no frontispício desta nova página e faço meus aqueles votos de bom fim-de-semana. Aqui.

P.S.: hoje é dia 10 de junho de 2014. Vemos que a página 37 de Zero Hora exibe mais um artigo achando estranho não torcer pela seleção do Brasil. Antes tínhamos um médico achando normal torcer e uma estudante de medicina achando que sofrer não tem nada a ver. Agora é a vez de uma médica:

DESCULPA GIOVANA, MAS EU CONSIGO
Anette Blaya Luz
Li no dia 6 de junho em ZH - Artigos um texto escrito por Giovana dal Pozzo Sartori, no qual ela descreveu, com propriedade, várias mazelas que o povo brasileiro vem sofrendo no cotidiano, e por isso ela não poderia torcer pelo Brasil nesta Copa. Questões que o cidadão experimenta nas ruas referentes ao sucateamento da saúde, da educação, do transporte e da segurança pública são abordadas por Giovana Não discordo dela em nenhuma dessas queixas. Além disso, me alio a Giovana na dor que ela sente por depender de um poder público tão corrupto.

Mas discordo dela na forma de encaminhar esses temas. Por que não torcer por um Brasil melhor? A decisão de não torcer pelo Brasil ou de incentivar a sabotagem aos jogos da Copa me parece equivocada. Explico.

Como psicanalista, me permito a seguinte comparação: quando um adolescente complicado faz de tudo para ser expulso da escola, ou para repetir o ano, ou rouba e mente, ele está, muitas vezes, tentando um ajuste de contas com seus pais, a quem ele acusa de maus pais.

O que é difícil para esse adolescente compreender é que ele está “dando um tiro no pé”, isto é: para se vingar dos pais, é ele quem sofre. É ele quem fica em recuperação, é ele quem perde os amigos que passam de ano, é ele quem se deprime por não conseguir dar conta de suas tarefas, é ele quem fica se sentindo menos do que os demais. Certamente, os pais também sofrem, mas ele sofre bem mais. Cabe ao analista auxiliá-lo a encontrar formas mais adequadas e menos penosas para que ele possa se fazer ouvir e respeitar.

Conosco, povo brasileiro, me parece muito semelhante. Se sonhamos com um futuro melhor, precisamos aprender a protestar melhor. Precisamos votar melhor, escolher melhor, pensar melhor. Afinal, nós somos o Brasil. Fazer baderna, sabotar os jogos, queimar ônibus, bloquear estradas e ruas, fazer greves de serviços fundamentais em momento tão importante me parece “dar um tiro no pé”. E sofreremos as consequências de passar essa imagem para o resto do mundo.

Por pensar assim é que consigo, sim, torcer pelo Brasil. Com taça ou sem taça, desejo que o mundo acredite num Brasil melhor, que possa oferecer mais oportunidades para todos.

2 comentários:

Unknown disse...

Dúlio
Fico feliz por meu artigo ter despertado tantos debates. O objetivo era esse mesmo. Eu não quis falar nenhuma novidade ou idéia brilhante, apenas demonstrar em texto as agressões que vivemos todos os dias nesse país. Gostei da sua análise. Parece ser um homem inteligente e estudioso. Mas fiquei um tanto quanto decepcionada quando o Sr. escreveu sobre a minha pessoa que "Parece que tem a incapacidade de diferenciar cravo e ferradura". Agressividade desnecessária considerando a consistência de seu texto. Tropeço típico de intelectuais que se perdem na soberba. Espero que não seja esse o caso e tenha sido apenas um comentário infeliz. Peço que o Sr. reflita.
Um abraço
Giovana Dal Pozzo Sartori

... DdAB - Duilio de Avila Berni, ... disse...

Certíssimo, Giovana.
Mas meu nome não é dúlio.
E nem meu comentário foi infeliz, creio, pois esta postura de confundir "Brasil" com "seleção de futebol do Brasil" parece-me realmente trumbicada.
DdAB