25 maio, 2014

Ulysses: meus cinco exemplares em ação


Querido diário:

Quanto mais olho minhas cinco edições do "Ulysses" e meus já alongados comentários aqui neste blog, mais doido fico. Tem tanto detalhe em suas mil páginas e milhares de palavras que talvez eu mesmo precise de milhões de vidas para poder apreender tudo o que se passa. Sem falar em minha cândida teoria de que aquilo tudo não é mais do que um rascunhão de James Joyce que a azáfama impediu de transformar-se em dez romances menores. Como foi o caso de suas outras obras que, ao que parece, também couberam dentro do monumental Odisseu.

Em compensação, às vezes divirto-me até no folhear inconsequente, buscando, como consequência, alguma singularidade, algum paralelismo, alguma simetria. Hoje, precisamente hoje (e por que não seria em algum dia de meu calendário?), selecionei uma passagem que me parece remeter a uma endless regression. Como sabemos, a que mais me alegra é aquela do autor de "Alegria, alegria", falando elsewhere em avesso do avesso do avesso do avesso, ad infinitum.

Em compensação, agora estamos no capítulo 17 Ítaca (para os que o marcaram assim). É aquele do sistema de perguntas e respostas que alguns atribuem ao estilo "catecismo" do ensino dos jesuítas que alguns atribuem à própria vida de Joyce, que foi educado numa das instituições presididas por essa turma. Vejamos as cinco traduções.

Diz Antonio Houaiss na página 820:

Quais, reduzidos à sua mais simples forma recíproca, eram os pensamentos de Bloom sobre os pensamentos de Stephen sobre Bloom e os pensamentos de Bloom sobre os pensamentos de Stephen sobre os pensamentos de Bloom sobre Stephen?
Ele pensava que ele pensava que ele era judeu enquanto ele sabia que ele sabia que ele sabia que não era.

E a Bernardina, na p. 731:
Quais, reduzidos à sua forma recíproca mais simples, eram os pensamentos de Bloom sobre os pensamentos de Stephen a respeito de Bloom e sobre os pensamentos de Stephen sobre os pensamentos de Bloom a respeito de Stephen?
Ele pensou que ele pensava que ele era um judeu enquanto ele sabia que ele sabia que ele sabia que não era.

Galindo, p. 964:
Quais, reduzidas a sua mais simples forma recíproca, eram as ideias de Bloom a respeito das ideias de Stephen a respeito de Bloom e as ideias de Bloom a respeito das ideias de Stephen a respeito das ideias de Booom a respeito de Stephen?
Ele achava que ele achava que ele era judeu enquanto que ele sabia que ele sabia que ele sabia que ele não era.

O Argentino, p. 628:
?Quales eran, reducidos a su forma recíproca más simple, los pensamientos de Bloom sobre los pensamientos de Esteban respecto a Boom y los pensamientos de Bloom sobre los pensamientos de Esteban respecto a los pensamientos de Bloom respecto a Esteban?
Él pensaba que él pensaba que él era judío mientras que él sabía que él sabía que él sabía que no lo era.

O par de espanhóis, p. 779:
?Quales eran, reducidos a su más simple forma recíproca, los pensamientos de Bloom sobre los pensamientos de Stephen sobre Bloom y sobre los pensamientos de Stephen sobre los pensamientos de Bloom sobre Stephen?
Pensaba que él pensaba que era judío en tanto que él sabia que él sabia que él sabia que no lo era.

Pararei aqui, esperando comprar os outros milhares de exemplares das traduções em milhares de línguas vivas, mortas, a enterrar (a língua e os demais órgãos dos corpos do corpo político) e a digitalizar. Creio que para entender esta encrenca, apenas usando aqueles simbolozitos da profa. Brena do Quadro 2.6 da página 36 do vibrante livro:

BERNI, Duilio de Avila e FERNANDEZ, Brena Paula Magno (2014) Teoria dos jogos; crenças, desejos, escolhas. São Paulo: Saraiva.

E quem quiser saber mais sobre endless regression, a indução reversa, pode consultar a seção 5.2.2 do citado e vibrante livro.

DdAB
P.S.: veja só: gosto mais da Bernardina em geral, especialmente porque seus parágrafos são separadinhos por um bruta espação, mas aquela crase no "à sua" que ela  e o Houaiss botam (e até Machado de Assis o faz aqui e ali) não se vê na tradução de Galindo, o que me leva a consagrá-lo como o melhor tradução do trecho que intuo seja "What, reduced to its simplest reciprocal form...". E isto me dá novo programa de trabalho para os próximos 999 anos: usar estas cinco (e comprar a terceira em espanhol) traduções e criar um novo Ulysses em inglês! A verdade é que parece injusto que possam existir infinitos tradutores e, como tal, um número ligeiramente maior que infinito de traduções (pois algumas iriam, juro, coincidir tintim por tintim, mas vários malandrões iriam publicar uma tradução/reversão e, insatisfeitos, voltariam ao tema, fazendo outra e mais outra...) e que haja apenas um James Joyce, digo, uma versão considerada a verdadeira, a definitiva, a infinitiva.
P.S.S.: generalizando, parece impossível dizer qual a melhor tradução. Talvez com uma amostra de tamanho maior do que estes trechos destes cinco tradutores...
P.S.S.S.: como sabemos, um dia ainda vou à Espanha e lá me compro a terceira (segunda) tradução.
P.S.S.S.S.: minha santa memória diz-me que, no primeiro semestre de 1969, estudei "Introdução à Metodologia Científica" que era do primeiro semestre da faculdade com o prof. José Fraga Fachel e que lá aprendi que "termo é a expressão verbal de uma ideia". E "pensamento é a articulação feita entre ideias". Lembro? Ou lembro que lembro? Ou lembro que lembro que lembro? Ou o quê?

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